Dialeto caipira vira poesia de vanguarda


 

O Brasil ainda demora a mostrar a sua cara, europeizada (assim se viu no espelho até o Modernismo), porque talvez seja difícil livrar-se de tantos esquemas mentais de herança lusitana, entre outras causas que explicam por exemplo a decadência da universidade e um sem número de problemas inculturais brasileiros. Mas viva Fernão Lopes, Gil Vicente, Vieira, Camões, Eça, Pessoa…

Nunca se pode é esquecer que a nossa língua portuguesa, por inúmeros escritores elevada a momentos de máxima expressividade, no seu status oficial de norma culta, padrão, constitui a língua da classe dominante, exprimindo, portanto, o universo cultural de uma elite que se não deve entender como a cultura do povo brasileiro.

A universidade (porque dela seria esse papel lúcido) desconhece que nos limites da cultura não há superioridade, apenas diferenças, deixando de integrar os “dialetos” e outros traços culturais das camadas populares, sem constrangimento, legitimidade, à compreensão do corpus cultural do país. Na afirmação sócio-política e na coexistência dessas diferenças é que uma nação pode se mostrar de corpo inteiro.

E um dos caminhos seria considerar a arte como território comum e único, em que uma forma cultural se manifesta, e não opor manifestações, subestimando e superestimado, em categorias como popular (primitiva, ingênua) versus erudita.

O poeta Djami Sezostre no livro Çeiva parece equacionar a questão com simplicidade.

O conhecimento do dialeto caipira e a conquista da norma culta levaram o poeta a universos culturais diferentes, que ele integra, em Çeiva, ao elevar o dialeto à condição de poesia, de código linguístico para a criação poética e ao enfatizar que o tratamento dado a esse material exigiu uma ciência das suas possibilidades estéticas, a par da melhor tradição literária.

O dialeto comparece em estado bruto, na apresentação de uma poética do insólito. Para tanto, o poeta utilizou-se da escrita fonética: “pardau” por “pardal”, “plumag” por “plumagem”, “v” por “vê”, “i” por “e”, “forquia” por “forquilha”, “arv” por “árvore”… Ao propor um outro desenho para a escrita, o poeta estabelece as bases de uma poesia-adivinhação, carta – enigmática, marcadamente lúdica. O leitor constrói o sentido à medida que descobre chaves para esta invenção de novos signos visuais: “… isq ser, porv eredas…”

A oralidade adquire status de vanguarda literária:

 

invergu passarins nu pó ent

i si ficam posadus in gaios

armu eu a minha pétalapau

pedra-coriscus para acertar

mas eu errância i perversto-

……………………………………..(letra e)

 

aradas vargs pôr us grãos

o milhor mesmo é – asar

ispigas de milio no seren

óz i pontiar água i fogo

ants q mi farsa dormioco

…………………………………..(letra l)

 

Como se viu, esta é uma poesia também fortemente carregada da atmosfera da infância, espaço mítico recriado mediante o resgate de emoções e sensações remotas que acompanharam uma trajetória de descobertas.

Por algumas vezes o poeta estranhamente parece visitar as cavernas arcaicas da língua. Por outras, sua escrita lembra o espanhol – mas Minas Gerais recebeu essa influência durante o domínio da Espanha. Os dialetos populares guardam essas surpresas que, aqui, são marcas de poesia.

Çeiva é para agradar leitores modernos, texto eivado de muitos jogos poéticos. O principal, o uso de “portmanteaux” (palavras-valise). Verdadeiros achados, palavras que nascem da aproximação ou superposição de outras palavras: “lã só” (“lã”, “só”, “lanço”), “asobvio” (“assobio”, “óbvio”), “persigno-t” (“persigo”, “persigno”, “signo”), “ciopó” (“cio”, “cipó”), “paistor” (“pau”, “pastor”), “sonuturno” (“sono”, “soturno”, “noturno”).

Çeiva: um dialeto e uma cultura sinalizam existência vigorosa, agora código para os processos de invenção da nova poesia brasileira.

 

Osvaldo André de Mello
.

***

.

O tempo.

Portanto, 20 outonos depois de sua publicação em 1997, esses livros de poesia voltam ao mundo. Escrito no inicio dos anos 1990 na casa dos meus 20 anos de idade, a vida mudou, o espelho mudou, o mundo mudou, a poesia mudou. Mas como viver com a mesma chama que incandesce?

Escrevi muito como sempre escrevi muito. Fiz performances pelas Américas, Europa e África Lusíada. Inventei a poesia biossonora e fui contra a poesia em busca de uma arte radicalmente original. Assim aconteceu comigo talvez por me sentir um extemporâneo frente aos meus contemporâneos.

Se a língua é um animal em metamorfose, eu sou um camaleão. E para isso basta entrar para as florestas de minha poética. Quem conhece, por exemplo, ANU, não-texto de poesia, entende o que estou falando. Aquele que leu ou me viu em performance entende que a poesia é a minha verdade.

O tríptico Cilada e Solo de Colibri e Çeiva zanzou pelo Brasil na vertigem do século XX. Essa tríade de poesia recebeu olhos de interesse de gente considerada altamente recomendável, mas também de gente simples e comum, que se emocionou com uma poesia naturalmente humana.

Cilada foi adaptado para o teatro e fez temporadas de sucesso no Curral Del Rey. Solo de Colibri foi premiado em São Sebastião do Rio de Janeiro. Çeiva foi publicado em uma coleção para celebrar cem anos de Belo Horizonte.

Afinal, eu, poesia, eis-me aqui em estado de sexo com a vida.

 

Djami Sezostre

 

 

 

 




Comente o texto


*

Comente tambm via Facebook