A Lira Fractal de Seraphim Pietroforte


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Boa poesia é sempre poesia engajada. Não, porém, com as vilezas do mundo chão ou com os vãos desígnios da política – “a arte pouco interfere nisso”, como diria Glauco Mattoso –, mas consigo própria e com sua história. Se tangencia a realidade, louva e censura grupos e pessoas, expressa e causa sentimentos nos corações dos impressionáveis, fá-lo em segundo plano. Boa poesia é, por um lado, imitação, artifício, dolo e logro; é um adensamento (Gedichtung, como diria Vilém Flusser) do intelecto sobre si mesmo, que coage o pensar com novas regras e, em sacra relação com o indizível, expande a linguagem humana ao conferir-lhe novas possibilidades de significar a realidade. A verdadeira arte cria muros em torno da realidade insossa. A arte poética, assim como as demais, erige novas paredes para cercar o sentido, e cercar o sentido não é limitá-lo, mas fornecer novos elos para a corrente que aprisiona Prometeu ao rochedo. Poetizar é celebrar o esgarçamento dos limites da condição humana, que se mantêm sempre limites, não importa o quão alargados.

Em seu anverso, a Poesia se engaja com a história. Não com a historiografia, a ciência de desvelar o passado, mas com sua história. A poesia que não dialoga com suas fontes, que não rearticula seu passado, produz expansão falsa e inautêntica da realidade. É a perigosa força destrutiva da salada de palavras, disfarçada de poesia inovadora, que cospe sequências de sintagmas e verbos a esmo, em profundo cisma com o intelecto. Seu Prometeu desacorrentado aparenta ser deus, mas seu destino nas mãos de Nubícogo Zeus espreita à esquina; a poesia desengajada de sua tradição crê ser mais do que a linguagem – que já nos é tudo! –, crê ser deusa de si própria. Cristã, portanto, com todos os males que isso acarreta. A poesia que se engaja e enfrenta a si própria, por sua vez, no diálogo com as bocas de seus arautos do passado, sabe ser incapaz de elevar o humano ao divino. Ela o torna daímon, intermediário entre deuses e mortais, entre o Nada e o Intelecto. A poesia engajada consigo faz (poîei, de poiétes) do humano daimoníos (numinoso), diaboúlos (propulsionador). Faz dele demônio e diabo. A boa poesia é satânica, inimiga de si própria, em eterna guerra com seu passado. A boa poesia é confronto: é o impassível cerco a Ílion na arena da linguagem.

Mas como ser Odisseu nesse cerco, se essa nossa contemporaneidade já revelou Ítacas 93 bilhões de anos-luz além de nosso globo aguado? Poder-se-ia dizer que, aparentemente, não há mais mares nunca dantes navegados, e que se percorreram todos os caminhos. Essa é, de fato, a resposta preguiçosa e perigosa. A única coisa que sabemos é o não-saber. A sensação de esgotamento advém da mesma culpa cristã e da falta de diligência do poeta ensimesmado, burguês e comezinho, que mergulha a poesia na temível e balbuciante sopa de letrinhas do pensamento. O poeta que se acha deus fixa como horizonte o próprio umbigo: daí que tudo já foi feito!; já o poeta diabo, ao fixar seu horizonte, mira um outro capeta e o enfrenta – tecem uma trama diabólica, uma horda de anjos caídos –. O poeta diabo reigns in hell, e caçoa de quem serves in heav’n.

As faces mais satânicas das artes verbais em língua portuguesa sempre foram aquelas que se engajaram, helenisticamente, com a experimentação: da agudeza narrativa de Machado ao esoterismo de Rosa, na prosa, e dos labirintos barrocos às revoluções do Modernismo, da PO:EX e do Concretismo, na poesia. Nosso exército de demônios marcha em formação Calimaquiana e Alexandrina, ele rompe nós górdios criando novas formas de redizer o velho. It keeps invention on a noted weed, diria O Bardo. O advento das poéticas visuais, devido à força de sua máquina de guerra, pareceu ter apontado de vez o horizonte da batalha: E M de Melo e Castro, Augusto de Campos e Ana Hatherly aqui, são Legião. O front de batalha da poesia verbal, desde as revoluções das hordas Drummondianas e Mattosianas, parecia deserto. Discordo. A campanha de Seraphim Pietroforte segue no extremo desse horizonte, conquistando novos territórios para a arte poética e, consequentemente, para nosso diabólico intelecto.

