Périplo
Périplo, originalmente, significa navegação em torno de um país, mas, no forte livro-poema de Otto Leopoldo Winck, ressignifica-se como viagem em torno de um quase nada: a miudeza antiépica de um herói sem nome, que circula entre os registros de um “ele”, de um “eu” e até de um “tu”, convocando o leitor a fundir-se nessa narrativa de onde o sublime foi excluído: “os pesadelos são todos teus”. Trata-se do “sonho da sola”, do que há de mais ínfimo e rasteiro, querendo em vão alçar-se, para, ao fim e ao cabo, atingir o “desconcerto total” e a defrontação com as “bocas de serpente”. Otto integra-se com êxito à linhagem dos cultores do poema longo, ao tecer, numa fina carpintaria imagética, um texto simultaneamente extenso e conciso – outras experiências bem-sucedidas no gênero normalmente estampam, na (des)medida do verso, um fluxo verbal mais distenso. Neste livro, porém, convivem extensão e tensão. O poeta, que vagou nos mares diversificados, mas igualmente belos de Cosmogonias (2018), hoje ancora seu verbo na transtemporalidade e na transespacialidade de um périplo à deriva, no convite a que nos acerquemos do abismo e da experiência da vacuidade radical: “inútil é o regresso / quando não se tem mais casa”.
Antônio Carlos Secchin
Confira uma seleta do livro-poema:
………I. Jaz
………uma expectativa
………nos umbrais da manhã:
………sem vestígios de memória,
………um sol
………ameaça irromper
………por entre as brumas desaconselheiras.
………Todo sol é fogo.
………Todo fogo é chama.
………E toda chama
………chama
………de um novo e inopinado nome
………a vida:
………branco como um seixo
………colhido no mais límpido regato
………da manhã inaugural
………do paraíso.
………VI. Jaz
………pisa o pé,
………a mão apalpa
………e a vista alcança,
………é gleba de tangíveis
………geografias,
………antecipação do heróico jubileu,
………minarete universal.
………Êxodo, périplo, hégira,
………véu rasgado, máquina interpelada
………– tal é a senha,
………a sanha, o sonho,
………o senso
………da sola dos nossos sapatos.
………Todas as calçadas da terra
………anseiam
………por este triunfante palmilhar.
……..XII. Meio-dia.
…….. .Meio prato.
…….. .Meia-vida.
……… Mea culpa?
………XIV. Bússulas, sextantes, astrolábios
…….. .me desencaminharam.
……… O estrelado céu
……… certeza já não é
……… de fixa trajetória.
…….. .XVI. Todos são iguais
……… à mesa:
……… o mesmo trago
……… serve de remédio
……… à mesma vida
…….. .incompletada.
……… O mesmo rito.
……… O mesmo ricto.
……… O mesmo pacto
……… ante a muda noite
……… profetizada:
………………………….. . . ignoramos.
…….XX...Ulysses, Ulysses:
………inútil é o regresso
………quando não se tem mais casa.
Otto Leopoldo Winck é doutor e mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), nasceu no Rio de Janeiro, capital, em 1967. Depois de uma passagem por Porto Alegre, radicou-se em Curitiba, em 1982. Em 2018, lançou pela Kotter Editorial, Cosmogonias, reunindo sua produção poética dos últimos cinco anos.
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