As anotações de viagem de Jeanine Will
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Tornou-se um chavão classificar obras que parecem enigmáticas, obscuras ou criptográficas como surrealistas, pela dificuldade de acesso ao sentido. Pior, quando chamam o Brasil de “país surrealista” (antes fosse). Ademais, surrealismo não pode ser justificativa: a precedência, ao se tratar de criação literária, deve ser do valor, evidente em passagens como esta de Caminhão de mudanças de Jeanine Will:
mas luz nem sempre é chama
a claridade muita vez só arde
no centro do silêncio da trama
Ou, entre tantos exemplos possíveis, a delicadeza – tônica dominante do livro– deste epigrama dentro de um poema: “a vida queima em pé como uma vela”. E um este verso admirável: “eu sou outra vez solúvel em saliva e luz”. Poderia dar mais exemplos do modo como se expressa por harmoniosas combinações de som e sentido:
todas as cores sinalizam as práticas do fogo
a seda cedendo sobre a pele
cedendo-se sedenta de epiderme
concedendo sua centelha de alarme
Mas é inevitável ler seus poemas na chave surrealista. Isso, não só pelas imagens bretonianas – “uma concha passeia pelo riso da aurora” – mas por menções e alusões. Não se trata de “situar” a autora, substituindo a interpretação pela classificação; porém de adicionar sentido, expondo algo de sua riqueza simbólica. Por exemplo, em um título como este: “Atividade de nuvens”, que remete ao que diz André Breton em O amor louco: “Levantar os olhos daqui de baixo, da terra, para uma nuvem, é a melhor forma de interrogar nossos mais íntimos desejos […] Onde poderei eu estar melhor que no seio de uma nuvem, para adorar o desejo, único impulsionador do mundo, o desejo, único rigor que o homem deve se impor?”. E aos versos de Baudelaire citados por Breton nesse livro: “As maiores regiões, a mais pujante aldeia,/ Não continham jamais os encantos secretos/ Dessas que o acaso com as nuvens delineia./ E eis que o desejo nos fazia mais inquietos!” Olhar para as nuvens e enxergar formas cambiantes equivale – para Breton, para Baudelaire – à superação da dicotomia entre subjetividade e objetividade, desejo e realidade. Assim como para Jeanine: “ele é uma tatuagem na pele das nuvens / neste ensaio quase invisível que é viver”.
Há menções mais diretas ao surrealismo, como no poema “Carta molhada”:
Peixe solúvel
quando você ler esta mensagem
o mar já terá entrado pela janela pra devolver o fóssil dos sonhos
as mãos de Netuno estarão enredadas nos mísseis de amar
a matemática será uma sereia derretida num trinômio quadrado perfeito
o ar será palpável como teu delírio
Peixe solúvel é o título da série de escritas automáticas de Breton que acompanha o primeiro Manifesto do surrealismo. Um oximoro, locução contraditória, que adquire mais sentido ao saber-se que Breton, fascinado pela astrologia, era do signo de Peixes. Torna-se anáfora no poema de Jeanine, repetido como invocação:
Peixe solúvel
quando você ler esta mensagem
vestida de brinquedo
eu já terei dormido
no ombro do meu degredo
Principalmente, o título Caminhão de mudança pode ser ligado a um trecho do Manifesto do surrealismo de Breton, o trecho contra a morte: “Não vos esqueçais de formular adequadamente vossas disposições testamentárias: eu, por exemplo, peço que me transportem ao cemitério num caminhão de mudanças.”
Há razões para supor que a escolha não só do título, mas do pseudônimo – “Caminhão de mudanças” é como Jeanine se apresenta no meio digital – precede a leitura da obra bretoniana. Trata-se, antes, de sincronia e afinidade. O livro é sobre sua própria subjetividade, vista como morada, com todos os utensílios, porém em trânsito. Duplo trânsito, diria: de transformação pessoal e mudanças reais, de algum remoto local em Santa Catarina para a metrópole, além de viajar pelo mundo. Por dois mundos: este, físico, e o interior, interagindo e relacionando-se em uma rotação de signos da qual resulta o “ardoroso poema mudo deslocando-se na contramão”.
