Cabeza de serpiente emplumada


 

Os voos da imaginação de um trovador ultramoderno

Charles Perrone

 

Na parede à direita da porta de entrada do prédio de Estudos Internacionais na universidade onde trabalhei durante quatro décadas, está gravada a famosa declaração de Sócrates: “Eu não sou um ateniense ou grego, mas um cidadão do mundo”. Essa afirmação do filósofo clássico é a que me ocorre cada vez que penso em caracterizar o projeto poético de Claudio Daniel, nom-de-plume que já indica, com a adoção de um nome trovadoresco provençal, o imperativo cosmopolita do autor e— por que não acrescentar?— seu apego à longa história da lírica, sobretudo a musicada. Desde o início, CD se mostrou mundialista e atraído pelo som, para lembraraquela frase tão apta do mestre Haroldo de Campos: this planetary music for mortal ears. O livro de estreia de CD, Sutra (1992, edição do autor), tem notáveis alusões a autores estrangeiros (o próprio título vem do idioma sânscrito),  além de mandolinas, uma canção, uma seção chamada “o inferno musical,” um “Blues” e um “Bolero,” poema habanero que reaparece neste lançamento de 2025. Ora, o primeiro livro do poeta publicado por uma editora marca acentuadamente o seu interesse pelo Oriente; chama-se Yumê (1998), vocábulo onírico japonês. Portanto, Cabeza de serpiente emplumada não é o primeiro título do poeta em língua estrangeira (que poderia ter sido olmeca, maia, ou asteca!).  CD afirma na nota introdutória ao volume que buscou “elaborar uma dicção poética diferente daquela de meus livros anteriores”, afirmação da qual se poderia observar “sí, pero no tanto”. Pode haver uma vontade discursiva um pouco mais permissiva em partes, mas os versos, ao todo, ainda vêm imbuídos de consciência musical e preocupação transnacional, e continuam os estilemas de concisão e fragmentação, a carga imagética, as elipses, o cromatismo, o cuidado com mise-en-page.

Onde, sim, se percebe uma singularidade neste novo livro é na estrutura externa. Em Yumê, José Kozer viu, pensando em Ezra Pound, tratar-se de uma patchwork quilt (colcha de retalhos), mas agora a configuração é particularmente singular. São seis seções, sendo que na sexta temos textos poéticos de um autor convidado, Claudio Rodrigues, cuja aventura pré-colombiana provê o título do livro que a abrange. Dali a amplidão do arco temporal dele, desde os dias das civilizações mesoamericanas antigas até a angustiante atualidade dos crimes de guerra de Israel. As cinco divisões principais são compostas por duas curtas— intro com três poemas e outra com outros três, seguidas por mais três seções, mais longas. É uma organização pensada e trabalhada. Cada linha do sumário merece comentário. CD afirma que o livro “é uma performance” e não é que abre com uma dança flamenca, musical e do exterior. O Cavaleiro do mundo delirante alude a Mallarmé e, queiramos ou não, a Don Quixote e suas lutas pela justiça. A causa palestina bem que merece toda e qualquer solidariedade. A versão de um poderoso poema em árabe é outro momento que ilustra por quê o presente livro é um tesouro para quem pratica literatura comparada.

As doze canções constituem a seção central, pois uma delas contempla um personagem perseguido imaginado cujo nome é o título do livro e liga esta parte à seção final. Estas considerações “impronunciáveis” contém ares pessoanos, gritos de raiva e angústia perante os horrores do Oriente Médio, alusões literárias globais, poesia sonora e, claro, muita musicalidade, às vezes por meio do ritmo. Já a terceira seção passa a favorecer a visualidade. Sete peças provocadas por pintores (mormente europeus) e cenas, portanto no domínio da écfrase (ekphrasis), sendo que o adjetivo ecfráctico lembra aquilo que abre o apetite, no caso para a apreciação artística. O dado cromático aqui poderia até ser uma ligação implícita com o colorido das plumas da serpente. Já o último poema desta sessão, Thangka, evoca o Tibete e, com a dedicatória ao poeta brasileiro Rubens Jardim, funciona como transição para a quarta parte.

