A história do medo em três tempos


 

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Há que se louvar o hercúleo levantamento histórico empreendido por Leonardo Padura para construir “Hereges”, o seu mais recente livro lançado no Brasil pela Boitempo.  De fama internacional e um dos destaques da Flip 2015, ele foi ambicioso ao buscar desenvolver três argumentos numa única obra para discorrer sobre o fracasso das utopias e o medo.

“Esse é um livro cuja unidade tem um conceito e um objeto material. O conceito é a busca pela liberdade do indivíduo e o preço que muitas vezes se paga por ela. E o objeto é um quadro de Rembrandt, um óleo que pertence a uma série de retratos que fez, de um jovem judeu em Amsterdã onde vivia, e que são tentativas de representar a figura de Cristo como pessoa”, resumiu em entrevista publicada pela revista Carta Capital em 7/7/2015. Nela, Padura conta ter-se enamorado da possibilidade de entrar no mundo do judaísmo por meio de uma perspectiva cubana e, a partir daí ter criado a cadeia de interesses que movem toda a narrativa: a convivência cultural, a busca da liberdade, o livre-arbítrio dos judeus, a responsabilidade do artista.  E por debaixo disso tudo o medo. “Mas não o medo natural da morte, mas o medo da morte civil ou da marginalidade”, explica.

No livro ele entrelaça, com maestria, três histórias ocorridas em tempos bastante diferentes: a primeira, no século XVII, que envolve um jovem judeu sefaradi que sonha em ser pintor e um retrato que, por alguma razão, vai parar nas mãos da família Kaminsky. A segunda, a do garoto Daniel Kaminsky, judeu asquenazi, em 1939, no porto de Havana, à espera de sua família que chegará a Cuba com o navio S.S. Saint Louis com outros 934 judeus fugindo de Hamburgo e da onda nazista, e a sua frustração quando a embarcação é proibida de atracar. A terceira, é a do desaparecimento de uma jovem cubana emo e revoltada, em 2008, pouco depois de Elias, o filho de Daniel, ter viajado dos Estados Unidos até Havana para esclarecer o que aconteceu com o quadro e sua família. Unindo isso tudo, o ex-policial Mario Conde, o protagonista cinquentão, machista, boca-suja e curioso sempre presente na obra de Padura.

Em “Hereges” essas três historias estão conectadas pelo fato de serem três personagens em busca de sua liberdade, em conflitos capazes de conferir à obra um caráter mais universal.  Ela esmiúça o genocídio dos judeus na Polônia entre 1648 e 1653, as alterações políticas, sociais e individuais sofridas por Cuba,  e as manifestações e sentimentos de grande parte dos jovens numa Havana contemporânea e descrente.

Mistura de romance noir e histórico, “Hereges” é tão ambicioso que o torna difícil ser resumido. Como ponto alto, a construção cuidadosa do universo íntimo do protagonista Mario Conde, o talento para traduzir em texto a língua falada, a sempre atualidade da boa narrativa policial com todas as regras e vícios do gênero. Como nota baixa, a escrita caudalosa (costumo chamar de “palavrosa”), a ampla pesquisa aparecendo em primeiro plano quando deveria servir apenas de apoio à narrativa, e o excesso de repetições que deixam no leitor atento a impressão de “mas ele já não explicou isso lá atrás?”.

Tem escritores que vão direto ao ponto. Outros dão voltas para exibir sua capacidade de envolver pela boa escrita. Outros se permitem voltear mas sem perder de vista o leitor que precisa caminhar consigo, sempre encantado. Infelizmente Leonardo Padura neste “Hereges” parece ter-se colocado no segundo caso. E talvez a culpa seja da ambição.

 

 

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TRECHO

 

“Daniel Kaminsky levaria vários anos para se habituar ao barulho esfuziante de uma cidade que se levantava sob a mais indisfarçada algaravia.  (…) Em seus primeiros tempos de Havana, muitas vezes o menino tentaria evocar, tanto quanto lhe permitia sua mente povoada de recordações, os silêncios pastosos do bairro dos judeus burgueses da Cracóvia, onde havia nascido e vivido seus primeiros anos. Por pura intuição de desenraizado, buscava aquele território magenta e frio do passado como uma tábua capaz de salvá-lo do naufrágio em que sua vida  tinha se transformado, mas quando suas recordações, vívidas ou imaginadas, tocavam na terra firme da realidade, imediatamente reagia e tentava fugir dela, pois na silenciosa e escura Cracóvia da sua infância um vozerio excessivo só podia significar duas coisas: ou era dia de feira livre ou algum perigo rondava. (…) Como era de se esperar, quando Daniel Kaminsky caiu naquela cidade de estridências, durante muito tempo captaria os embates daquele explosivo estado sonoro como uma rajada de alarmes capaz de assustá-lo, até que, com o passar dos anos, conseguiu entender que nesse novo mundo o mais perigoso costumava vir precedido pelo silêncio.”

 

 

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O AUTOR

 

Nascido em Havana, em 1955, Leonardo Padura trabalhou quinze anos na imprensa onde se destacou como jornalista investigativo. Desde 1995, vem se dedicando exclusivamente à literatura, como ensaísta, roteirista e autor de novelas. Ele leciona literatura latino-americana na Universidade de Havana, onde mora.

Seus romances com o personagem Mario Conde renderam-lhe recentemente o Prêmio Princesa das Astúrias, pelo conjunto da obra, tendo sido ainda diversas vezes premiado em Cuba e no exterior, entre eles, duas vezes, o Prêmio Internacional Dashiell Hammett de melhor romance em língua espanhola e o Café de Gijón, em 1995. Padura destacou-se com a tetralogia As quatro estações, composta de “Paisaje de otoño” (ainda não lançado por aqui), “Passado perfeito”, “As máscaras” e “Ventos de Quaresma”. Mas foi com o romance “O homem que amava os cachorros” (Boitempo) que esse autor se consolidou no mundo literário, ganhando prestígio para além do gênero policial. Traduzida para vários países (como Espanha, Portugal, França, Alemanha, Estado Unidos e Inglaterra), a obra recebeu diversos prêmios internacionais. Este seu romance mais recente, “Hereges”, ganhou o X Prêmio Internacional Ciudad de Zaragoza (categoria romance histórico) e foi finalista dos prêmios Médicis e Fémina.

 

 

 


Hereges, Boitempo Editorial, 508 páginas
Autor: Leonardo Padura,
Tradução: Ari Roitman e Paulina Wacht, com a colaboração de Bernardo Pericás Neto.

 

 

 

 

 

 

 

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Nanete Neves é paulistana, jornalista e escritora. Hoje vive de escrever, editar e ministrar oficinas. É autora de O Poeta e a foca (Pasavento, 2015), Batendo ponto: uma colherada de humor na hora do cafezinho, ao lado de Nelson de Oliveira e Marcelino Freire (Novo Século, 2013) e de Lavoura dourada (Évora, 2010). Participa de diversas antologias de contos. E-mail: nanete.neves01@gmail.com

 




Comentários (1 comentário)

  1. Chico Lopes, Nanete, boa resenha. Quanto ao Padura,não quero arriscar um julgmento prematuro, mas concordo com você quando diz que é palavroso. Mais: me parece ideológico, o que torna um tanto inverossímeis seus personagens. Vi isso em “O homem que amava…”, que abandonei logo, porque achei que santificava a figura de Trótsky.
    28 outubro, 2015 as 14:21

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