Pureza da Pauta é um livro imerso num contexto literário no qual, mais do que nunca, é necessário que a poesia se engaje com sua própria história, e demonstre que ainda é possível se valer da singeleza e da diligência como instrumentos de revolução. Tarefas que o livro não apenas realiza, mas redireciona a novos paradigmas. É um trabalho que se encaixa como elo de nossa conversação combativa, e anseia por ser enfrentado. Um livro para se refletir sobre, em ambos os sentidos da palavra “reflexão”. O primeiro se manifesta quando, ao aplicar o raciocínio até aqui exposto ao caso concreto, consideramos Pureza da Pauta no eixo da tradição da lírica: ele se torna a lente que espelha uma conversação iniciada a mais de dois mil e seiscentos anos, chamada “poesia erótica”. Nesse sentido, o livro propõe um novo éthos para o poeta tomado pelas paixões, até então restrito ao eixo catuliano da ânsia pelo amor irrealizado e do lamento do amor perdido. A poesia de Seraphim Pietroforte não aponta para o dilacerar excruciante de ódio e amor, nem para o anseio de cobrir sua Lésbia com milhares de beijos; ela nem sequer possui, como sói ser no gênero, um objeto de desejo único (i.e. uma amada) que propulsiona a torrente de versos. Sua posição é a do interregno entre relacionamentos, o momento de plácido respiro entre os assaltos da paixão. A busca a qual o autor alude em seu escólio é menos a busca por um novo amor após a perda, mas a busca por um estado sublime de solidão meditativa; um enamorar-se de si próprio, que permite dar vazão aos afetos da mente, e não aos do peito traiçoeiro.

Em Pureza da Pauta, o cérebro toma o lugar do coração como órgão dos amores. Vejamos, o tempo do poema é o da lembrança especulativa, é o subjuntivo e o futuro condicional do pretérito (faria jus? Só se visse sua boca); Seraphim Pietroforte não se pergunta, como fazem Catulo e o Werther de Goethe, do porque se sente perdido no turbilhão dos amores, mas por onde andará seu pensamento. É poesia que não lê o vislumbre de Eros como desculpa para se esvair em lágrimas, mas que reconhece o poder que há na imaginação como propulsora dos amores. É poesia videodrome, ama não a moça no encarte do CD, mas a composição da fotografia; não deseja a filha da traficante, mas flerta com as contradições as quais desejá-la implica. Um amor complexo, como se pode ver, transmitido, no entanto, com versos leves, enxutos, paratáticos; não vemos aqui um falar desbragado, entristecido, dilacerado, mas a serenidade búdica de um falar contemplativo (o paradoxo é olhar a velha/e viajar). Seraphim Pietroforte não se engaja contra Catulo com deselegantes armas de destruição em massa (como fazem os novos meninos chorões da poesia brasileira), mas com diplomacia e estratégia. Sua concepção do amor não se soma ao coro dos desesperados, mas à minoritária (porém muito mais refinada) corrente de poetas que cultuam a face filosófica de Eros.

Não platônico, porém, como se poderia deduzir agora, é Seraphim Pietroforte. O poeta viveu o amor de outrora, que agora rememora: invoca as sensações do passado e as disseca por meio do verso. Não está perdido no eîdos, no prospecto, mas guia-se com cautela por entre as selvas do vivido; sua catarse é revisitar a bela lembrança dos pés de uma moça sobre o assento de uma cadeira, e pertencer-lhe novamente nesse efêmero momento de reflexão. Nesse enamorar-se solitário e contemplativo, o poeta forja aliança com as tropas de Safo de Lesbos.

Erroneamente enquadrada pela crítica pudica como “melancólica”, a rival das Musas é, muito pelo contrário, a poetisa que aborda a temática do amor por meio da memória. Seu éthos é o da mulher madura, que fita o passado e recorda os prazeres vividos, imbuída de eufórica nostalgia. Em um de seus poemas, o fragmento 95V (abaixo), Safo realiza seu tema de amor e memória com a descrição da lembrança de uma moça chamada Gôngula (supostamente, uma de suas discípulas):

 

ου
.

