A borra do café
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O uruguaio Mario Benedetti faz parte de um pequeno grupo de autores que se consagrou em vida como sucesso de crítica e de público. Falecido em 2009, aos 88 anos, publicou mais de 80 títulos entre poesia, ensaio, conto e romance.
Seu romance mais conhecido, A trégua, foi publicado em 1960 e arrebatou centenas de milhares de leitores. Escrito em forma de diário, narra o último ano de trabalho antes da aposentadoria do contador Martín Santomé, viúvo, cinquentão, que se apaixona por uma mulher bem mais jovem, a bela Avellaneda, que viria a substituí-lo no emprego, fato que causa uma pequena trégua de amor em meio à sua vida monótona e sem graça.
Publicado em 1993 e reeditado em agosto passado pela Alfaguara – a primeira edição brasileira era de 1998, da Record -, A borra do café é mais um de seus livros que vêm com a sua marca: uma história simples e bem contada, impregnada de uma linguagem cheia de ternura e lirismo, capaz de agradar tanto o leitor habituado com os best-sellers como o mais exigente.
Mistura de memória e ficção, o livro conta a história de Claudio, alterego do autor, da infância à juventude numa típica narrativa de formação. As lembranças do garoto montevideano vão se acumulando ao longo de capítulos curtos e alternando-se, nos momentos mais dramáticos, com um narrador em terceira pessoa onisciente – ainda há dois capítulos extraídos de um suposto diário mantido pelo pai do protagonista -, passando a limpo a primeira parte da vida do personagem: as constantes mudanças da família pelos bairros de Montevideo, as aventuras com os inseparáveis amigos de infância – Daniel, Fernando e Norberto -, as idas ao parque e ao estádio do bairro Capurro, o encontro do corpo de um mendigo, Dândi, do bairro, a morte da mãe aos 12 anos, a perda da virgindade e a descoberta do amor.
Quer dizer, nada muito além do que aquilo que todos nós, seres humanos adultos, já não saibamos ou tenhamos vivenciado em nossas vidas, quando recordarmos nossos períodos mais remotos (e até felizes) como a infância ou a adolescência. Talvez por isso, por essa proximidade com o que nos é mais caro e pessoal, o risco de um relato desse tipo cair no lugar-comum, em algo banal e piegas, é grande, mas não é o que acontece com A borra do café.
Primeiro porque Benedetti é um exímio contador de histórias e sabe extrair de cada caso (ou causo, pois é quase isso que parece estar diante de nós, uma série de causos, sem a carga pejorativa, de anedota, que a palavra possa carregar para alguns) ou personagem aquilo que quer deixar registrado, fazendo com que cada leitor, dentro de seu universo particular de recordações, sinta-se gratificado em poder compartilhar as lembranças do narrador e relembrar as suas. Filtrar o essencial, retirar os excessos e transformar a experiência vivida, mesmo ficcionalmente, em experiência literária é o que o autor consegue neste breve e belo relato.
Segundo ponto a ser ressaltado, seria a linguagem utilizada por Benedetti: simples, clara, desprovida de qualquer artifício ou rebuscamento, termina por cativar o leitor e levá-lo a acompanhar com simpatia o protagonista, um rapaz meio hesitante e tímido, alguém absolutamente comum, que, por exemplo, acredita que tudo de mais importante na vida lhe aconteceu às 3h10 da tarde – a ponto de seu trabalho como artista plástico estar impregnado com relógios marcando tal horário -, suas pequenas ou grandes alegrias e tristezas.
Além das qualidades citadas, A borra do café traz também uma lista de personagens que marcaram, cada um a seu modo e em determinada época, a vida de Claudio: Mateo, o amigo cego de Capurro; Natália, a chilena mais velha responsável pela perda da virgindade do protagonista; Juliska, a empregada iugoslava e sua dificuldade com os gêneros do novo idioma; Marina, com quem descobre o verdadeiro amor; e, principalmente, Rita, a garota que, desde o dia em que o protagonista recebe do pai a notícia da iminente morte da mãe, passa a assombrar sua vida, como exemplo da mulher inalcançável e fugidia.
Em tempos em que a grande literatura se afasta cada vez mais de um público maior, criando narrativas herméticas apenas para os iniciados, e as editoras se interessam cada vez menos pela qualidade daquilo que é publicado, apenas se preocupando em encontrar o próximo mega-seller, o autor uruguaio mostra que é possível, sim, fazer as pazes entre a boa literatura e o grande público. Mesmo sem ser brilhante, Benedetti consegue, mais uma vez, comover seu leitor e ratificar seu nome como um dos grandes autores latino-americanos do século XX.
“(…) Mas, uma vez, em que Norberto subiu pela figueira e entrou no meu quarto, considerei que era o momento de lhe perguntar por sua prima. ‘Que prima?’ ‘Rita.’ ‘Eu não tenho nenhuma prima.’ ‘Como assim? Você não tem uma prima Rita que mora em Córdoba?’ ‘Estou lhe dizendo que não. De onde você tirou esse disparate? Não tenho primas! Nem sequer primos, portanto não me venha me inventar um, de uma hora para outra.”
Já não recordo o que acrescentei para justificar meu interesse, mas o assunto parou ali, sem outra explicação, com a figueira como testemunha envolvida. Quem podia saber melhor do que eu que Rita era uma garota de carne e osso? Eu não tinha sonhado sua presença em minha água-furtada. Além disso, ela me beijara, e os fantasmas não beijam. Ou beijam?” (Juliska fala castelhano, pg. 57)
“Por que escrever estes Rascunhos? Quando os anos se somam a gente começa a ter a noção que o tempo foge, e talvez por isso alimente o autoengano de que escrever sobre o cotidiano pode ser uma forma, por mais primitiva que se queira, de frear esse descalabro. Mas não se consegue freá-lo, claro. Nada nem ninguém é capaz de reter o tempo”
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Ivan Ricardo M. Melz nasceu em Campinas- SP (1975) é formado em Jornalismo pela Unesp e desde 2008 trabalha na Livraria da Vila. E-mail: Ivan_melz@yahoo.com.br

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