Abalo sísmico


“Submissão” tira a venda dos nossos olhos

.

Entre as razões que me fizeram detestar O mapa e o território (o incompreensível prêmio Goncourt de 2010), estavam a autocomplacência com que se narrava ali o irrisório da existência pós-moderna, liquidado qualquer horizonte que não seja o mercado, e sua prosa pastosa e entulhada[1].

Temia, então, que Submissão, o novo romance — após cinco anos de silêncio — de Michel Houellebecq, cujo lançamento acabou associado ao atentado sofrido pelo “Charlie Hebdo” — e no qual se imagina um presidente muçulmano que chega ao poder na França em 2022,  instaurando profundo retrocesso dos costumes — seguisse o mesmo caminho, pois François, o narrador,  admirador e estudioso do decadentista J. K. Huysmans (1848-1907), autor de Às avessas, caracteriza a si mesmo do seguinte modo: «Meu interesse pela vida intelectual decrescera muito; minha existência social não era mais satisfatória do que a corporal, ela também se apresentava como uma sucessão de pequenas amolações — pia entupida, internet fora do ar, perda de pontos na carteira de motorista, faxineira desonesta, erro na declaração do imposto — que também se sucediam sem interrupção, praticamente nunca me deixando em paz»; ou seja, mais um apático, sem fibra ou ardor, que não nos desperta a menor empatia, como os personagens do livro anterior (não obstante a eles pudesse se aplicar o lamento do Mr. Gwyn de Baricco: «Um dia percebi que nada mais me importava e que tudo me feria mortalmente…»)[2].

Pensei: lá vem outro mapeamento aborrecido da nulidade contemporânea (felizmente não tão prolixo quanto o anterior)! Para minha imensa surpresa, Submissão[3] é um abalo sísmico ficcional — além disso, apresenta uma prosa de surpreendente precisão. Assustadora, entretanto, para o leitor brasileiro, é a analogia com a atual situação política em nosso país (não à toa, no livro há uma manifestação direitista nas ruas de Paris, e lemos: «De acordo com os organizadores, havia dois milhões de pessoas — trezentos mil, segundo a polícia…»), com nossa presidente acuada por seus supostos aliados, mais perigosos do que seus adversários, e cercada pelo congresso mais conservador e propenso a retrocessos da nossa história recente: «…esse espetáculo vergonhoso, mas aritmeticamente inelutável, da reeleição de um presidente de esquerda num país cada vez mais abertamente de direita […] um ambiente estranho, opressor, se espalhara pelo país. Era como um desespero sufocante, radical, mas perpassado aqui e ali por clarões insurrecionais…»[4].

O alienado François («…sentia-me tão politizado quanto uma toalha de rosto…»[5]) se vê engolfado pela tremenda reviravolta civilizatória ocorrida em sua nação, e por não ser muçulmano é desligado da universidade (até então acomodara-se numa amorfa carreira de funcionário público). Aos poucos, com sua falta de bússola ontológica, deixa-se cooptar pelo novo regime, numa “suave” conversão.

A fantástica advertência que Submissão realiza não é um discurso defensivo em favor do Ocidente e anti-Islã! O que Houellebecq mostra, de forma cabal, é o que nós mesmos acompanhamos por aqui: partidos de esquerda, cujo discurso, para não falar da prática governamental, mal difere da direita, e sobretudo o amolecimento de ideais, a abdicação de convicções ideológicas, abrindo caminho para que o ranço conservador e reacionário, o fundamentalismo religioso (de todos os matizes), permeassem alianças políticas malsãs, diminuindo consideravelmente o escopo dos avanços sociais e dos costumes, e dando margem para que qualquer contrapartida totalitária ao vácuo espiritual deixado como rastro de óleo pelo triunfo do mercado e do consumo (particularmente o apelo à “ordem”, a nostalgia de uma tradição em que os valores morais eram respeitados, e aos quais a maioria era submissa) tenha enorme poder de atração para as massas (no final, parece que vencerá a demografia ao invés da democracia): «Que a história política conseguisse ter um papel em minha própria vida continuava a me desconcertar, e a me repugnar um pouco. Contudo, eu percebia claramente, e fazia anos, que a distância crescente, agora abissal, entre a população e os que falavam em seu nome, políticos e jornalistas, devia necessariamente levar a algo caótico, violento e imprevisível […]até recentemente eu ainda estava convencido de que os franceses, em sua imensa maioria, continuavam resignados e apáticos—talvez porque eu mesmo estivesse razoavelmente resignado e apático. Eu estava enganado».