Conflita com o exame como surrealista o livro ser arquitetado, divido em partes de modo tal que parece obedecer a um plano? A estruturação, fazendo que livros de poesia obedeçam a um plano geral, tem antecedentes. Na modernidade, a estruturação numérica e o plano geral da obra foram retomados por Baudelaire, o poeta das analogias e correspondências, em As flores do mal. Antes, por William Blake. E essa arquitetura será retomada em obras capitais do século XX: o tão simétrico Quatro quartetos de T. S. Eliot e os colossais Invenção de Orfeu de Jorge de Lima, em dez cantos, e Altazor de Vicente Huidobro, em sete partes. E o texto inicial ou iniciador do surrealismo, Les champs magnétiques, escritas automáticas de Breton e Philippe Soupault em 1919, também foi dividido em capítulos, um para cada sessão, que depois receberam títulos. Isso já suscitou dúvidas de críticos sobre a fidelidade ao automatismo psíquico, à espontaneidade plena. Mas na criação poética delírio e lucidez não são antagônicos: confluem e dialogam.
Caminhão de mudança pode ser lido como narrativa, relato de viagem, porém com trechos e partes intercambiáveis, como em um jogo de armar, ao mostrar um lado menos evidente da realidade, no qual “as sombras são apenas sóis introspectivos”. Uma negação – no sentido dialético da palavra – deste mundo de coordenadas terrestres? É o que diz a poeta: “partir é coisa que não tem sim”. Fala dos móveis e utensílios da vida interior. Ou são as coisas que falam através dela? É o que sugere: “meu corpo é um abraço trancado no armário da cidade”.
Assim como transitamos pelo tempo cronológico, também viajamos por nossa subjetividade. Mas, em um paradoxo apenas aparente, é a subjetividade que nos viaja; o “nós” ou “eu” sempre é outro: “e o trem do sonho não pára de percorrer os sentidos”. Gérard de Nerval havia declarado: “Eu sou um outro”, assim ligando-se à tradição dos duplos românticos. Rimbaud nos deu uma variante mais precisa e ousada: “O Eu é um outro”. Jeanine mostra o “outro” em movimento, o sujeito em processo, nestes poemas constituídos por evocações semelhantes aos “restos do cotidiano” nos sonhos (como designados por Freud)’: “submerjo na caixa de musgos da memória”. Harmoniosamente regidos pela analogia, pela qual tudo pode ser outra coisa:
a realidade será um cetáceo aniquilado
a motocicleta ainda será uma ilusão na praia
o olho anacoreta estará buscando quase amor
e os corpos estarão tecendo a invenção do fogo
O motivo central para associar Jeanine ao surrealismo, independentemente das citações e alusões, é o caráter onírico da sua poesia, constituída por deslocamentos: “fumo jazz de soslaio / parada ao piano da tua desaparição”.
Fala-nos de um mundo que parece fisicamente ou logicamente impossível, porém poeticamente verdadeiro. Por isso, oferece respostas a perguntas como esta:
o que seus olhos procuram
quando contornam as curvas
azuis e frias que interrompem
o escuro do dia?
***
Uma seleta de Jeanine Will
Quarta-feira de sinas
a morte levanta-se do chão e toca nosso trompete
mas o som de metal mastigado ainda não caria a noite
a morte caminha e toca nossa flauta transversa
mas a pressa das notas ainda não envenena o ar
a morte bate com o ombro na realidade
mas não pode com o transatlântico atracado na janela
a morte pára sem olhos conversíveis diante das estrelas
mas come do chão a sua boca corriqueira
enquanto o coração safenado do dia vai arrastando sua nudez na chuva
traspassado pelo arco de um violino fantasma
**
Olhar em detalhes
Lido nalgum lugar:
“já é tão tarde
que é amanhã pra qualquer coisa”
ele é uma tatuagem na pele das nuvens
neste ensaio quase invisível que é viver
levantam brumas entre bambus e pínus
vejo mãos indisfarçáveis, fumaça e flores
como estancar sua imagem?
