Caderno Provinciano


Trecho do Prefácio

 

Não é fácil encontrar, na história da literatura, prosadores que, tendo uma obra já consolidada no gênero, arriscaram-se a publicar poesia. Afinal de contas, linguagens distintas sustentam esses dois universos da produção literária. Mas Chico Lopes comparece, novamente, para romper com o lugar-comum. Este Caderno provinciano está pleno de poesia, do começo ao fim.

Se por vezes é possível perceber nestas páginas muitos dos motivos condutores que embasam a prosa cortante do autor, o tratamento dado por Chico Lopes é, aqui, absoluta-mente lírico, no sentido maior da palavra. Com isso, ganha o leitor a notável oportunidade de colher, deste Caderno, evocações e imagens que, a par das dobras da noite – e de acordo com um belo verso do próprio poeta –, “apontam para céus não percorridos”.

 

(Iacyr Anderson Freitas)

 

 

.

Dois poemas de  Caderno Provinciano

 

 

O AREAL

.
Areal da noite, enigma sem causa,
turbilhão de sono, tumba de asas,
quero ser o mais secreto atalho
lambido de sereno, o mais discreto
dos regatos calmos, cantando baixo
à minha solidão, em acalanto,
esta contida ária quase pranto.

Que os outros não me ouçam,
que o próprio som me seja
involuntário, fácil, como o rio
de que emergi sem nunca ter pedido
a bem de um mundo escuro e gratuito.

As facas se entrecruzam, são dispostas
espadas sobre a seda, e o desenho
da nobre solidão claro se torna –
é mão jazendo à espera na bigorna.

À espera de nascer, navego escombros,
indeciso fio entre negror e aurora,
meu sonho é um vislumbre de estar vivo
e reincido em erros muito antigos.

Andaimes da noite me sustentam, fluídos,
e apontam para céus não percorridos.

 

 

PÉRIPLO

Seja qual for a paisagem,
sejam quais forem seus itens
inúmeros,
sedutores,
feéricos,
será sempre o Deserto.

Qualquer chão que se pise é areia e pedra
e não se avista uma cisterna
que não seja miragem.
Vai-se no escuro, e o tato
só afaga espinho de cacto.

Devagar com a caravana
repleta de despojos –
relíquias do Bem, muletas,
flores, gravuras, colheres.
Os camelos são lerdos, o guia
fala uma língua insondável.
Não há mapa.

Placas indicam cidades,
mulheres, hotéis, restaurantes.
Mas você não se desvia: já sabe
o alto preço dos oásis.

Não faltam livros, e há sábios,
cabeças enterradas nas dunas.
Há anjos falando sozinhos,
um rico mercado de espelhos,
êxtases em liquidação.
Você não se ilude: a esta altura
tudo em você é armadura.

Seja qual for a oferenda,
sejam quais forem as pompas,
nada atingirá o cerne
íntegro da sua mágoa.

É abrir o cantil imaginário
e beber a palavra água.

 

 

OBS.:

O livro será lançado no dia 16 próximo, às 19h, no bar Canto Madalena, Vila Madalena, Rua Medeiros e Albuquerque, pela editoraPatuá.

 

 

 

 

Chico Lopes ficou conhecido na literatura brasileira como autor de três livros de contos, NÓ DE SOMBRAS (IMS/SP, 2000), DOBRAS DA NOITE (IMS/SP, 2004) e HÓSPEDES DO VENTO (Nankin Editorial SP/2010), tendo publicado em 2011 o romance O ESTRANHO NO CORREDOR (Editora 34/SP), que lhe valeu um terceiro lugar na categoria Romance no Prêmio Jabuti 2012. Mas ele manteve com pudor algumas incursões como poeta, guardando poemas para si. Decidiu publicá-los neste ano, no livro CADERNO PROVINCIANO, há muito tempo guardado (entre 1983 e 2003 nas cidades de Novo Horizonte e Poços de Caldas, onde foram escritos).

 

 

 

 

 

 

 

 




Comente o texto


*

Comente tambm via Facebook