Curare


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Prólogo

Entxeiwi. Com essa expressão, que se avizinha a “bom-dia”, Tikuein – apelido de José Luciano da Silva – ou Nhangoray (Mão Pelada), seu nome indígena, falecido em 2009 e um dos últimos falantes da língua Xetá, iniciava uma conversa com o espelho. Um rito oral com o outro do espelho que podemos dizer um exercício-limite, sintoma do desaparecimento dessa língua – do grupo dialetal guarani, no caso o mbyá, bem como outras da família linguística tupi-guarani – e efeito da dizimação da diversidade cultural a-histórica. Os Xetá, desde o início dos primeiros contatos, em fins do século XIX, ficaram reduzidos a seis indivíduos remanescentes. A soma dos indivíduos é menor que o número de nomes atribuídos à coletividade: Xetá, Héta, Aré, Botocudo, Sjeta, Notobotocudo, Ssetá, Bugre, Yvaparé, Chetá e Seta. São onze nomes coletivos para seis indivíduos que atualmente não convivem coletivamente.

Poucos meses após ter decidido que o informe desta fala de Nhangoray seria a pulsão do poema, tive a alegria de encontrar-me com Jerome Rothenberg, em Curitiba, em meados de 2007. Em rápidos três dias de convivência, o poeta e tradutor estadunidense, criador do conceito etnopoesia, deixou-me sinais estáveis de que a poesia é presença e ruído de fundo nas diversas relações culturais. “Nenhuma pessoa hoje é recém-nascida. Nenhuma pessoa se acomodou apaticamente aos milhares de anos de sua história. Meça tudo pelo foguete Titan & pelo rádio transistor, & o mundo estará cheio de povos primitivos. Mas mude por uma vez a unidade de valor para o poema ou para o evento da dança ou do sonho (todas, claramente, situações artefatadas) & fica aparente o que todas estas pessoas têm feito todos esses anos com todo esse tempo nas mãos”, escreveu Rothenberg em “Pré-Face – Technicians of the Sacred” (Etnopoesia no milênio).

Este informe do rito oral de Nhangoray é presença extremosa em Curare desde as primeiras linhas e põe em ênfase as relações entre poesia e etnia. A medida é monstruosa – do informe ao disforme, e, estendidamente, às linhas de fuga que sugerem ao poema o aberto –, um modo de se chegar ao ethos poético ou a uma poética. Posso dizer, além disso, que, recentemente, com a elaboração e exposição de uma etnoperformance chamada Carretel curare é que esse ethos delineou-se em seu movimento de retorno. O informe da fala de Nhangoray, presença na minha escrita-cosmogonia, escrita monstruosa, retorna à oralidade via espaço da performance.

Curare opera mais por uma força centrífuga do que centrípeta e descentra para não decifrar. “Não há mais sujeito-objeto, mas ‘brecha escancarada’ entre um e outro e, na brecha, o sujeito, o objeto são dissolvidos, há passagem, comunicação, mas não de um a outro: um e outro perderam a existência distinta” (Bataille).

Assim, a expressão “entxeiwi/bom-dia”, pode ser uma variante livre do sentido “carpe diem” (Horácio), vulgarmente traduzido por “viver o dia”. Se o gesto “carpe diem” busca dizer o que se esgota no instante presente, uma expressão para o “viver o agora”, dizer “entxeiwi” ao espelho, em uma língua esquecida, pode nos abrir o sentido poético desta língua, sentido este que está em todas as línguas, momento em que não estão formalmente estruturadas como linguagens de poder (Blanchot). É neste lugar, lugar também da tradução, que não é começo nem fim, lugar olvidado, silencioso, lugar de ausência que Curare – “brecha escancarada” – se relaciona incessantemente. E se recorro ao carpe diem, antes de evocá-lo formalmente, um épico, procuro dizê-lo no sentido que a expressão “entxeiwi” se me apresenta, ou seja, lugar de potência que tanto necessita o poema que não quer nunca se acabar, que é “continuum de variações crescentes”, nas palavras de Arturo Carrera, em seu Noche y Día.