Esse perigo crucial (render-se a um espúrio antídoto ao caos atual)  poucas vezes foi mostrado de forma tão contundentemente pedagógica. Submissão é uma leitura vital e necessária, daquelas que bruscamente tiram dos olhos todas as vendas, mesmo as mais resistentes. Por  paradoxal que seja, me remeteu à seguinte passagem bíblica (de Reis6, 17-19) : «Eliseu orou, e disse: Senhor, abre seus olhos, para que ele veja! E o Senhor abriu os olhos do servo, e ele viu; e eis que a montanha estava coberta de cavalos e carros de fogo, em torno de Eliseu! E, quando os arameus desciam contra ela, Eliseu orou ao Senhor: Fere, peço-Te, esta gente de cegueira! E o Senhor feriu-a de cegueira, conforme a palavra de Eliseu. Então Eliseu lhes disse: Não é este o caminho, nem é esta a cidade…».

 

 

 

TRECHO SELECIONADO

«… a direita liberal ganhara a “batalha das ideias”, Ben Abbes entendera perfeitamente isso, os jovens tinham se tornado empreendedores, e o caráter insuperável da economia de mercado era, agora, unanimemente admitido. Mas, o verdadeiro lance de gênio do líder muçulmano foi entender que as eleições não se disputariam no terreno da economia, e sim no dos valores […]. Ali onde Ramadan apresentava a charia como uma opção inovadora, e até revolucionária, ele lhe restituía seu valor pacífico, tradicional — com um perfume de exotismo que a tornava, para completar, desejável. Quanto à restauração da família, da moral tradicional e, implicitamente, do patriarcado, abria-se uma avenida diante dele, que a direita não podia palmilhar, a Frente Nacional também não, sem serem qualificadas de reacionárias, e até de fascistas pelos últimos remanescentes de Maio de 68, múmias progressistas moribundas, sociologicamente exangues mas refugiadas em cidadelas midiáticas de onde continuavam capazes de lançar imprecações sobre a desgraça dos tempos e o ambiente nauseabundo que se espalhava pelo país; só ele estava ao abrigo de qualquer perigo. Paralisada por seu antirracismo constitutivo, a esquerda foi desde o início incapaz de combatê-lo, e até de mencioná-lo».

 

.

NOTAS

[1] Como afirmei, num comentário no FACEBOOK: «Terminei O mapa e o território com a forte sensação de que era o Ricardo Lisias reescrito pelo Daniel Galera (infelizmente, o de Barba ensopada de sangue), com pitacos do Bret Easton Ellis.

[2] Talvez a respeito de O mapa e o território possa se aplicar uma consideração de François sobre uma das obras de seu ídolo literário: «…contar, num livro fadado a ser decepcionante, a história de uma decepção…».

[3] No original, Soumission, e cujas passagens citadas são da tradução de Rosa Freire d´Aguiar.

[4] No romance, o presidente francês “se faz de morto”—e espero que esse não seja o destino político de Dilma Roussef: «Ao término de seus dois calamitosos mandatos…, devendo sua reeleição apenas à estratégia lamentável que consistiu em favorecer a ascensão da Frente Nacional, o presidente praticamente desistira de se manifestar, e quase toda a imprensa parecia até mesmo ter esquecido de sua existência.».

[5] Ele também diz, a certa altura: «…decididamente a fibra espiritual era quase inexistente em mim…». Entretanto, creio que a declaração mais eloquente sobre sua condição existencial é a seguinte: «A expressão “Depois de mim, o dilúvio” é atribuída ora a Luís XV, ora à sua amante, Madame de Pompadour. Ela resumia bastante bem meu estado de espírito, mas era a primeira vez que uma ideia inquietante me cruzava o espírito: o dilúvio, afinal de contas, poderia muito bem se produzir antes de meu próprio falecimento». Quase a usei como epígrafe.

 

.

[Uma versão da resenha acima foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 5 de maio de 2015)

 

Assista a uma entrevista de Michel Houellebecq:

 

 

.

Alfredo Monte, 46 anos, é natural da Baixada Santista, corinthiano, doutor em teoria literária e literatura comparada, professor apaixonado pelo ensino fundamental e crítico literário do jornal A TRIBUNA de Santos há 19 anos. Mantém o blog literário Monte de Leituras há três anos. E-mail: armonte2001@yahoo.com.br




Comente o texto


*

Comente tambm via Facebook