Bashô, o gênio do haiku


 

O poeta japonês Matsuo Bashô (1644-1694) escreveu mais de mil haikus, que são pequenos poemas de 17 sílabas. No Brasil, o termo haiku (pronuncia-se háiku) quase não tem sido usado, dando-se preferência a haikai, denominação que caiu em desuso no Japão há mais de um século. Isso merece uma discussão, sobretudo agora que acaba de sair a primeira edição completa dos poemas de Bashô em português sob o título O eremita viajante (Assírio & Alvim, 2016, 424 páginas, Lisboa, Portugal), na qual se abole o termo haikai.

Joaquim M. Palma, que organizou e traduziu os poemas, explica na introdução que o termo haikai é muitas vezes uma abreviação para haikai-no-renga, um tipo de poesia longa composta por vários poetas, pouco praticada no Japão atualmente. No passado, era considerada divertida e, às vezes, satírica, enquanto o haiku (que originalmente se chamava hokku), sem abrir mão do humor, teria optado, sobretudo a partir do século XVII, por expressar sentimentos elevados, como se verifica, por exemplo, na obra de Yosa Buson (1728-1783), discípulo declarado de Bashô. Talvez no Brasil o que se considera haikai seja com muita frequência um tipo de poema satírico que em japonês se chama senryu, uma denominação que ainda não foi introduzida no nosso país.

O leitor de língua portuguesa encontrará em O eremita viajante não apenas uma boa apresentação das características básicas do haiku ao longo do século XVII, época em que viveu Bashô, como também dados fundamentais sobre a vida desse artista, considerado o maior poeta do Japão e que passou boa parte da vida adulta percorrendo a pé seu país, apesar da sua saúde frágil, assunto que ele abordou em alguns poemas. Vestia-se muitas vezes de monge errante e hospedava-se em casa de amigos ou em modestas pousadas de beira de estrada. Uma das suas últimas composições menciona sua condição de poeta acamado: “a doença atacou o viajante –/sonhos vagueiam/por campos secos”. Num outro, anterior, como se anunciasse a própria morte, declara: “pela estrada/onde ninguém passa/parte o outono”.

Joaquim M. Palma esclarece que usou como fonte as edições inglesa e francesa dos haikus completos, mas, diferentemente delas, a edição portuguesa não traz os textos na grafia original. Na verdade, apenas a francesa faz isso; a inglesa se limita a oferecer, ao final, os versos em “romaji”, um tipo de escrita que usa letras do alfabeto latino para grafar as palavras japonesas. Quando o tradutor português discute a divisão silábica do haiku (três versos de 5-7-5 sílabas), limita-se a oferecer exemplos também em “romaji”, pois não é fluente em japonês, como confessa, não se sentindo capaz de trabalhar diretamente com os complexos ideogramas de origem chinesa, os “kanjis”, que Bashô usou para se expressar. Joaquim M. Palma não adota na sua tradução a métrica original, sob a alegação de que optou por privilegiar a simplicidade e a espontaneidade das composições. Ou seja, o seu critério foi a fluidez, embora Bashô, sendo um poeta do século XVII, com certeza não deve parecer sempre simples e espontâneo aos leitores japoneses no século XXI.

Um dos poemas mais famosos de Bashô ficou assim na tradução portuguesa: “salta a rã/para dentro do velho tanque–/plof!” Segundo alguns críticos, o poeta expõe nesse haiku, que seria puramente descritivo, algo que ele viu de fato. Segundo outros críticos, o poeta estaria dizendo nessa composição “eu estou só”. Mas talvez seja interessante destacar, acima de tudo, o equilíbrio delicado entre humor e melancolia. Uma leitura contemporânea afirma que o poeta poderia estar propondo aqui uma teoria cosmológica; dos primórdios do universo vem o barulho da água que ouvimos neste haiku.

Há muitos sons transcendentes e jocosos na obra de Bashô, e alguns são provocados intencionalmente pelo próprio poeta, como neste exemplo: “bato as palmas–/o som bate na lua/e regressa à origem”. De fato, nem tudo é pura descrição na sua poesia; o sentido das breves composições imortais de Bashô é muito mais misterioso do que se imagina.

 

 

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Leia a introdução da edição e alguns haikus, aqui.

Para encomendar a edição: Assírio & Alvim.

 

 

 

 

 

 

Sérgio Medeiros nasceu em Bela Vista (MS). É poeta, ensaísta e tradutor. Verteu para o português, entre outros, o poema maia Popol Vuh (Iluminuras, SP), indicado ao Jabuti, na categoria melhor tradução, e a crônica histórica A Retirada da Laguna (Companhia das Letras, SP), do Visconde de Taunay, texto escrito originalmente em francês. Seu ensaio A formiga-leão e outros animais na Guerra do Paraguai (Iluminuras, SP) foi finalista do Prêmio Rio de Literatura em 2016. Publicou vários livros de poesia, entre outros, Mais ou menos do que dois (Iluminuras, SP), Alongamento (Ateliê, Cotia, SP) e Totem e Sacrifício (Jakembó, Assunção/Paraguai). Seus poemas já foram traduzidos para o espanhol, o italiano e o inglês. Seu novo livro de poesia, A idolatria poética ou A febre de imagens, foi publicado em 2017 pela editora Iluminuras, que também lançou em edição digital a coletânea Poemas que se deslocam. No momento, finaliza um novo trabalho na área da poesia, O passo do totem, ainda sem previsão de lançamento. Ensina literatura na UFSC e coedita o jornal on-line Qorpus . Colabora no jornal “O Estado de S. Paulo”. E-mail: panambi@matrix.com.br

 




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