Desabafos de um contista


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Nos últimos anos a chamada literatura marginal tem ganhado cada vez mais espaço, sobretudo na mídia e, começa também a ser tema de discussão na academia. Diferente daquela que surgiu nos anos 70 ligada a autores que eram geralmente de classe média, a literatura marginal atual vem da periferia e é solidária a ela, tendo a preocupação de formar pensamento crítico e, dar voz aos grupos excluídos e ditos minoritários na sociedade. Autores como Sérgio Vaz, Sacolinha (Ademiro Alves) e Ferréz têm se destacado no atual cenário. No entanto poucos conseguem ter seus livros publicados por editoras e para saírem do silêncio que o mercado editorial lhes impõe procuram formas alternativas de veicularem seus textos. Uma das formas é se reunirem em grupos para fazer o lançamento independente de suas obras.

Outra preocupação dos autores que fazem literatura marginal é a de realizarem juntamente com a literatura a articulação de ações culturais que podem ser visualizadas, sobretudo nas Associações criadas por alguns destes escritores. Sérgio Vaz, por exemplo, é um dos organizadores da Cooperifa que entre outras atividades realiza reuniões com apresentações culturais, saraus literários, música, dança e teatro.

Ferréz faz parte do projeto 1Dasul que, criou uma marca de roupas feitas totalmente no bairro em Capão Redondo. A 1Dasul articula também uma biblioteca comunitária e distribui livros e revistas gratuitamente em espaços públicos.

Dentre os autores citados, com certeza Ferréz é um dos que têm atingido maior repercussão. Paulistano, com 31 anos Férrez é além de escritor compositor de Rap. Diz o autor que começou a escrever aos sete anos de idade, acumulando contos, versos, poesias e letras de música. Antes de se dedicar exclusivamente à escrita, trabalhou como balconista, vendedor de vassouras, auxiliar de serviços gerais e arquivista. Seu primeiro livro, Fortaleza da Desilusão, foi lançado em 1997, com patrocínio da empresa onde trabalhava.

A notoriedade veio com o lançamento de Capão Pecado (2000) que está na terceira edição, romance sobre o cotidiano violento do bairro do Capão Redondo, na periferia de São Paulo, onde vive o escritor. Ferréz atua ainda como cronista na revista Caros Amigos desde 2000.

Em 2003 publicou Manual Prático do Ódio que conserva sua prosa ágil e seca. Mais conhecido por seus romances, Ninguém é Inocente em São Paulo (2006) marca a estréia de Ferréz no gênero conto. São 19 contos distribuídos em pouco mais de 90 páginas. Isto se considerarmos o primeiro intitulado “Bula” que substitui o prefácio. Em “Bula” o autor fala sobre como surgem seus contos, de onde surgem suas personagens, da turbulência de seu processo criativo, daqueles contos que já foram publicados em algum espaço, além dos agradecimentos.

Ao nos depararmos com os contos de Ninguém é inocente em São Paulo, fica a impressão de estarmos lendo crônicas, tal o estilo curto e direto de Ferréz. Como diz o autor seus contos saem — “de uma paulada só”. A velocidade dos contos se assemelha muito ao ritmo consternado da metrópole, espaço que Ferréz conhece e descreve muito bem.

Dois contos se aproximam do fantástico — “Rastejar” e “Buba e o muro social”. No primeiro a personagem passa por uma transformação. Sistemático e irritado com a realidade social presente, é na leitura que ela encontra um pouco de paz. A personagem é um ser mutante que à noite, durante a leitura, encontra sua verdadeira forma. No segundo é um cachorro quem toma a palavra e compara sua antiga vida em um prédio de classe média com o atual momento em que vive numa favela com seu novo dono, um escritor. Aliás, o escritor como personagem é uma das figuras que mais aparecem no livro. Portanto, quem espera encontrar na leitura de Ninguém é Inocente páginas recheadas de relatos sobre a vida de traficantes, violência e sangue, ou algum tipo de apologia ao crime, vai se decepcionar.