o amarelo do ipê vira a esquina
e no meu relógio são sempre suas horas
a língua ainda lambe o seu pergaminho
improvisando um alfabeto pr’agora
a boca silencia mais um drink
evitando a porta da manhã
o pássaro da dor é o único que não se abala no galho
**
Leitura das águas
duas noites se encontram numa parede sem estrelas
e a pálpebra amanhece rabiscada
os muros se sucedem no ofício desmontando trípticos
e com rumores inaudíveis as peles se pedem
o sonho se revolve em busca da tua folha
preciso um novo alfabeto para alcançar tua boca
num lugar do teu braço direito
entre o que penso e vejo
entre risos e estações trocadas
o meu ombro se demora
**
Atrás das coisas da tarde
há dez anos desembrulho essa cidade
e agora você se coloca na moldura dos olhos
não sei como te dizer calmamente:
o batom dele escorre na lateral da tua boca
pra onde foge essa cor de loucos?
deslizo par’alcançar o escorpião com os dentes
olho pra você com vontade de ver mais
tenho as mãos adormecidas na tua pele
perduro nas tuas barbas
onde os sonhos fazem acrobacias
debulho o teu sorriso cifrado
para abrir espaço pras línguas
um afeto se faz perguntas:
caberão os corpos na nossa estréia?
vasculho as entrelinhas da tua fumaça
e me sobe um paraíso pela nuca:
tua voz se acende às três da manhã
[do livro Caminhão de Mudança, Córrego, 2017]
***
A máscara dos azares não inventados
viver é apanhar na rua
e chorar em casa
nos braços de um sofá
**
as árvores se debruçam
sobre o mundo
e murcham
**
La hora herida
en un rincón muy distante de la canción de tu vida
un arroyo hace ruido – intenta superar las piedras
la semilla sin esperanza de tierra
el reloj de la montaña saca el sol de la vitrina
el día se pone su capuz de desaliento
bajo la plata nocturna un peso de plumas
el vuelo que no logré
soy toda una duda vestida de rosas
herida por los espinos que adivinábamos
miro a tu rostro en la memoria
tantas hojas entre nosotros
el rastro lento de los días
la densa sensación de despertenecer
el recuerdo de los momentos – ahora agrietados
la mano floja echa al triste destino esta pieza que no faltaba
el suelo duro
la huida de fuertes pies preparados
es imposible la prueba de sonido con corazones tan alejados
cada silencio es una piedra más en los oídos
el vuelo cristalizado es un ladrillo inmenso de la sombra
el dolor es un bálsamo contrariado
una caries en su máximo volumen
mientras el viento mueve morados inimaginables
**
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El encanto de la herrumbre
soy un cuerpo azul desentrenado
desamparado por cuellos de arena – las brújulas del tiempo
escucho tu voz de edificio abandonado
un recuerdo rumiado vuelve a la boca ya sin gusto de ayer
siento las astillas de tus manos perdidas
un ruido de metal que se encuentra violentamente con otro
como un buque con el otro
veo tu rostro derritiéndose como papel bajo el agua de la canilla
un copo de sueño que se pierde en la montaña de la memoria
deslizo mis manos por la ciudad fantasma de tu domingo y nada…
el viento repite las lejanías sometidas a su fuerza
una raíz se revolotea inútilmente
veo un solar vacío sin huellas de vida pasada
su silencio enajenado y intachable
un sombrero traspasado a la sordina por un día feroz
convierte lo difícil en inalcanzable
una tropa avanza sobre esta edición tardía de la vida como una lengua muerta
el tiempo de bronce olvida nuestros cuerpos metálicos
inútiles elementos de una aleación que ha fallado
yo me acabaré pero la pianola del mundo sigue su canción fantasma
En colaboración con Luiz Carvalho
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[Inéditos em espanhol, e do livro Para-choque]
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[Claudio Willer e Jeanine Will estarão dialogando e lendo seus poemas na Casa das Rosas. Confira aqui]
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