Aos amigos cearenses
…………………………….[Arquivo/Leo Martins/27-2-2014]
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Vocês não podem nem imaginar, mas sou amigo do Belchior (vida/vento/vela/leva-me daqui), do tempo em que ele fez uma espécie de estágio existencial-musical em BH, na época em que o Clube da Esquina tinha feito aquela obra maravilhosa com esse título, com Lô dividindo com Milton (até hoje quando ouço Girassol nos seus cabelos, de Lô e Márcio Borges, ardo por uma mocinha de 18 anos quando eu ia fazer trinta), Beto (na voz e guitarra), Fernando, Marcinho e Ronaldo arrasando nas letras. Se alguém tiver o disco de vinil veja lá na última linha de fotos, no final à esquerda, ao lado da amada (o coração ainda bate e o tempo não passou) com os cabelos escorridos, a minha foto (de óculos). Mas o Belchior. Começou ele a frequentar o Suplemento Literário de Minas Gerais, onde se reuniam os artistas todos para fazer artes e molecadas. Belchior, vejam só, era um radical em poesia, só admitia de Haroldo de Campos para cima, ou seja, o que ainda nem fora inventado.
Do Suprimento Literal, como o chamávamos, íamos direto para o Saloon. No percurso, com seu violão e vozeirão, Belchior cantava nas ruas de Belo Horizonte, que precisavam muito disso com seus habitantes soturnos. No Saloon nos esperava o China, o garçom, que costuma perguntar a todos da turma: “Já está mais satisfeito com o seu sexo?” Eu estava, pois meu coração batia, como disse, só de ver sob a porta de entrada (daquelas de saloon mesmo) o tênis da moça, que vinha matar aula comigo, meu casamento balançando pelo sofrido amor dos bígamos com caráter, para não dizer culpa, para não dizer um amor amplificado.
Depois disso o Belchior desapareceu, e quando reapareceu era um cantor e compositor pop, lotando teatros e vendendo porrilhões de discos (Eu sou apenas um rapaz latino-americano…), criando uma persona integral em cena, com botas inacreditáveis, e botões imensos nas jaquetas, cabelões, bigodões e mil penduricalhos. A crítica mais sofisticada esnobou, mas eu confesso que gostava, pois gosto desses fakes que são as personalidades construídas do showbusiness, como Madonna, the best of them all, os atores da música. Mas confesso também que meu coração batia mais pelos inícios de Belchior, Na hora do almoço, aquele vozeirão arrematando ao fundo: pai na cabeceira.
Outro cearense (se não nasceu lá, criou lá coisa fina) de quem fiquei amigo foi Orlando Senna, coautor do admirável Iracema, o melhor road movie brasileiro, Pereio entrando de corpo e alma nas meninas da estrada, compungindo nossa alma, pois elas mereciam muito mais do que aqueles fados. No tal evento literário em Fortaleza, em que fui escudado pelo falso Secretário de Cultura, encontrei com Orlando. Ele estava lá dando um curso de cinema e um dia fomos para um encontro literário (era um lance do Mercosul) coordenado por ele. Só que tudo deu errado e a sala (oficial) ia fechar dentro de meia-hora. Então cada autor, brasileiro ou argentino, tinha uns minutinhos (mesmo) para ler o que quisesse de sua obra. Lembro-me de que li um parágrafo, talvez nem isso, de um conto, e talvez essa tenha sido uma das melhores reuniões literárias (essas coisas em geral chatérrimas) de que já participei. Vida de artista às vezes é bem legal, e encontrei Orlando Senna também num Festival de Gramado, já com abertura para toda América Latina, sempre fino, gentil e inteligente, o Orlando, acho que agora mandachuva no audiovisual do Brasil, não brincam em serviço os meus amigos cearenses.
Mas história puxa história e, nessa coisa toda do Mercosul, fomos parar em Mendoza, Argentina, onde nunca chove e a água vem canalizada da neve dos Andes, que a gente avista da cidade. Prosseguindo nessa cascata, sabem quem estava lá? O Brad Pitt, filmando Sete anos no Tibet, e quando a gente saía de carro para passear na base das montanhas via a aldeia tibetana, pequenininha, que na tela dava uma impressão de estar lá mesmo na terra do Dalai Lama, figura fácil aqui no Brasil. E num desses passeios, o indefectível terremoto, as verdadeiras rolling stones. Gente, preciso arranjar um mote para fechar esse texto, em que já me perdi. E esse mote é… O falso, a representação, que compõe a arte do segundo Belchior, as Iracemas do século vinte representando elas próprias, o Secretário de Cultura do Ceará, Madonna, o Tibet em Mendoza, nesse encontro de homens e mulheres notáveis, e enquanto escrevo sinto atrás de mim, espiando por cima do meu ombro madame Blavatsky e Gurdjeff, os mais fakes, para não dizer enganadores, de todos os autores, místicos e pensadores. E, por fim, eu mesmo, me exibindo, para desespero do Carlos Emílio (me lembro dele sempre com um livro de sua autoria para vender em todos os lugares do Rio), um dos cearenses de Cronópios, reclamando críticas (elogios, com toda certeza) aos seus textos. Então lá vai, Emílio, você pediu. Sabe qual é o problema? Prolixidade. Mas você é um guerreiro, um Quixote das letras brasileiras, sempre arremetendo de lança em riste, com o seu Rocinante cavalgando em todas as direções.
PS. Terminei o rascunho da coluna e fui caminhar. Na caminhada me perguntei se esse golpe de ser uma falsa autoridade não é comum no Ceará, para iludir forasteiros incautos como eu. O problema é que, de vez em quando, a tal pessoa se torna mesmo uma autoridade, caso do marechal Humberto de Alencar Castelo Branco, que disse que era presidente do Brasil e colou, iniciando um dos períodos mais negros da história nacional, quando as TPMs dos generais custavam caro aos brasileiros.
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[Texto inicialmente publicado no site Cronópios]
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Sérgio Sant’Anna é carioca e um dos principais escritores brasileiros. Tem 18 livros publicados, inúmeros prêmios (Jabuti, Portugal Telecom, APCA) e livros traduzidos para vários idiomas. Seu livro mais recente é O homem-mulher, Companhia das Letras, 2014. E-mail: sergiosant@openlink.com.br

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