A seleção e tradução de poemas de César Vallejo é em si uma declaração: o grande poeta peruano do alto modernismo transatântico merece renovada atenção hoje, mais de cem anos depois de sua obra mais celebrada, Trilce (1922), ser publicada, com ousada combinação de elementos. Ao ver o acréscimo de um fragmento de Altazor, de Vicente Huidobro, haveria que lembrar que o poeta chileno (radicado em Paris) foi quem teve a coragem de escrever “El poeta es un pequeño Dios”. Mas é o poeta-mor Vallejo que inspira o título da outra, composta por uma homenagem ao autor das viagens das galáxias, o bolero re-cantado, e um protesto pouco conhecido. Um trio de poemas que mostra novamente a perspectiva cosmopolita e a combinação de poiesis em si e envolvimento sociopolítico.

Normalmente eu começo a apreciação de um livro de literatura observando o título. No presente caso, finalizo com ela. Já observamos tanto a ligação da sétima “canção impronunciável” com o âmbito do poeta convidado quanto o fato significativo de o livro ter título em língua estrangeira. Tem mais, ela é a dos hermanos em que escreveu Vallejo, o melhor poeta hispanoamericano do século passado, que teve impacto especial em Claudio Daniel. Ora, pensando palavra por palavra, há mais. Cabeza é o topo do corpo (palavra bastante usada e importante ao longo do livro), e sugere, pertinentemente, liderança e pensamento. Serpiente surge com conexões míticas indígenas, mas tem seu significado fundamental no mundo natural animal, e também várias associações, desde a Bíblia até no linguajar popular. Emplumada reforça o aspecto zoológico, havendo a sugestão do voo e, sobretudo neste livro onde a pintura voa, a visualidade: luz, cor, forma, suavidade. E não é que Cabeza de serpiente emplumada reúne tudo isso em sua intrigante multiplicidade?

 

Santa Cruz, California, 2024

 

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Charles Perrone é professor titular emérito de português e literatura /cultura luso-brasileiras do Departamento de Espanhol e Português da Universidade da Flórida. Principais publicações: Brazil, Lyric, and the Americas (Florida, 2010); Seven Faces:  Brazilian Poetry Since Modernism (Duke, 1996); Masters of Contemporary Brazilian Song:  MPB 1965-1985 (Texas, 1989), além de Letras e Letras (da Música Popular Brasileira) (1988. 2008). Em 2022, com Ivan Justen Santana, publicou All Poetry, tradução de Toda Poesia de Paulo Leminski.  É também o principal tradutor para o inglês da poesia de Augusto de Campos.

 

***

 

CINCO CANÇÕES IMPRONUNCIÁVEIS

 Claudio Daniel

 

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III

 

Penso em teu sexo

em tua caveira aberta

repousada na mão esquerda

de um paleontólogo louco.

Penso em tuas pernas abertas

mais claras ou mais escuras

do que em todos os mundos possíveis.

Penso com o corpo, a mente

os testículos, o esqueleto

com meus olhos que crocitam como corvos.

O Homem Mais Velho do Mundo

encontrou-me numa ponte de pedra

e disse a mais terrível de todas as palavras:

amor.

Por que estas flores cobertas de sombras

e esquadros?

Por que estas flores cobertas de peles

de homens queimados?

Aqui nós estamos em um longo poço sem fundo

e apesar de tudo nós dançamos.

 

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IV

Ils son em guerre avec l’humani

Claude Royet-Journoud

 

Eu poderia ter dito apenas vermelho

uma carta

quando menos se espera

ou o mapa da lua

aberto no escritório

enquanto mísseis voam sobre Gaza

teu corpo fragmentado

em um dois três cinco segundos

pedaços de carne

por toda parte

Eu poderia ter dito apenas vermelho

uma partitura

é algo inverossímil nesta era

algo como miríades

de corvos brancos

numa árvore aérea

estranho é o avesso de uma lagosta inócua

Eu poderia ter dito apenas vermelho

para a menina corcunda

que atravessa a rua

um ruído um eco

um latido

um som qualquer nesta Era de Kali

é algo ininteligível

disse para mim o miniaturista cego

tudo insanidade tudo insanidade

tudo insanity locura

folie kiôki bezumiye fēngkuáng

e a menina corcunda

joga pedrinhas no meio da calçada

dança sorri dança

sorri dança sorri

e depois

seu corpo nu estendido numa mesa

cirúrgica

enquanto mísseis voam sobre Gaza

flamingos

flertam com o apocalipse

 

 

V

Why is the name changed

Gertrude Stein

 

A memória é um verme

que rói a carne

e as sombras.