A denúncia à violência, ao problema do alcoolismo, à força do tráfico nas comunidades, à falta de perspectiva encontrada pelos jovens está em todo momento presente na obra, porém o autor explora o trágico, o patético o cômico o inusitado para retratar a periferia, além de buscar valorizar seus aspectos positivos tais como a solidariedade, as manifestações culturais e a honestidade da maior parte de seus moradores.

A grafia e a sintaxe dos contos não são um obstáculo para o leitor. Porém aquele mais despreparado irá se surpreender com algumas expressões e gírias bastante correntes e próprias da periferia que destoam do padrão dito culto da língua.

O abuso da força policial pode ser visto, por exemplo, em “Fábrica de fazer vilão” e “O grande assalto”. O primeiro se passa numa casa que fica em cima de um bar. Após um dia cansativo de trabalho um rapper termina mais uma letra de música para o seu disco, quando ao dormir é surpreendido por alguém que faz questão de acordá-lo chamando-o de preto. Sem entender ele desce até o bar e acompanha a situação. É uma batida da polícia. O comandante quer saber por que aquele bar é freqüentado apenas por pretos. Ao ouvir que o fato se dá por ser o bairro habitado apenas por pretos o comandante se irrita e agride alguns moradores. O rapper ao dizer que está desempregado é chamado de vagabundo e é incitado pelo policial a entrar na vida do crime. Cansado daquele monte de “bostas” (sic) o policial decide apagar a luz e atirar na direção dos moradores pra ver se acerta alguém.

Em “O grande assalto” o autor confronta uma situação na qual um morador de rua é perseguido por ter pegado um balão promocional exibido em uma concessionária, com a tentativa de fuga de um jovem universitário, de classe média que se assusta ao ver a polícia que perseguia o mendigo, vindo em sua direção. Ele estava com o carro cheio de drogas para vender na faculdade. O mendigo leva algumas coronhadas e o estudante segue seu caminho.

A crueldade do tráfico de drogas pode ser conferida em “Pega ela”, conto no qual Alemão mata seu melhor amigo Lipo para manter o código. Lipo teria beijado a “mina” de um irmão. Em alguns momentos o conto, assim como o livro, lembra “Feliz Ano Novo” de Rubem Fonseca.

Têm espaço nos contos de Ferréz personagens que raramente são lembradas, como o motorista de ônibus, a dona de casa, o balconista do bar, o empacotador ou repositor de estoque do mercado. São personagens que nos acostumamos a ver, apenas, como secundárias, mas que aqui são a espinha do texto.

Um conto que merece destaque é “Pegou um axé”. Nele um “mauricinho”, jornalista recém formado que, rala pra pagar a casa na praia é incumbido de fazer uma matéria sobre um grupo de Rap da periferia. Ele despreza qualquer tipo de conteúdo que o grupo ou os moradores podem ter e quer saber logo sobre a violência. O oportunismo aparece quando ele acredita que com a matéria pode mesmo chegar a fazer uma pesquisa e ter seu livro publicado com leis de incentivo à cultura. No meio da entrevista o repórter já apavorado com o lugar, entra em pânico ao ver um garoto subindo ao segundo andar do bar com um facão e um outro homem logo em seguida, com uma serra. Pensa tratar-se de um seqüestro. Desmaia pondo fim à entrevista pensando que seria o próximo a ser esquartejado. É a “guetofobia”.

Na luta em se construir uma sociedade melhor, Ferréz retrata o caos que é a cidade de São Paulo, a “correria”, onde ninguém tem tempo. Diante das diversas dificuldades que encontram os moradores das periferias, Ferréz aponta uma arma bastante poderosa no combate àqueles “que exterminam” a sua gente: o livro.

 

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FERRÉZ, Ninguém é inocente. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006.

 

 

 

[Resenha publicada na parceira Revista Crioula]

 

 

 

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Oluemi Aparecido dos Santos é Mestrando em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa, FFCLH- USP — Bolsista da FAPESP. Pesquisa: Nas sendas da revolução: A poesia de Solano Trindade e Agostinho Neto. E-mail: oluemi@gmail.com




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