Bifurcações


………………………………..bifurcações – apresentação

 

demetrios galvão percorre o universo poético desde os livros cavalo de troia, de 2001, fractais semióticos, de 2005 e insólito, de 2011. portanto, bifurcações chega sob a forma de uma auspiciosa continuidade, no sentido da construção de uma obra que se apresenta cada vez mais consolidada. assim, é grande a alegria de saudar este poeta piauiense, que trilha cintilantes caminhos em que se incluem dois nomes coestaduanos de notável projeção nacional na contemporaneidade: mário faustino e torquato neto.

demetrios galvão pertence a uma família que chamaria de “poetas visionários”, tradição que remonta, modernamente, ao século 18 com o despontar do movimento romântico. nesse período inicial, há que se destacar o nome do poeta inglês william blake, um autêntico visionário de primeiríssima hora. o espírito romântico inaugura o que o poeta e ensaísta mexicano octavio paz chamou de uma forte “tradição da ruptura”. nessa perspectiva, nas palavras do poeta e crítico claudio willer, o romantismo deixa de ser apenas mais um período da história da literatura pertencente ao final do século 18 até meados do 19, para se converter em uma permanente rebelião que vem se renovando ao longo do tempo, renovação essa que vai, assim, atravessar o simbolismo e atingir o ponto culminante no surrealismo em princípios do século 20. desse modo, o surrealista, na condição de porta-voz e continuador da rebelião romântica, busca até os dias de hoje a construção de uma poesia total, absoluta, emprestando concretude às palavras de andré breton, que no segundo manifesto do surrealismo fala da procura da unidade de todas as coisas ao denunciar “as velhas antinomias destinadas hipocritamente a prevenir toda agitação insólita por parte do homem”. quando então completa: “tudo indica a existência de um certo ponto do espírito, onde vida e morte, real e imaginário, passado e futuro, o comunicável e o incomunicável, o alto e o baixo, cessem de ser percebidos como contraditórios”.

o alinhamento de demetrios galvão ao movimento surrealista, em que a ambiência onírica com aguda marca visionária é ponto alto, torna-se nítido a cada página de bifurcações. na primeira parte do livro, denominada “céu de porcelana”, iniciamos a leitura dessa profusão de belas imagens visionárias em variados poemas (imagens visionárias no sentido de apontar para mundos encobertos, misteriosos, fantasmáticos, luz aberta sobre o invisível): “fármaco e veneno extraídos da febre de árvores púrpuras”; “os peixes nadam na profundidade da costela direita / me visto de asas e de lâmpadas / e vou ao teu encontro / com uma palavra-mágica adornando os olhos”; “teu riso é vitral bizantino flamejante na arquitetura dos gestos translúcidos”; “são doces os demônios das flores encarnadas”; “transfiguramos a mata densa em lençóis brumosos”; “hoje o carteiro acordou de mau humor / e entregou infernos retirados de uma bolsa incendiada”. repito, assim, que demetrios galvão pertence a uma família de poetas que, no brasil, seguem trajetória iniciada com vigor por jorge de lima e murilo mendes, para chegar na atualidade a nomes do porte de roberto piva, claudio willer, floriano martins, rubens zárate e ademir assunção, esses três últimos, aliás, presentes no livro com expressivas epígrafes. trata-se de uma família minoritária de poetas dentro do panorama da poesia brasileira de um século para cá, mas que, no entanto, permanece a ganhar adeptos nos tempos atuais, quando se percebe que muitos poetas – como no caso do demetrios – mantêm a consciência de que os olhos com que vemos a realidade são os mesmos com que enxergamos a mais delirante imaginação.

andré breton era bastante consciente dos embates entre o real e o irreal durante a vida, com nítida desvantagem para o segundo. diz breton: “subjetividade e objetividade travam, ao longo de uma vida humana, uma série de combates, nos quais a primeira costuma sair-se inteiramente mal”. daí a busca da unidade, da fusão de sonho e vigília, conforme assinalamos, trabalho sempre por demais difícil. e talvez, por isso, o realismo tenha, de certa forma, preponderado na história literária brasileira, em detrimento da linha minoritária que propugna pelos caminhos do maravilhoso. pois citemos ainda breton, que radicalmente insiste no primeiro manifesto do surrealismo: “digamo-lo claramente, e de uma vez por todas: o maravilhoso é sempre belo, qualquer tipo de maravilhoso é belo, somente o maravilhoso é belo”.

e será este “maravilhoso” que demetrios galvão continuará a perseguir ao longo do livro. na segunda parte, “para uma criatura encantada”, irá dizer que “seu ofício é costurar lembranças em um armazém de abandonos”. na terceira parte, “cosmologia invertebrada”: “a borboleta-cara-de-morcego / com asas de arco-íris quebrado / vomita relâmpagos / na tempestade carnívora / do sol”. por fim, na última seção do livro, “ecos de uma luz distante”, em que temos uma epígrafe de outro imenso poeta, o imagético galês dylan thomas, vamos ler no poema “sem medida”, especialmente antológico, os versos: “longe do corpo o relevo de um sorriso adormece elefantes / (…) os pássaros tomam posse da cabeleira abandonada”.

