Os poemas de Darcy


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Já aos 70 anos, depois de sucessivas batalhas contra o câncer, Darcy Ribeiro botou na cabeça que ia ser poeta. Já tinha sido antropólogo, educador, ministro, reitor, vice-governador, romancista… por que não poeta?  Esse “por que não poeta?” só ocorreria a um sujeito com um ego fenomenal, e era o caso do autor de O Processo Civilizatório. Por sorte, o seu ego era contrabalançado pelo senso crítico de quem teve formação científica, por um senso de humor permanente, presente até em suas obras mais sisudamente teóricas, e por um espírito de auto-depreciação que, curiosamente, acompanha muitos indivíduos narcisistas. (Por mais e melhor que façam, eles sempre torcem o nariz diante dos próprios feitos, porque sua expectativa íntima é sempre de que são capazes de fazer muito mais e melhor.)

Eros e Tânatos – a poesia de Darcy Ribeiro (Rio, Ed. Record, 1998) reúne esses poemas que são bem descritos pelo título. São meditações recorrentes e infatigáveis sobre amor, sexo e morte, escritas por um sujeito de imensa vitalidade, que, aos 70 anos e no meio da queda-de-braço final com o câncer, sabia que estava com os dias contados. (E não sabemos disso, nós todos?  Não, não sabemos.) A parte erótica tem a euforia desbragada e rabelaisiana de um Henry Miller, a celebração do sexo como prazer animal, gozo físico, seja ou não temperado pelo afeto. A alegria de viver no sentido mais biológico do termo, elevada ao quadrado como reação aos violentos golpes da doença e da velhice, em versos bem-humorados de sexo explícito que infelizmente não tenho espaço para reproduzir aqui. E a morte, algo que o autor reconhece como fatalidade científica, mas com a qual não se conforma: “Hoje fiz 70 anos. Quisera 700”.  “Acho que sei, afinal, a que vim / e já me vou”.

O poema de abertura, “Fagulhas de memória”, é num certo sentido o melhor: o registro em prosa telegráfica de pequenas epifanias, terrores e visões que marcaram a memória do autor, em parágrafos como: “O cacho de bananas amarelíssimas, que meu avô tirou do armário preto de papéis cartoriais. / A velha naturalista estrangeira, meio surda, se fazendo carregar pelos índios, de aldeia em aldeia. / Uma légua de piranhas mortas, dourando a baía ao amanhecer.” Usando uma classificação pouco acadêmica, eu diria que não são poemas de poeta, são poemas de pessoa. Mais preocupados em registrar a totalidade de um sentimento profundo e complexo do que em mexer no software da linguagem poética.  E não há pessoa que não assinasse versos como: “O que me arrasa é o terror pânico / de não mais ser, nem estar, jamais aí. / Vocês todos vivendo, seus filhos da puta. Só eu não”.

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IDOS SIDOS
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Que é que fiz, não fiz, de mim?

Que é que fiz na vida, da vida?

Quem sou eu? Esse eu que me sou.

 

Minhas mãos me pendem soltas.

Inúteis para fazimentos.

Só servem para escrever, acarinhar.

 

Não sei dançar, nunca soube.

Olho, idiota, o céu estrelado.

Não conheço estrela nenhuma.

 

As árvores, tantíssimas, que vi.,

Recordo inumeráveis, enormíssimas,

Não sei quem são.

 

Diante das flores me extasio.

Tolo, só reconheço rosas, orquídeas, cravos.

A música clássica me atordoa, cansa.

 

Quem sou eu, septuagenário,

Que esgoto meu tempo de me ser aqui?

Insciente, perplexo, inexplicado.

 

Só cheio de saudades de mim.

De tantos eus que fui. Sidos. Idos.

Somos descartáveis, sei, mas dói.
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MIM
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O tempo transcorre em mim

Celeremente. Tão afoito que finda.

Acho que sei, afinal, a que vim.

E já me vou. Uma pena.

Não há tempo mais pra mim.

Volto à silente matéria cósmica

Que em mim, um dia, se organizou

Para me ser. Uma vez, uma vez somente.

 

 

A INDESEJADA
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Aí estão eles, os da terceira idade.

Gregários, vivem aos bandos.

Sentados, jogando cartas, andando devagar.

Conversando pretéritos assuntos.

Olhando tristes os outros viverem.

 

Antigamente, todos seriam avós, vovozinhos.

Hoje, são sogros, os chatos dos sogros.

Uns são viúvos, outros largados, poucos.

Muitos deles, os mais, ainda casados.

As mulheres duram demais.

 

Órfãos de seus filhos, ocupadíssimos.

Não reclamam, resmungam disfarçados.

Estão todos aflitos, na espera

Da indesejada, que tarda.

Tarda, é certo, mas virá. Inexorável.

 

 

AMOR
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Quero um amor alucinado, depravado, tarado.

Amor inteiro, de corpo-a-corpo, enlaçados.

Amor sem reserva, que a tudo se entrega, lancinante.

 

Quero você assim, abrasada, pedindo gozo,

Eriçada, ronronando feito gata, tesuda.

Seus seios túmidos, me furando o peito.

 

Quero você, pentelho contra pentelho, roçantes.

Carne encravada na carne. Bocas coladas,

Babadas, meladas, sangrando sufocadas.

 

Quero amar você tão bichalmente que urremos.

Eu, penetrando rasgando. Você me comendo furiosa.

Nós dois fundidos, unidos, soldados.

 

Você e eu, nós dois, sós, neste mundo dos outros.

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LASSA
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Tesão   — força que move a vida.

Na plenitude, é felicidade pura.

Na carência, é dor que dói.

 

Ó gozo de ver, admirar, acariciando.

Ò gozo de abraçar, beijar, bolinando

Ó supremo gozo de meter, possuir, penetrando,

na divina convulsão rítmica do coito.

 

Ficar lá dentro abismado, apertado.

Sentindo o grelo tremer de gozo.

O sacro canal melar, enlanguescer.

Vendo você se aquietar, lassa.

Tudo, afinal, uma tremura arrepiada.

 

 

 

[Poemas extraídos da obra: EROS E TANATOS.  Rio de Janeiro: Record, 1998]

 

 

 

 

 

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Bráulio Tavares é escritor e compositor. Estudou cinema na Escola Superior de Cinema da Universidade Católica de Minas Gerais, é Pesquisador de literatura fantástica, compilou a primeira bibliografia do gênero na literatura brasileira, o Fantastic, Fantasy and Science Fiction Literature Catalog (Fundação Biblioteca Nacional, Rio, 1992). Publicou A máquina voadora, em 1994 e A espinha dorsal da memória, em 1996, entre outros. Escreve artigos diários no Jornal da Paraíba: http://jornaldaparaiba.globo.com/ Blog: http://mundofantasmo.blogspot.com/ E-mail: btavares13@terra.com.br




Comentários (1 comentário)

  1. Ricardo Silvestrin, Alô, Bráulio! Obrigado por me apresentar a esses excelentes poemas, de pessoa e de poeta sim, senhor! Abraço. Ricardo Silvestrin
    12 julho, 2012 as 13:56

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