De Zero a Z
……………Z a Zero (Anome Livros, 2010)
Sempre achei que para além da “inspiração” (subjectiva, aliás), um poema tem que ter também transpiração. Deve ser trabalhado tendo em atenção a sua estrutura, a sonoridade das palavras e, para além da criatividade, o poema tem que ser tratado esteticamente de modo a potencializar os aspectos anteriores resultando, então, no “Poema”.
Porque para verdadeiramente o ser, o “Poema” tem que resultar numa obra de arte, com um valor conceptual e artístico equivalente ao de uma pintura, uma escultura, uma fotografia ou de um trecho musical. E “Z a Zero” de Wilmar Silva é o exemplo daquilo que quero dizer.
Com uma temática conceptual que não retira nada à sua essência, estes poemas são trabalhados de uma forma rigorosa nos conceitos que referi: têm uma estrutura poderosíssima, um som muito próprio, no aspecto estético são poemas concebidos pela repetição de cada letra por cada uma das vinte e seis que constituem o alfabeto, integrando ainda a ambiguidade conferida pelo registo descritivo da numeração com a correspondente supressão das vogais que, embora abstratizando no início, estimulam uma abordagem activa por parte do leitor na interpretação do corpo daquela construção consonântica, para que cada verso de cada soneto seja entendido na sua totalidade.
A nível formal e de conteúdo, está lá tudo: Wilmar Silva pega numa das estruturas mais tradicionais e rígidas da poesia ocidental – o soneto – e trabalha-a com base numa linguagem contemporânea, fazendo com que não reste uma réstia de dúvida quanto à carga poética de “Z a Zero”.
Sublinhe-se a subtileza da construção deste livro, que avança numa leitura ascendente no corpo de cada poema, enquanto que a titulação dos mesmos se verifica num processo descendente.
Mas a leitura também se poderá efectivar no sentido inverso, isto é, começando pelo poema “a” e terminando no soneto “z”, constituindo um ciclo interminável de leituras. Nesse sentido poder-se-à considerar que “Z a Zero” não tem princípio nem fim, podendo ser (re)lido infinitamente, numa abordagem cíclica crescente-decrescente tanto em termos alfabéticos como numerais.
Esta ideia da descrição infinita, da leitura interminável, é particularmente grata ao autor, como se pretendesse afirmar que a poética é contínua, que a poesia pode ser sempre retomada em qualquer compasso do livro. E na verdade, pode.
Cada poema contém em si essa génese indiciadora de uma leitura de revés ao viés, atendendo a que a componente numerológica de cada soneto progride num sentido crescente, de cima para baixo, continuando, de forma ordinal de baixo para cima, revelando o embrião de uma possível contra-leitura.
Os poemas que constituem “Z a Zero” não são apenas experimentais do ponto de vista gráfico (se é que é significativo fazer uma catalogação deste género), são-no também na vertente sonora. Basta lê-los em voz alta para se perceber a sonoridade que cada verso em si encerra.
Vertente, aliás, que Wilmar Silva deveria com toda a legitimidade explorar, considerando existirem na sua escrita potencialidades que o poderão tornar num poeta sonoro de referência, rompendo com o generalizado excesso de teatralização praticado pela maioria dos poetas brasileiros. A poesia sonora procura trabalhar as especificidades das palavras e dos fonemas, modelando-os através das variações da voz, dos ruídos e de ambientes sonoros, recriando uma interpretação potencializadora do mesmo em vez de apresentar o poema de uma forma declamatória e dramatizada, quase sempre redutora.
“Z a Zero” é igualmente uma obra inventiva no seu minimalismo estético, conseguindo criar uma sequência de poemas com um conjunto reduzido de elementos gráficos. Porque, curiosamente, “Z a Zero” é um livro constituído por vinte e seis poemas que não contêm uma única palavra que possa ser encontrada no dicionário. E no entanto diz tudo. Pelo que está escrito e pela consequente omissão.
Apesar de não existirem palavras ao longo dos poemas, cada soneto respeita rigorosamente a rima oposta ou interpolada, rima essa dada pela relação numérica, parte integrante de cada soneto, reafirmada pela correspondente descrição consonântica, coexistindo a rima final de cada verso com uma rima numeral interior que reforça aquela. A métrica neste caso não é observada, a não ser a métrica interna, na repetição da mesma letra, embora mesmo neste caso, e com justeza, não se possa falar de uma rima bárbara, por ter mais de doze sílabas….
Wilmar Silva utiliza a repetição formal e estrutural para remarcar o poema e imprimir ao conjunto uma unidade que os livros de poesia normalmente não têm, criando uma poética una, compacta, consistente, global, com a força que lhe é dada pelo dizer sistemático e repetitivo dos grafemas utilizados, resultando o livro como um todo.
Foram abordadas criativamente todas as letras do alfabeto e todos os signos da nossa gramática numeral, quer através destes como da sua narração verbal, pelo que não há mais nada a acrescentar, tornando o conjunto dos sonetos uma obra indivisível, à qual não é necessário acrescentar ou retirar o que quer que seja. Pela estrutura. Pela sonoridade. Pela inventividade. E pelo formalismo estético.
Se “Z a Zero” não é uma obra de arte, então o que é o Poema ?
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Fernando Aguiar nasceu em Lisboa, em 1956. Licenciado em Design de Comunicação pela Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa. Doutorando em Arte Multimédia pela Faculdade de Belas-Artes de Lisboa. Publicou 14 livros de poesia, 2 livros de performance, 3 livros infantis, 4 antologias de poesia experimental portuguesa e 2 antologias de poesia visual internacional em Portugal, Alemanha, Brasil, Itália, Espanha, Canadá, Irlanda, U.S.A. e em Inglaterra. Foi incluído em 68 antologias de literatura contemporânea em Portugal, França, Itália, México, Canadá, Inglaterra, Jugoslávia, U.S.A., Alemanha, Suiça, Brasil, Espanha, Rússia, Hungria, Cuba e Japão. Colaborou em mais de 730 jornais e revistas de arte e literatura de 38 países. Trabalhos seus foram publicados nas capas de 43 dessas revistas e na contracapa de outras 16, assim como em 13 capas de livros e catálogos e em 5 cartazes de exposições internacionais. É autor do “Soneto Ecológico”, uma obra de poesia ambiental constituída por 70 árvores plantadas em 14 filas de 5 árvores (4+4+3+3), numa área aproximada de 110×36 metros, no Parque do Soneto, em Matosinhos, Portugal, 2005. E-mail: fernandoaguiar@netcabo.pt
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27 janeiro, 2012 as 5:10