ᾖρ’ ἀ[

δηρατ.[

Γογγυλα.[

 

ἦ τι σᾶμ’ ἐθε.[

παισι μάλιστα .[

μας γ’εἴσηλθ’ ἐπ.[

 

εἶπον· ὦ δέσποτ’, ἐπ.[

ο]ὐ μὰ γὰρ μάκαιραν [

ο]ὐδὲν ἄδομ’ ἔραρθ’ ἀγα[

κατθάνην δ’ ἴμερός τις [ἔχει με καὶ

λωτίνοις δροσόεντας [ὄ-

χ[θ]οις ἴδην Ἀχερ[

[…]

 

 

… Gongula…
.

de fato algum sinal…

…especialmente…

[Hermes?] veio…

 

eu disse, “Ó Mestre…

pela sacra [deusa]

não encontro prazer em (?)…

mas um desejo de morrer [me assalta],

de vislumbrar as orvalhadas e

cobertas de lótus margens do Aquer[onte] .

[…]

.

Ainda que em estado fragmentário, o poema permite que retiremos dados importantes de sua composição. Pautando-nos por filólogos da estirpe de Denys Page (1955:86), por exemplo, somos levados a entender que Safo deseja a morte por estar possuída por um amor perverso, ou, no máximo, por querer estar de novo ante o amor perdido – análises rasas e desconhecedoras de seu moralismo –. Com o advento, no entanto, de teóricos como a americana Jane Snyder (1997), podemos ler o poema de Safo como uma prece ao deus Hermes Psicopompo (guia das almas ao mundo dos mortos) para que interceda em seu favor na empreitada de rememorar os amores do passado durante o ato da masturbação. Nessa leitura, o desejo de morrer (katthánen d’hímeros tis) ao qual a poetisa alude é aquele da petite mort, o do orgasmo, e as margens orvalhadas do Aqueronte cobertas de lótus (lotínois drosóentas [ó- kh[th]ois íden Akher[) são uma metáfora para a vulva, úmida de prazer sexual. Snyder ainda adiciona que, para Safo o “desejo, conforme articulado no fragmento de Gongula, não é uma tentativa frustrada de agarrar um objeto, da maneira que diálogos platônicos posteriores por vezes sugerem como definição, mas em vez disso uma experiência elevada daquilo que é belo, uma excitação enrubescedora provocada pelo movimento e pelo estímulo visual, um sentido ativo do engajamento repetido no qual aquele que deseja é movido a expressar seu desejo através da música. É um desejo não baseado na posse, mas na celebração.” (Snyder, 1997:45)

Dessa maneira, quando Seraphim Pietroforte articula suas memórias de episódios eróticos nos poemas “Lembranças de Campo Grande – Mato Grosso do Sul” e em “Renata e o Flamenco”, fá-lo não com o espírito do poeta desvairado e amalucado que não consegue lidar com a entropia dos relacionamentos de maneira saudável, mas com o mesmo desejo de celebrar a experiência elevada do belo que marca o paradigma sáfico de composição. O poeta não questiona, como faz Catulo, “aonde conduziste minha mente com tua culpa?” (huc est mens deducta tua mea, Lesbia, culpa), mas chora o canto chão, para que a amiga dance e pare o trânsito de um estado a outro; tampouco faz convites como “Vivamos, minha Lésbia, e amemos!” (vivamus mea lesbia atque amemus) ou imprecações como “não te disse, Pródice, que envelheceríamos/Que o solver dos amores chegaria?” (ouk élegon, Prodíke; geráskomen? ou proephónoun: héksousin takhéos hai dialysíphiloi? – Rufino V.21), mas prefere observar de longe os pés da fera em sua memória e sacrificar o paladar em honra da moça do caixa na padaria. Frente a esses elementos marcantes, resta-me apenas concluir que o hedonismo, em Seraphim Pietroforte, é muito mais epicurista do que fescenino. Sua lira não vibra apenas em tons menores, mas se tensiona em harmonias que, por serem mais arraigadas no cerebral do que no cardíaco, permitem o encaixe de contrapontos mais variados e complexos.