outra constante de bifurcações (e que já se encontra presente nos trabalhos anteriores do autor) é a aproximação de alguns poemas da música pop, seja brasileira ou internacional, o que empresta ótimo colorido ao todo. assim, vamos passar do mineiro clube da esquina para a banda the doors em saltos musicais que enviarão “envelopes com serpentes sedutoras” a decifrarem “a temperatura do teu pescoço-abismo”, tudo dentro da formação de campos magnéticos que retiram o mundo da condição de mero horizonte de utensílios distribuídos de modo organizado ou aleatório, para constituírem coágulos da mais pura, vertiginosa poesia.

o escritor francês sarane alexandrian, no livro o surrealismo e o sonho, dirá ser o surrealismo não uma escola, nos moldes do romantismo ou do simbolismo, mas um método de uso sempre viável, como a psicanálise. isso é sobremodo interessante no sentido de uma perpetuação do desenvolvimento de um rico método de abordagem do mundo que, de modo empobrecedor, quase todos se satisfazem ao denominá-lo genericamente de “realidade”. e vamos insistir, seguindo as pegadas indicadas por claudio willer, em assinalar que para os românticos, o lugar da solução das antinomias e superação da contradição de subjetividade e objetividade estaria no espírito. para hegel, no absoluto. para o surrealismo, no maravilhoso. desse modo, o que mais se pede e se deseja é que demetrios galvão continue a desenvolver, nos tempos vindouros, trabalhos poéticos com cada vez mais força, beleza e maturidade formal.

 

 

 

céu de porcelana

 

céu impermeável

…………..translúcido

 

noite bifurcada em

…………..duas luas

…………..vitrificadas

.

tapeçaria galáxia

…………..concebida em tear

…………..astronômico

 

malha de estrelas selvagens

…………..a projetar um arquipélago

…………..materno

.

………….(o povo do deserto

…………..são seus intérpretes. )

uma vagina de

………….quartzo

guia as caravanas

………….na direção de sua

………….constelação

.

 

sem medida

as casas fogem de repente
e em seu lugar há uma carta.

enrique molina

 

longe dos olhos o alimento é saudade

o que se carrega na mochila é rarefeito

a voz que vem de dentro é mitológica

reza uma fronteira e lembra uma origem.

 

longe do lar o encantamento é armadilha

os cartões-postais realizam um cortejo tímido

as paredes vestem um luto cordial que se renova

as águas dão forma a céus de misericórdia.

 

longe do corpo o relevo de um sorriso adormece elefantes

o nome próprio é um signo abstrato e sangra a falta de carne

os músculos são cordões inanimados em jogo voraz

os pássaros tomam posse da cabeleira abandonada.

 

.

 

noite turva.

 

um casal emplumado

encarou a tempestade de ferrugem

com a ternura de um abraço profundo.

suportaram o assombro do céu e

os ataques nervosos.

 

bateram-se contra às águas e os ventos

como se o peito fosse de marfim e

a coragem, uma armadura impermeável.

 

(o baile cambiante das pernas

na regência dos trovões vorazes

seguia em compassos de pavor)

 

o império turvo do céu

rogava assombros em lastros

de serpentes luminosas.

 

o casal lutou na rinha feroz da noite

que não oferecia extremidade

ou margem para abrigo.

 

 

 

oração fluvial

 

a morte valoriza o corpo no instante em que levita

anatomia lírica confessada ao tubarão

frondosa entrega nos planos gerais da cavalgada

no momento impreciso da travessia.

 

noites-relíquias enfileiradas na estante do antiquário

dão a dimensão das oferendas colecionadas.

os herdeiros à espera da última admiração

se lançam na memória movediça.

 

que divindade se escondia na barba de um assírio?

qual a distância entre dois desconhecidos?

que música é possível na hora do sacrifício?

 

a seiva vital escorreu do tronco carnudo

formou um açude que, de cheio, sangrou

oração fluvial que se repete por anos.

 

 

.

Clique nos links para ver os vídeos dos poemas:

Nas curvas da lua minguante | Demetrios Galvão

Herdeiros | Demetrios Galvão

 

.

 

 

.

Demetrios Galvão – poeta, professor e historiado com mestrado em história do brasil (ufpi). publicou os livros cavalo de tróia (2001), fractais semióticos (2005), insólito (2011) e  bifurcações (2014). participou do coletivo poético academia onírica e foi um dos editores do blog poesia tarja preta (2010-2012) e da ao-revista (2011-2012). tem poemas publicados em diversos portais e revistas. atualmente é um dos editores da revista acrobata.   e-mail: demetrios.galvao@yahoo.com.br

 

.

afonso henriques neto – nasceu em belo horizonte. mora no rio de janeiro desde 1972. já publicou 12 livros de poesia e participou de várias antologias no país e no exterior, entre elas, “26 poetas hoje (org. por heloisa buarque de holanda) e “poesia. br” (org. por sergio cohn). tem, no prelo, pela editora azougue, seu primeiro livro de contos, “relatos nas ruas do espanto”.

 




Comente o texto


*

Comente tambm via Facebook