O haicai contra a parede


O título deste livro, Poemínimos, traz abaixo uma especificação: haicais, haiquases e tais. Trata-se de uma posição do autor frente ao que ele entende por haicai. Contudo, como, no decorrer do livro, os poemas não estão agrupados a ponto de sabermos quais, na sua visão, são haicais, quais são haiquases e quais são tais, vou tomar – baseado numa visão de que, tanto dentro como fora do Japão, o haicai, ao longo da história, comporta variadas realizações – todos por haicai.

E assim penso que, nesse conjunto, Alexandre Brito está colocando o haicai contra a parede. Seu gesto criativo passa pelo haicai do aqui e agora, limpo, de difícil realização, pois o recorte escolhido precisa falar por si e, sem mais nada, trazer o haimi, o sabor de haicai:

árvore morta
no galho seco
uma orquídea

Tudo está dito apenas com a imagem. O contraste entre a vida e a morte se coloca sem precisar de mais nenhum comentário. Também não há sequer algum efeito sonoro, seja com aliterações, rimas internas ou externas.

Já neste outro, o “v” de velha, avarandado, novo, vaso e avencas leva, de verso a verso, o efeito sonoro, delicado, para se somar à imagem:

panela velha
no avarandado novo
vaso de avencas

O “v” está em velho e em novo, unindo, com suas duas pontas, os dois antônimos. E há um “v” no vaso velho e outro na novidade da avenca.

Rimas? Temos. Na tradição do haicai brasileiro, de Guilherme de Almeida e Millôr, por exemplo, elas estão presentes. Em alguns do Alexandre Brito, também:

jambolão do quintal
sombra para a família
casa para o pardal

Até aí, com a maestria peculiar do poeta, temos o haicai no seu habitat, na sua vida de captar o instante. Mas o autor quer mais. Como quem pergunta até onde podem ir esses três versos, ele vai alargando os limites da produção no gênero. Depois de uma sequência de fôlego em que o poeta traz excelentes haicais, o livro vai se partindo em divisões.

Na primeira, Quadri ciclos, ainda estamos na seara do haicai clássico e sua alusão às estações do ano. Na seguinte, Mineirados, são haicais de viagem, como nos haibuns. Depois, vem Florilégios, quando o amor e o erotismo, na tradição da literatura japonesa temas mais afeitos ao tanka, aparecem aqui em haicais.

Em ???, temos haicais interrogativos, algo praticado, mas não muito no gênero. Veja-se este de Shiki:

No rabo do cavalo
também há natureza búdica?
Vento de outono.

Alexandre Brito nos traz quatorze interrogações. Uma delas:

entre a calçada
e o calçado
quantos percalços?

Da interrogação, o poeta segue colocando o haicai contra a parede e o força a dizer mais. É quando chegamos à seção Sanguinolentos:

decorou o quarto dos filhos
com os miolos
da mãe

É como se, nessa série, o haijin gritasse: “então, haicai, fale deste aqui e agora terrível! Tire suas fotos desse horror!”.

Exorcizado, o poeta vai, na seção Psicolíticos, para o mundo onírico:

névoa da manhã
a bruma esconde
a roda-gigante do sonho

Daí, segue para a sua terra, para o seu estado, o Rio Grande do Sul, na seção Gauderiadas, privilegiando o aqui do aqui e agora:

coche de sal
o gado se acotovela
como se fosse de doce

Por fim, na seção que fecha o livro, Últimos versos, aparecem haicais sobre a linguagem e a arte do haijim:

lição de mestre
a impermanência
é o que permanece

Como toda arte que Alexandre Brito traz ao mundo, seja em haicais, poemas variados, canções, livros para crianças, temos um criador que questiona as formas, que as subverte, que explora e trilha caminhos próprios e surpreendentes. É assim que esses Poemínimos são poemáximos.

 

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Mais informações sobre o livro, aqui.

 

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Ricardo Silvestrin nasceu na cidade de Porto Alegre (RS), em 1963. É poeta e escreve contos, crônicas e romances. Também é compositor e integra a banda os poETs. É colunista do jornal Zero Hora e apresenta, na rádio Ipanema FM, o programa Transmissão de Pensamento. Recebeu o Prêmio Açorianos pelas obras O menos vendido (Nankin, 2007) e Palavra mágica (Massao Ohno, 1995), para adultos, e Pequenas observações sobre a vida em outros planetas (Salamandra, 2004), para as crianças. Pela Cosac Naify lançou Transpoemas (2008), uma série de poemas sobre meios de transporte, de carro a prancha de surf, de metrô a tapete mágico. E-mail: ricardo.silvestrin@globo.com




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