Suma Lúcida
Tudo é luz nos 13 livros inéditos que compõem a Suma de Adriano Wintter; uma luz que não é racionalismo, mas sabedoria, e aparece na técnica, na intensidade e na inteligência dos poemas. Há brilho verbal e fulgor afetivo, esplendor intelectual e fervor sensível. São 474 poemas que propagam uma visão solar, através de páginas multiformes, combinando vanguarda e tradição, clássico e contemporâneo, realismo e neorromântico, parnasiano e moderno, Homero e Mallarmé, Divina Comédia e Iluminuras, o trobar clus de Arnaut Daniel com as experimentações de cummings; ou ainda, entre minimalismos e poemas longos, arcaísmos e neologias, fazendo fusões de neobarroco, simbolismo e hermetismo italiano.
Wintter, segundo nomes importantes da literatura, é um «poeta de indiscutíveis qualidades, talentoso e inteligente» (Ferreira Gullar), criando uma poesia «profunda, que vibra verso a verso, não só em termos de risco e densidade, mas também como fonte de renovação; seus poemas não são apenas inteligentes e verdadeiros, mas também de uma beleza inefável: impossível pedir mais» (José Kozer). «Trata-se de uma poesia forte, original, pura» (Antônio Cícero); uma «poesia de notável qualidade» (Carlos Felipe Moisés).
Plástico, atento ao legado do poema construído, o poeta gaúcho aposta no trabalho preciso/conciso para criar beleza na linguagem e remeter o leitor a um plano sublime. Ele não apenas domina a métrica, usando-a com expertise, como trabalha meticulosamente no campo semântico, sintático, imagético, espacial e sonoro da obra. Cada verso é escrito com tal rigor que não se pode mudar uma sílaba. Seu domínio formal incomum é capaz de erguer poemas dentro do poema, sob múltiplos blocos e colunas, maiúsculas ou negritos, elaborando inclusive a simbologia numérica de cada livro, como podemos aferir no sumário, onde fica evidente a simetria das seções. Fabbro, Adriano se dedica a uma valorização extrema da palavra. A própria atomização dos vocábulos e dos versos, recurso frequente em sua poética, e o uso que faz do simbolismo fonético, outra característica de seu estilo, apontam para um trabalho minucioso com o verbo.
Não obstante esse acurado escopo técnico, a Suma também emociona com sua intensidade. Os temas, dominados pelo heptaedro que compreende metalinguagem, beleza, amor, natureza, tempo, sofrimento e felicidade, têm sempre uma abordagem biográfica, irradiando plasma e experiência. Não estamos diante de um sol cerebral, mas de uma luz que sai do centro da vida: «fogo / e / polpa abissal / que a fala extrai / do real». Decorre daí a «força expressiva» e a «atmosfera de vibração intensa» que Ferreira Gullar identificou nos versos do autor. O lume que alimenta o prisma temático, como o raio que ativa o prisma formal, não é um facho abstrato e fácil. Trata-se de um brilho empírico, difícil, conquistado nas profundas incursões do poeta pelo escuro. O leitmotiv da obra é a luz, sim, mas o poeta não esconde as sombras: «especialista em inferno / mais / que um Dante / hodierno / vivi / o que ele escreveu». A ótica de Wintter é lúcida porque ele atravessou as trevas. A Suma, justamente porque é um épico do brilho, relata lutas, êmulos, caligens repletas de dor, fracasso, desilusão, feridas e morte. É um livro que transmite fatos, ações, afetos, a luz viva do evento humano, sem jamais eliminar a verdade, alvo da mimese e preciosa fonte de seu processo de criação. Ela fala de Deus e do sublime, mas também de sedução, sexo, gozo, família, mentira, traição, trauma, fobia, ódio, loucura, drogas, suicídio, racismo, pandemia, injustiça e uma série de temas que fogem ao eixo hierático. O flash cálido de sua intensidade provém exatamente do fato da Suma Lúcida ser multifária (como todo ser humano) e de grafar, com fidelidade e coragem, essa ampla gama de experiências, sensações, sentimentos, raciocínios e sonhos que compõem uma existência.
Finalmente, entrelaçada ao corpo de brilho desta Suma, como elemento essencial de sua lucidez, está a inteligência criativa do autor: potência discretiva-executiva que define, verso a verso, o que escrever, como escrever e onde escrever, apontando meios e fins. Não se trata, como já dissemos, de racionalismo. Quantidades imensas de hasard e legiões de escolhas intuitivas também movem a navalha de Ockham do poeta. Trata-se de «escolher entre» (inter) e «escolher dentro» (intus), optando sempre pela trama mais fúlgida. Enquanto a logopeia de Pound abarca «a dance of the intelligence among words and ideas», o termo inteligência criativa abrange toda a esfera do poema, envolvendo também o escrutínio de imagens e a eleição dos sons, o inconsciente e a intuição. Mais que uma inteligência restrita às ideias e figuras de pensamento, é um halo universal de sabedoria que atinge o poético e vai além dele. O leitor perceberá certamente essa aura lúcida pairando em tudo: da escolha e abordagem dos temas à sua execução, do conceito macroestrutural do livro à espacialização dos versos, da estética apurada ao portfólio de imagens, do design gráfico ao oceano de símbolos.
