A folha e o espinho


…………….A folha e o espinho na Poesia de José Inácio

 

José Inácio Vieira de Melo me deu seu livro Pedra Só com duas lembranças da fazenda onde ele se esconde: um espinho de mandacaru e uma folha de algarobeira. Servindo de marcadores entre as páginas e os poemas, interpretei o espinho e a folha como símbolos da poesia de José Inácio: lirismo e sobrevivência, beleza e alimento.

Uma vez por ano, na paisagem nordestina, o mandacaru se cobre de flores brancas, que exalam perfume embriagador e duram apenas uma noite. Abrem quando o sol se põe e mal o dia começa a clarear elas murcham. Parece a representação do fugaz. As longas pétalas e sépalas expõem a sexualidade floral do androceu e gineceu, celebram núpcias de algumas horas e depois se fecham e morrem. Uma floração passageira, diferente do mandacaru que teima em sobreviver ao estio, por anos e anos.

O cardeiro plantado na fazenda Pedra Só lembra a poesia de José Inácio. Mas os versos se espraiam bem além das antíteses entre espinho e flor, acutilada e afago, devassidão e ascese.

 

“Na Pedra Só,

as formigas tecem as escrituras

no abismo da noite tão enorme

e o espantalho veste a seda do orvalho

para receber de braços abertos,

o sabor das auroras, o sagrado”.

 

Zé Inácio não traçou meu roteiro de leitura. O livro abundante em memórias de gregos não possui um fio de Ariadne. O poeta não me revelou nada além da poesia e seus signos, de um espinho e uma folha, plantados como enigmas em meio às páginas.

Ao acaso descubro na página 21 a folha da árvore mágica sertaneja, a algarobeira, “sempre verde ao chão vermelho, floreando mel sobre o voo das abelhas, poleiro das galinhas e das estrelas, maná de vagens amarelas, santa, santa, santa…”.  Zé Inácio compôs para a árvore santificada uma litania de ecos, sons nutrizes como os frutos da algaroba, poesia alimento, concreta, antítese do efêmero representado pela flor do cardeiro.

À sombra da árvore onde descansam cavalos, e cabras mitigam a fome, e agrônomos se queixam das raízes que chupam a água do solo e o empobrecem, e professores distribuem rações de sementes como se fossem chocolates aos alunos, e cães cochilam esquecidos, ali, resguardado à sombra, o poeta pensa em mulheres e sexo.

 

“Incrustadas por brasas aflitas

as fêmeas se enlaçam aos machos

e afloram gerações e gerações

para desfolhar as pedras de Deus”.

 

E chegam para visitá-lo os poetas que o acompanham no exercício de sentir o mundo, a corporação de ofício de que fazem parte Ruy Espinheira Filho, Francisco Carvalho, Gerardo Mello Mourão, Florisvaldo Mattos, Mariana Ianelli, Bob Dylan e tantos outros danados, porque Zé Inácio nunca fica sozinho, o exercício da poesia é para ele o encontro com pessoas e música, para ouvi-las e pedir que escutem seus aboios. Também chegam os filhos Carlos Moisés e Gabriel Inácio, os compadres Gabriel Gomes e Ricardo Prado, o pai mandando por fogo na mata, o vento da Ribeira do Traipu e a madrugada sertaneja, vozes secas, aboio livre, outono e chuva de Páscoa. Chegam excitados e solenes e sentam enquanto esperam o banquete de poesia que será servido nas páginas de Pedra Só.

 

“Só tua boca pode receber este mel

e conhecer as liturgias das areias

e saborear o sangue das origens

no cálice que transborda nesta mesa”.

 

 

 

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[Artigo escrito originalmente no jornal A Tarde, Caderno 2+] 

 

 

 

 

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Ronaldo Correia de Brito é dramaturgo, contista, romancista, documentarista, médico e psicanalista. É autor dos livros de contos Faca, Livro dos homens e Retratos imorais, além dos romances Galileia e Estive lá fora.




Comentários (6 comentários)

  1. Rosa Ramos, José Inácio Vieira de Melo tece suas escrituras de par com o sagrado, como diz um de seus poemas.
    6 março, 2013 as 9:21
  2. Florisvaldo Mattos, Zé Inácio: amigo, há tempos que não leio uma resenha tão bem escrita, como lingauagem e como análise, igual a esta de Ronaldo Correia de Brito. Não li o livro, mas avalio a qualidade não só por esses bem inspirados elogios, mas pela obra do vate sertanejo que é você que se afirma pela força telúrica da poesia que publica. Valeu, gostei de ler.
    6 março, 2013 as 9:48
  3. Rachel Moraes, À sombra dessa mesma árvore, José sonha poesias
    7 março, 2013 as 13:25
  4. Salgado Maranhão, Parabéns, Poeta, fico feliz com o crescente reconhecimento da sua poesia, tudo chega na hora certa, quando há talento e trabalho competente. Grande abraço, Salgado Maranhão.
    7 março, 2013 as 13:45
  5. Myrian Naves, Parabéns, José Inácio Vieira de Melo. Confesso que fui pesquisar sobre a algarobeira, saber mais sobre o mandacaru. rs. Leguminosas e cactáceos. Zé Inácio, acredita que quando assisti ao filme Flor de Cacto, achei que a flor não existia, que era uma licença poética, rs. Filme antigo, rs.
    9 março, 2013 as 9:09
  6. Martha Gonzaga Cohen, O texto do Ronaldo Correia de Brito revela, com leveza, a profundidade que a poesia de José Inácio Vieira de Melo tem. Parabéns!
    11 março, 2013 as 22:51

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