Marabô Obatalá
por Claudio Daniel
Oriki é o
poema ritual da tradição iorubá, cantado até hoje nos terreiros de candomblé,
celebrando os orixás. Quem introduziu o oriki
no Brasil foram os negros africanos, escravizados no período colonial-monárquico,
que conservaram as suas tradições religiosas sob o aparente sincretismo com o
culto aos santos da devoção cristã. As primeiras traduções desses textos orais
para o idioma português em forma poética elaborada foram realizadas por Antonio
Risério em seu belíssimo livro Oriki
orixá, publicado pela editora Perspectiva na coleção Signos, dirigida por
Haroldo de Campos (antes do notável trabalho tradutório de Risério, circularam
entre nós versões literais desses cantos sagrados, feitas por estudiosos como
Pierre Verger). Em seu livro, Risério apresenta aos leitores excelentes ensaios
críticos e traduções de alguns desses poemas cantados. Ricardo Aleixo publicou orikis de sua autoria no livro A roda do mundo. Ricardo
Corona, Fabiano Calixto e Frederico
Barbosa também escreveram bons orikis. Minha pesquisa nesse campo procura manter elementos do oriki tradicional — os nomes e epítetos
dos orixás, pequenas narrativas, provérbios e mitos, incorporando referências à
situação do país, que desde 2013 vive sob grave crise política e social, que
redundou no golpe de estado de 2016 e no atual regime de exceção. Todos os
poemas que compõem este livro foram escritos entre fevereiro e março de 2015,
com exceção do oriki de Orunmilá, redigido em 2006, e os de Oxaguiã, Ikú e
Otim, elaborados entre 2016 e 2017. As linhas apresentadas em itálico no
interior dos poemas são citações de “pontos[1]” cantados em terreiros de umbanda no Brasil e os textos
são apresentados conforme a ordem do xirê
cantado no candomblé (adotamos a sequência estabelecida por Pierre Verger no
livro Orixás, com poucas variações[2]). Minha seleção de 21 orixás incorporou divindades
cultuadas nas nações ketu e jejê. No final do volume, apresentamos
um glossário com as palavras em iorubá que aparecem nos poemas. A primeira
edição desta obra, impressa, saiu em 2015, com o título O livro dos orikis; a nova versão, que o leitor tem agora em mãos,
apresenta, além dos novos poemas, a revisão dos mais antigos. O título adotado
nesta versão, Marabô Obatalá, é
composto por nomes de Exu e Oxalá, orixás que abrem e fecham as cerimônias de
candomblé (Marabô é um nos nomes ou
qualidades de Exu, e Obatalá, de
Oxalá).
[1] Os “pontos” de umbanda, cantados em português, são diferentes dos orikis, cantados em iorubá nos terreiros de candomblé, mas são igualmente formas de poesia cantada de louvor aos orixás. Na pesquisa que realizei para a composição deste livro, considerei as duas formas de canto sacro.
[2] A princípio, adotamos a sequência apresentada por Pierre Verger, no livro Orixás; depois, consultando outras obras de referência, como Mitologia dos orixás, de Reginaldo Prandi, e O candomblé bem explicado, de Odé Kileuy e Vera de Oxaguiã, mudamos a ordem dos poemas, até estabelecermos a sequência apresentada aqui. Em todos os autores consultados, a sequência do xirê é diferente; todos concordam, porém, que Exu é saudado em primeiro lugar e Oxalá por último.
***
XANGÔ
Xangô Oluaxô —
o raio rubro
rasga o céu.
Obakossô
faz o forte fugir
de medo.
Alafim de Oió
não lute comigo.
Alafim de Oió
seja meu abrigo.
Oba Arainã
fala com boca
Oba Arainã
fala com olhos
Oba Arainã
fala com pele
Oba Arainã
fala com raio.
Leopardo de Oiá
não lute comigo.
Leopardo de Oiá
seja meu abrigo.
Aganju
boca-de-chispa
mata o que mente
com pedras de raio.
Mastiga os juízes.
Castiga a mídia.
Oba Lubê
não lute comigo.
Oba Lubê
seja meu abrigo.
Oba Orungá dança alujá
queima a xota
da dondoca.
Oba Orungá dança alujá
queima o falo
do Bolsonaro.
Oba Orungá dança alujá
e saúda a beleza
que há no mundo.
Oba Orungá dança alujá
e saúda a beleza
que há no mundo.
Kawó Kabiesilé
IANSÃ
Oiá vem
com o vento
vem e revém
mãe do meu
pensamento.
Faz a pedra
flutuar.
Escreve
na folha
palavras
de vento.
Mulher-animal
faz amor
amar
e medo
sentir medo.