Não apenas a leitura crítica de Pureza da Pauta evidencia as posições de Seraphim Pietroforte frente à poesia lírica. O próprio poeta reconhece sua posição nas falanges do hálux sáfico. No poema que abre o livro, cujo escólio nos indica a hesitação diante dos modos de amar em épocas passadas, Pietroforte, ressignificando Drummond, tem a poesia de amor velha por fóssil, difícil de fender alguma coisa hoje. Ele recusa os modos desbragados, as valsas caducas; questiona se bastam os versos de Gregório de Matos para a nova lírica. Antes de livro de poesia erótica, estamos diante de obra maximalista: obra que articula referências e dialoga com sua estrutura e coerções próprias. Essa consciência do artifício da linguagem, manifesta na recusa categórica aos modos confessionais e cardíacos de composição lírica, apresenta-se também, sobretudo, na seção intermediária de Pureza da Pauta: o interlúdio de reflexão sobre a linguagem (eis o segundo sentido do refletir), antes da retomada da temática amorosa, é um traço constante da poesia de Seraphim Pietroforte aqui elevado à instância de seção independente do livro. Nesse espaço consagrado a Hermes, o poeta aproveita para emular Haroldo de Campos, compondo a série “Saussure Poeta”, na qual realiza quebras de verso em excertos do Curso de Linguística Geral, conferindo-lhes nova intencionalidade poética. Por meio desse respiro entre as seções líricas, Pietroforte nos educa nos níveis de leitura de sua própria poesia: não devemos tomá-lo prima facie, buscando apenas depreender o sentido das palavras, mas sim dissecá-lo fonomorfossintaticamente, tangenciando suas incursões nos diferentes reinos da linguagem. Mais uma vez, é justo reiterar: estamos diante de poesia neuronial, não de poesia cardiopata.

O ápice da reflexão sobre a linguagem e sua artificialidade, coincidentemente, se encontra disposto no último poema de Pureza da Pauta. Nele, Seraphim Pietroforte conflita duas posições diferentes de interpretação da função da língua humana: a referencialista e a imanente. Reflexo disso tudo ou fonte do desenvolvimento dessas coisas, a linguagem é apresentada no cruzamento entre essas duas tensões. Uma leitura desengajada, nos termos aqui apresentados, poderia interpretar que a resposta não é dada pelo poeta, que a deixaria em aberto para a “reflexão do leitor”; Pietroforte, no entanto, bardo da lira fractal, não se deixa quedar em cima do muro na arena da poesia: a língua é aquilo que se manifesta em seu último decassílabo, uma estrutura para te definir.

 

 

 

Referências

 

FLUSSER, Vilém (2008). História do Diabo. São Paulo, Annablume

FLUSSER, Vilém (2007). Língua e Realidade. São Paulo, Annablume

OLIVA NETO, João Ângelo (1996). O Livro de Catulo. São Paulo, Edusp

PAGE, Denys (1955). Sappho and Alcaeus – An Introduction to the Study of Ancient Lesbian Poetry. Oxford, Clarendon Press

PATON, W. R (1960). The Greek Anthology, vol 1. Harvard University Press, Cambridge

SNYDER, Jane McIntosh (1997). Lesbian Desire in the Lyrics of  Sappho. Nova Iorque, Columbia University Press

SAUSSURE, Ferdinand de (2012). Curso de linguística geral. São Paulo, Cultrix

 

 

 

 

 

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Rodrigo Bravo é mestrando em Linguística (2017), bacharel (2016) em Letras Clássicas e bacharelando (2017) em Letras – Hebraico pela Universidade de São Paulo. Professor, tradutor e pesquisador em linguística com ênfase em tradução do discurso poético, literatura comparada e esticologia. Desenvolve pesquisa junto ao Departamento de Linguística da Universidade de São Paulo. Membro do Grupo de Estudos de Poéticas Experimentais da Universidade de São Paulo (GEPOEX). Curador e Organizador do Recital Forme de Forma e da exposição “TransFormações”, na Casa das Rosas (SP) (2017). Membro do conselho editorial da série literária Neûron, na editora Córrego.




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