A palavra ausente


 

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Há uma falta ontológica em cada um dos narradores dos 10 contos que compõem o livro A palavra ausente, de Marcelo Moutinho (Rocco, 2011). Essa falta é o motor da escrita, a força da travessia, o estado de liquefação de um sentido único para cada acontecimento. A palavra ausente produz presenças no lugar exato em que cada narrador se revela ao leitor. De “Água” até “Dona Sophia” há um dispêndio radicalmente humano, porque inútil, cuja finalidade é preencher tempos e espaços da memória afetiva e concreta, engendrar efeitos especiais que permitam à apreciação da existência.

Cada conto guarda um método particular de convivência com a inexistência da angústia de sentido, mas é no conto que fecha o livro – “Dona Sophia” – que quero centrar minhas observações. A narradora do conto escreve a partir (depois) do contato transformador que ela teve com Sophia de Mello Breyner Andresen. Designada para cuidar da estadia da escritora no hotel em que trabalhava em Manaus, a narradora (sujeito “comum”, anônimo) primeiro conhece a mulher e só depois, quando a hóspede vai embora, é que ela descobre a poeta. E se reconhece.

“Uma senhora de cabelos cacheados e grisalhos, olhos claros, bem magra. Era Dona Sophia. (…) Falava de uma forma estranha, na mesma língua que a gente fala, mas com um som diferente, sei lá. Tive que me segurar para não rir”, descreve a narradora. E já aqui podemos perceber que a zona de contato entre narradora e poeta se materializa para além de preconceitos e instrumentos teóricos. Sophia de Mello Breyner Andresen revela-se muito próxima da camareira-narradora. A única diferença é que enquanto uma – Sophia (poeta: “como se ouvisse uma música que ninguém mais ouvia e que fazia o corpo mexer”) – escreve motivada pelo canto da musa (a poesia), a outra – camareira (anônima – mulher “comum”) – escreve motivada pela sereia (a poeta/escritora): “Falava de uma forma estranha, na mesma língua que a gente fala”. Ambas irmãs na terra: ambas signos de elemento água, com o livro de Marcelo Moutinho, em uníssono com a vida, atentas àquilo que mina e escorrer sem que tenhamos – nós, humanos – a competência para a apreensão.

“Ela esperou alguns minutos até que eu terminasse com a cama e me agradeceu baixinho”, destaca a narradora. Sophia intervém na vida da camareira pela chave do lugar desta no mundo: o trabalho. “Era uma escritora famosa (…) ia receber um prêmio no Teatro Amazonas (…) o teatro é lindo. Nunca visitei, mas, se todo mundo diz, é porque é”. Do mesmo modo, a narradora-camareira não conhecia a hóspede, mas se o patrão diz que ela é importante é porque é. O que poderia ser lido aqui como um discurso da resignação do subalterno, eu leio como uma potencialidade em movimento: “Eu devia dar toda a atenção para a Dona Sophia. Toda a atenção, entendeu?, e ele [o patrão] repetiu isso umas quatro ou cinco vezes. Já tinha entendido na primeira”, anota a narradora para mais adiante dizer: “Apesar de a gente ser tão diferente (…) pareço muito com a Dona Sophia (…) no ritmo secreto que só nós duas conhecemos”. A identificação desse ritmo (secreto) é a resposta perfeita da camareira à poeta.

Uma é sereia de água doce (de rio): a camareira – que escreve (canta sua história) depois de tocar (e ser tocada por) o mar. A outra é sereia de água salgada (de mar): Sophia. Cada uma em mundo e tempo frequênciais únicos, singulares. A epifania reside na tradução que a camareira produz e no nivelamento, pelo Humano, das duas personagens.

Salvo as especificidades das linguagens, observo na camareira do conto de Marcelo Moutinho um gesto semelhante ao vivido pelo sujeito da canção “Onde eu nasci passa um rio”, de Caetano Veloso. Ambos sabem que “dentro do mar tem rio, dentro da dor a canção, dentro do guerreiro flor”, como canta o sujeito de outra canção. Porém, mesmo desaguados no mar, preservam a força criadora e genésica que o rio (doce, menor, mais íntimo que a imensidão salgada marinha) serpenteia na estrutura – humana e estética – de cada um.

Sempre passando (“passa no igual sem fim”), atravessando, nunca o mesmo, o rio é força na vida do sujeito da canção e da narradora do conto. O rio interfere na vida do sujeito da canção: “O rio da minha terra / Deságua em meu coração”. Assim como intervém na vida da camareira: “No rio já entrei. Com o rio eu vivo desde bem menina”. Há uma promoção concentrada de conhecimento: “Nunca tinha visto uma escritora antes. Muito menos premiada”. De enriquecimento: “Igual, sem fim, minha terra / Passava dentro de mim”. E o saldo cognitivo é digno de notas. “Hoje eu sei que o mundo é grande”, diz o sujeito da canção. “Antes, o rio para mim era só rio, às vezes fundo, às vezes raso, às vezes limpo, às vezes sujo, mas só ele mesmo, o rio”, anota a camareira-narradora.

“Eu fiquei pensando como seria se a gente de repente virasse água no meio de tanta água”, desaguasse no mar, anota a camareira depois de ler o livro deixado como presente por Sophia. Seja como for, enquanto duram, conto (canto) e canção singularizam a narradora e o sujeito no mundo estético. Ambos querendo permanecer presença no leitor/ouvinte, mesmo depois de fechado o livro e de finda a canção. E é aqui que o trabalho de Marcelo Moutinho ganha outras novas dimensões: na artesania de construir pela linguagem verbal uma voz narrativa feita de delicadezas, desprovida de vontade de sentido, que apenas deseja estar no mundo.

“Antes de existir a voz existia o silêncio”, canta Arnaldo Antunes. A impronunciável e/ou silenciada palavra é prenhe de conteúdos: do velho pai diante do filho que lhe banha (“Água”), da separação de dois bons amantes (“Cavalos-marinhos”), dos dedos apertando a xícara de chá (“Interlúdio”), do ex-mestre-sala que agora faxina os banheiros da quadra da Escola querida (“Folia”), do menino feito homem que se assemelhando ao pai perde (a figura de) o pai (“Jogo-contra”), por exemplo. Há sempre uma nervura líquida e tesa atravessando A palavra ausente e dizendo ao leitor que algo se quebrou e está minando. Mas sempre em direção ao mar, à poética da existência.

 

 

 

 

 

 

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Leonardo Davino de Oliveira é Paraioca. Pesquisador, ensaísta e escritor, especialista e mestre em Literatura Brasileira. Doutorando em Literatura Comparada com projeto sobre Canção (Poéticas vocais) e Teoria da Literatura. Assina o blog Lendo canção: http://lendocancao.blogspot.com E-mail: leonardo.davino@gmail.com




Comentários (1 comentário)

  1. Bia Bernardi, Meu Deus… onde acho esse livro pra comprar??
    12 fevereiro, 2012 as 16:10

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