Século I
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Vamos de Sêneca: “Seria exaustivo demais examinar cada um daqueles que desperdiçam a vida em jogos de xadrez, de bola, ou bronzeando-se ao sol. Não desfrutam do ócio aqueles cujos prazeres proporcionam muitas atividades. Ninguém duvida serem muitos os que se cansam sem nada fazer, como os que se dedicam a inúteis estudos de literatura, por exemplo, e eles já são em número grande entre os romanos. Este foi um legado dos gregos, procurar saber quantos remadores tinha Ulisses, se foi a Ilíada ou a Odisseia que foi escrita primeiro e, ainda, se eram do mesmo autor, além de outros saberes dessa natureza que, se os tens para ti, em nada te gratificam e, se os tornas público, não serás considerado mais sábio, senão mais enfadonho.”
Agora, vamos de Marcial: “Você depila peito, braços, pernas/E apara em arco os pentelhos. Dou fé,/Labieno: é pra agradar a namorada/- Mas, e o cu depilado, é pra quem?”.
As coisas mais livres que tenho lido ultimamente estão nesse primeiro século da era Cristã, em Roma. Sêneca viveu de 4 a.C., estima-se, até 65 d.C.. Filósofo, dramaturgo, político e escritor, reúne, nesse texto chamado “Sobre a brevidade da vida”, as cartas a um suposto Paulino. Nessa obra, como em outras, está presente o centro do seu pensamento: a questão não é viver, mas sim viver bem. Por esse caminho, defendeu, inclusive, o direito ao suicídio.
A sensação de que a vida é breve será tanto mais aguda para aquele que se ocupou a vida toda de coisas inúteis. Para esse, se vivesse duzentos anos, ao se aproximar do final, ainda assim acharia que viveu pouco, pois, na verdade, nem viveu. É disso que fala Sêneca. Só no ócio o homem pode se realizar plenamente. Contudo, não se trata de ócio como preguiça, mas como o tempo entregue ao convívio com os sábios, aprendendo a viver e a morrer com as reflexões dos filósofos fundadores das “ideias sagradas”: Sócrates, Carnéades, Epicuro, os estóicos, os cínicos…
Quem vive de verdade não teme nem lamenta a morte. Como nesse outro poema de Marcial, que nasceu em 40 na cidade de Bílbilis, hoje na província de Saragoça na Espanha, e morreu em 104, tendo passado de 64 a 94 em Roma: “Júlio Marcial, caro amigo jovial,/aqui está o que há de bom na vida:/um fortuna herdade e não suada,/um trato de boa terra, um fogo sempre/aceso, não ter causa na justiça,/não vestir toga para atender aos grandes,/a mente em paz, o corpo são, vigor/ de gentleman, franqueza sem ofensa,/hóspedes legais, mútua amizade, mesa/frugal; noites sem farra, descontraídas;/cama animada, mas honesta; profundo/sono, que abrevie a noite; satisfação/consigo mesmo, sem desejar ser outro./A hora final: não querer, não temer.”.
ps:
Sobre a brevidade da vida, Sêneca, L&PM Pocket, tradução do latim de Lúcia Sá Rebello, Ellen Itanajar Vranas e Gabriel Nocchi Macedo;
31 poetas, 214 poemas, do Rig-veda e Safo a Apollinaire, Uma antologia pessoal de poemas traduzidos com notas e comentários de Décio Pignatari, Companhia das Letras.
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Ricardo Silvestrin nasceu na cidade de Porto Alegre (RS), em 1963. É poeta e escreve contos, crônicas e romances. Também é compositor e integra a banda os poETs. É colunista do jornal Zero Hora e apresenta, na rádio Ipanema FM, o programa Transmissão de Pensamento. Recebeu o Prêmio Açorianos pelas obras O menos vendido (Nankin, 2007) e Palavra mágica (Massao Ohno, 1995), para adultos, e Pequenas observações sobre a vida em outros planetas (Salamandra, 2004), para as crianças. Pela Cosac Naify lançou Transpoemas (2008), uma série de poemas sobre meios de transporte, de carro a prancha de surf, de metrô a tapete mágico. E-mail: ricardo.silvestrin@globo.com
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