Eeparrei!
Come pimenta
vermelha.
Dança com pés
vermelhos.
Olha com olhos
vermelhos –
como se
quebrasse
cabeças.
Mulher-animal
dona do raio
e do vento
– aquela
que vem
dançando
aquela
que vem
dança-dançando
aquela
que vem
dança-noite-dançando.
Oiá ô!
Tira tripa
do mentiroso.
Fura olho
do preguiçoso.
Mãe do meu
pensamento
não me queime
com o sol
da sua boca.
Afefê Ikú Funã
aquela-
que carrega-
o-chifre-
de-búfalo-
e-dança-
no-cemitério-
coberta-
de-cinzas-
dissipa meu tormento.
Eeparrei
OBÁ
Obá Obá
moça que
é noite
moça que
é rio.
Obá Obá
lutou
com Oyá
venceu
Oyá.
Obá Obá
moça que
é noite
moça que
é rio.
Obá Obá
lutou
com Exu
venceu
Exu.
Obá Obá
moça que
é noite
moça que
é rio.
Obá Obá
lutou
com Oxalá
venceu
Oxalá.
Obá Obá
moça que
é noite
moça que
é rio.
Obá Obá
cortou
a orelha
por intriga
d’Oxum.
Obá Obá
moça que
é noite
moça que
é rio.
Obá Obá
cortou
a orelha
por amor
de Oba-
Orungá.
Obá Obá
moça que
é noite
moça que
é rio.
Obá Obá
protege
aquele
que ama.
Obá Obá
protege
aquele
que luta.
Obá Obá
moça que
é noite
moça que
é rio.
Obà Siré!
OXUM
Fêmea-das-águas
senhora do Ijexá.
Dona das danças
desliza no vento.
Oxum ibu anyá:
ouve meu lamento.
Senhora da brisa
atende meu intento.
Sábia òbò mèjá
púbis-pensamento
que fere com ferro
e cura o ferimento.
Mãe de Logunedé
vem neste momento.
Ifá de bom agouro
não se contradiz.
Moça-ouro-mel
quero a flor-de-lis.
Moça-ouro-mel
dê-me quem eu quis.
Moça-ouro-mel
se acaso consentis.
Moça-ouro-mel
sem manha ou ardis.
Moça-ouro-mel
ao feroz fará feliz.
Moça-ouro-mel
Ekiti efon-imperatriz
Ora iê iê ô
OXALÁ
Oxalufã —
aquele-que-caminha-
na-areia-
mestre dos corcundas
Obatalá —
aquele-que-come-
caracol-
forte como touro branco
Onírinjà —
aquele-que-nunca-
se-esquece-
faz o mentiroso
ficar surdo.
Ọbaníjìta —
aquele-que-nunca-
se-esquece-
faz o mentiroso
ficar mudo.
Olufón —
aquele-que-grita-
quando-acorda-
livra a filha
da armadilha.
Òòsàálá —
aquele-que-come-
rato-e-peixe
faz a moça estéril
embarrigar.
Olúorogbo —
aquele-que-fulmina-
fascista-
faz tucano virar
farelo.
Orixanlá —
aquele-que-se-veste-
de-branco
aquele-que-canta-
vestido-de branco
aquele-que-dança-
vestido-de-branco
aquele-que-é-dono-
da-xota-de-Iemanjá
— Òrìşáko!
Epa Bàbá!
.
.
Claudio Daniel é poeta, ensaísta, tradutor e doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP), onde defendeu a tese “A recepção da poesia japonesa em Portugal”. Realizou o pós-doutoramento em Teoria Literária pela Universidade Federal de Minas Gerais. Curador de Literatura e Poesia no Centro Cultural São Paulo entre 2010 e 2014. Colaborou na revista CULT. Editor da Zunái, Revista de Poesia e Debates. Publicou os livros de poesia Sutra (1992), Yumê (1999), A sombra do leopardo (2001), Figuras metálicas (2005), Fera bifronte (2009), Letra negra (2010), Cores para cegos (2012), Esqueletos do nunca (2015), Livro de orikis (2015), Portão 7 (2019), Cadernos bestiais (2019) e o livro de contos Romanceiro de Dona Virgo (2004), entre outros títulos. Como tradutor, publicou a antologia Jardim de camaleões, a poesia neobarroca na América Latina (2004) e antologias do poeta cubano José Kozer, do argentino Reynaldo Jiménez, do uruguaio Victor Sosa e do dominicano León Félix Batista, além da antologia Ovi-Sungo, Treze poetas de Angola. Em Portugal, publicou a antologia poética pessoal Escrito em Osso. E-mail: claudio.dan@gmail.com
Comente o texto