São 900 páginas de luz.
Vera Achutti (Porto Alegre, 1956), graduada em Letras — Língua Portuguesa (1985) pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
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7 POEMAS
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êmulo
faço o brilho
pulsar no prisma
da cor: o arco-
íris de um lado
a outro do horror
mudo
o curso
do rio
rude rumo
às maravilhas
do amor
destino é via
que se inverte
e o mundo: um barro
que o cérebro modela
conforme seu grau
de esplendor
(A Busca da Luz / 1991-1992)
fértil
teu torso quebra ferros
no deserto
altera
o rumo funéreo
das células
reverte
o norte adverso
das pétalas
e tece
na trama agreste
da terra
sua trilha alegre:
aérea
silo
ceifo safras
de pássaros
………………..guardo voos
………………..no silo
depois lavo
na arte
…………………e nos versos
…………………afio
a famélica
…….e ágil
……………….. foice lírica
…………………da íris
(Clara Mimese / 2012)
fontana
tua beleza não fala:
…………………………….atrita
…………………………….brilhos contra a íris
……………………..bate
……………………………. seu taco
……………………………..fantástico
……………………………..na cabeça de vidro
……………………………..do desespero
……………………………..e
…..dentro: cigarras
…………….papoulas
…………astros raros
…………….pêssegos
……………………………..uma floresta
……………………………..morna
……………………………..onde o afeto
……………………………..corre
……………(aquífero)
……………………………..e os tigres
……………………………..vêm saciar sua sede
(O Ciclo do Amor Recomeça / 2013)
meta
………………………fazer
………………………algo
………………………………..de crepúsculos e pétalas
………………………………..orgasmos e estrelas
…………………..formar
…………….. algum halo
………………………………..do fracasso
………………………………..e da perda
………………………………..tomar
………………………………..nas mãos essa massa
………………………………..de humilhação e mágoa
………………………………..beleza e alegria
…………….. e modelar
………………..uma fala
……………………………….tão vigorosa
……………………………….que ao próprio nada
……………………………….dê sentido
(O Plectro & as Horas / 2014)
via Ápia
…………………com o candelabro da boca encontro um caminho:
…………………túnel adunco sob a dor
…………………elevo
…………………………….acima do cérebro
…………………………….as velas da língua
…………………………….e miro um fim
…………………afundo
…………………………….o foco da fala
…………………………….como se falar cortasse
…………………………….os pulsos do escuro
……………………………. e o sangue
…………………………….vazando no solo
…………………………….revelasse esta
…………………………….rota:
…………………………….absurda e sacra
…………………………….que agora
………………..piso
(Ágrafo / 2015)
divícia
………………diria áurea
………………………tua presença
………………………ou dourada
………………………toda
………………………a realidade
………………………que te cerca
……………….com safiras
………………………difíceis
………………………de felicidade
………………………e os grandes diamantes
………………………da comunhão
………………diria
……………………..que és cofre
……………………..ou donário
……………………..escrínio
……………………..com colares de calores
……………………..e as joias do afeto
……………………..mas pobre
……………………..é o parâmetro
……………………..(quilate/cifra)
……………………..e pífia a lira
………………………(verso/rima)
………………………para dizer minha fortuna
………………………que só o amor
………………………— ábaco de brilhos —
……………………...mensura
(Sob o Baque do Belo / 2017-2021)
SUMA LÚCIDA – POESIA REUNIDA
(1991-2022)
adriano wintter / editora Patuá
918 páginas
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Adriano Wintter (1971), poeta e tradutor, nasceu e reside em Porto Alegre, Rio Grande do Sul. É autor das coletâneas: A Busca da Luz (1991–1992), Luz Léxica (1993–1995), Apotheosis (1996), Polimusa (2010), Mero Verbo (2010), Porto Alegre Desolada (2011), Clara Mimese (2012), O Ciclo do Amor Recomeça (2013), Ágrafo (2014), O Plectro & as Horas (2015), Quórum da Luz (2016), Sob o Baque do Belo (2017–2021) e Totelimúndi (2022). Participou da antologia Escriptonita (Patuá, 2015). Traduzido ao inglês, espanhol e catalão, tem poemas publicados nas revistas internacionais: sèrieAlfa (Espanha), Triplov, Caliban, Devir e Linguará (Portugal), Separata (México), Cinosargo (Chile) e Experimenta (Argentina); além das publicações nacionais: Revista da Academia Brasileira de Letras (R. B., nº. 82 e nº. 96), Suplemento Literário de Minas Gerais, Sibila, Eutomia — Revista do Departamento de Letras da UFPE, 7Faces, Babel, Ellenismos e Correio das Artes; nos jornais Relevo e Poesia Viva. Traduziu, entre outros: José Kozer (Cuba), Victor Sosa (Uruguai), Fernando Bensusan (Espanha) e Alfredo Fressia (Uruguai). SUMA LÚCIDA / Poesia Reunida (1991-2022), editora Patuá, com seus 13 livros inéditos, pode ser adquirida no link:
https://www.editorapatua.com.br/suma-lucida-de-adriano-wintter/p
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