 

É sempre

a extrema

cicatriz;

 

mundo

desmundo

 

sempre

a excessiva

 

intensidade

da voz.

 

***

 

Luz, ou

reflexo

do inferno?

 

Lilabi, biéli lilabi azel miol gliá luvi.

 

***

 

Acende

palavras

num tempo

de esqueletos.

 

Que sentido

nessa

irrisão?

Só desertos

dentro.

 

***

 

Pele

é um livro

escrito

 

em língua

de sombra.

 

Cada palavra

um seco

urro.

 

Lilabi, biéli lilabi azel miol gliá luvi.

 

***

 

Este

é tempo

de esqueletos;

tempo

de crianças

queimadas.

 

Sua história

é contada

no Livro

da Carne.

 

***

 

O dedo

do vento

vira as páginas

 

do livro

e a história

se desfaz.

 

Como os fios

da tenda

árabe

incinerada

por bombas

de fósforo

branco.

 

***

 

A história se derrama

como um rio

que transborda.

 

***

 

(A Casa Branca

dinamitada

por rebeldes

de outro Oriente.)

 

***

 

(A cabeça

de Elon Musk

pendurada

em um poste.)

 

***

 

A memória é um verme

que rói a carne

e as sombras

intermitentemente.

 

2024

 

 

VI 

War is not a metaphor

Charles Bernstein

 

A noite

é o cão do silêncio

em

Ramalah.

 

A sombra do cão

roça o muro

do mundo.

 

Olhos

de poços

secos

língua-

estilhaço

de lua

quebrada.

 

O cão busca

a porta

para o lado

de dentro.

 

Existe

a porta?

 

Ele é o guardião

do silêncio

que lateja.

Sua alma

é um saco

de pedras

que afundam

na noite.

 

Mesmo assim

Ele busca

a luz

que o engoliu.

 

A noite

é o cão do silêncio

em Ramalah.

 

 

XI

Para Reynaldo Jimènez

 

Tão imensamente tudo

(ou quase).

Amor (é)

onde

cérberos

devoram

cérberos:

flores

brancas (da lua)

apodrecem

(em jade)

sombras

de mono-

carvoeiros.

Seria talvez

canção:

firula ou nada:

(apodrecem

em jade)

(mordem a

si

mesmos)

flores brancas (da lua)

enquanto

um anão

(albino)

come palavras

num

banco

de jardim:

come

aparina

clívia

prímula

prímula

flange

calicanto

e outras palavras

fúteis.

(Seria talvez

canção?)

Um cadáver

foi ao banco

(flores brancas)

(da lua)

(apodrecem

em jade)

e pediu

duas vezes

a mesma

esmola.

Ratos democratas

mordem ratos

republicanos

numa piscina

de merda

(seria canção?)

enquanto

mono-carvoeiros

fodem (com fúria) numa árvore

e não há mais nada

a dizer.

 

 

***

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Onde adquirir: Editora Arribaça

 


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Claudio Daniel, pseudônimo de Claudio Alexandre de Barros Teixeira, é poeta, tradutor e ensaísta. Nasceu em 1962, na cidade de São Paulo (SP), onde se formou em Jornalismo pela Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero. Cursou o mestrado e o doutorado em Literatura Portuguesa na Universidade de São Paulo (USP), onde defendeu a tese A recepção da poesia japonesa em Portugal. Realizou o pós-doutoramento em Teoria Literária pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), durante o qual realizou pesquisa sobre o tema Caligrafia e visualidade na poesia experimental portuguesa. Foi diretor adjunto da Casa das Rosas, Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura, em 2007, curador de Literatura no Centro Cultural São Paulo entre os anos de 2010 e 2014 e colunista da revista CULT. Editou, ao longo de vinte anos, a Zunái, revista de poesia & debates. Atualmente, é editor do Banquete, jornal de resenhas e crítica literária e, ao lado de Antônio Vicente Seraphim Pietroforte do programa Poesia na veia, transmitido no YouTube.




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