Ricardo Corona

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Ricardo Corona atua nos seguintes campos: poesia contemporânea brasileira e hispano-americana, estudos de relação entre as áreas artísticas (performance, poesia sonora, artes visuais), tradução, linguagem e cultura. É autor dos livros ¿Ahn? (Madri, Poetas de Cabra, 2012), Ahn? (Jaraguá do Sul, Editora da Casa, 2012), Curare (Iluminuras, 2011 – Premio Petrobras), Amphibia (Portugal, Cosmorama, 2009), Corpo sutil (2005), Tortografia, com Eliana Borges (2003) e Cinemaginário (1999), publicados pela Editora Iluminuras. Na área de poesia sonora, gravou o CD Ladrão de fogo (2001, Medusa) e o livro-disco Sonorizador (Iluminuras, 2007). Organizou a antologia bilíngue (português-inglês) de poesia Outras praias / Other Shores (Iluminuras, 1997). Com Joca Wolff, traduziu o livro-dobrável aA Momento de simetria (Medusa, 2005) e a coletânea Máscara âmbar (Lumme, 2008), de Arturo Carrera (com posfácio de Raúl Antelo) e, esparsamente, publicou traduções de Henry Michaux, Gary Snyder e William Carlos Williams. Com Mario Cámara, Daniel Link, Reinaldo Laddaga, Romina Freschi, Nora Domínguez, entre outros estudiosos da literatura hispano-americana, participa do livro La poesía de Arturo Carrera – Antología de la obra y la crítica, organizado por Nancy Fernández e Juan Duchesne Winter (Instituto Internacional de Literatura Iberoamericana/Universidade de Pittsburgh, 2010). Tem ensaios e poemas publicados nas revistas Poiésis (Brasil), Tsé-tsé (Argentina), Rattapallax (USA), Caligramme (França), Separata (México) e nos jornais Suplemento Literário de Minas Gerais (Brasil) e caderno Mais! (Folha de S. Paulo). Com Eliana Borges criou as revistas de poesia e arte Medusa (1998-2000) e Oroboro (2004-2006) e com Joana Corona o jornal Vagau (2011). Desde 1996, apresenta trabalhos performativos que envolvem música eletroacústica, artes visuais e poesia sonora, dos quais, destacam-se Carretel curare (2011) e as parcerias com Eliana Borges, Tsantsa (2011), Alfabeto móvel (2010), Nomos (2009), Tambaka (2008) e Jolifanto (2007). E-mail: ricardomcorona@gmail.com




Comentários (2 comentários)

  1. neuza pinheiro, Fervessem, pois sim, num grande caldeirão, até que se reduzissem a um mínimo, a um nada, os cérebros expertos em tecnologias do Sagrado…A nossa arrogância branca toma a última palavra do último xetá – entxeiwi? – e decide que entxeiwi será o ethos, a pulsão, o carretel a deflagrar a “escrita monstruosa” em que “sujeitos e objetos” serão dissolvidos sob o lema “CARPE DIEM!”, o deixar viver(…), que, pasmem, abre uma brecha, potencializa a palavra ENTXEIWI!”, o “bom-dia” de Nhangoray, uohww, viver o dia, numa força centrífuga, num continuum voraz, num aberto, num Eco…Horácio rindo na nossa cara…Nietzsche daria uma cuspidela e retornaria, rápido, ao silêncio… A épica dos povos indígenas é uma tragédia inominável, que a nossa ignorância cultua nos museus – um bodoque, um resto de palavra, um osso, uma sobra de ferramenta, uma flecha, uns cocares desbotados – que a gente “curte”, acha uma graça…ENTXEIWI…poderia significar raros, raríssimos(já que foram exterminados) entes de saco cheio pela invasão sem fim…A propósito: nós nem sabemos o que seja Anhangabaú, Tietê, Anhembi…Nós nem sabemos que Raposo Tavares foi um cruel caçador e assassino de índios…Mas somos capazes de anunciar aos sete ventos quão “pós” somos, pulsando com ENTXEIWI, ora porque somos tão…tão…tambektas, somos tão…babãotikos…
    24 fevereiro, 2012 as 21:07
  2. Ricardo Corona, É claro que o “épico a-histórico” é inominável. Justamente por não ter nome que em Curare operei uma força centrífuga, cujo fragmento antes de ser formal e de força centrípeta, é disforme e cheio de fugas. Por amor a essa referência Xetá, na relação poesia-etnia, não está presente uma relação de sujeito-objeto, do tipo que dá nome e faz do “eu” poético um discurso para falar “em nome” dos Xetás. Por isso essa relação se deu numa “brecha escancarada”. Esta abertura surpreende e distrai o discurso possessivo que se apodera da dor alheia criando um falso lamento, uma dor de autor. Aliás, é engraçado que os sintomas disso aparecem nas primeiras palavras do seu comentário. Refiro-me à imagem de um indígena fervendo cabeças num grande caldeirão. Ou se trata de ato falho ou você realmente acredita nesta velha imagem hollywoodiana de que o “primitivo” é um “selvagem”? O primitivo é “complexo” (Rothenberg), é “brecha escancarada” e, portanto, “a-histórico”. E quando me refiro à poesia “a-histórica”, não se trata de sugerir que esta poesia étnica não pertença à história da humanidade (assim como fez Hegel em relação à cultura africana), mas no sentido que está fora da história narrada pelo humano, demasiadamente, humano. E essa ironia nietzscheiana é justamente para dizer do recalque do discurso humanista, cujo viés é, no fremir de tudo, bem cristãozinho.
    9 julho, 2012 as 15:30

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