A recusa do tempo perdido
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Um dos mais originais escritores brasileiros, o mineiro Pedro Maciel lançou recentemente seu novo romance, “Previsões de um cego”, (Ed. LeYa, SP, 2011), obra que consolida uma carreia literária bem-sucedida e recepcionada pela crítica, cujo estilo particulariza e a torna densa e cristalina.
Entalhada em forma de monólogo, a obra reverbera a voz de um personagem angustiado, vivendo seus dias de clausura preso ao leito de um hospital, onde está para tratar-se de dependência química, ao mesmo tempo em que tenta escrever sua obra, “O livro do esquecimento”. De forma caótica e fragmentária faz uma espécie de encontro de contas existencial, tendo como foco sua renúncia ao passado, esses sol e sombra de seu tempo, que insiste em chafurdar os seus pensamentos sem dar sossego ao seu espírito.
Ao olvidar (ou contestar) o que ficou para trás “a lembrança é um tempo de esquecimento. Tudo é esquecimento”, há uma tentativa desesperada de sobrevivência diante de um presente que se vive expectativa de construção de um futuro inexistente que o negará. Esse assombro parece persegui-lo eternamente, mas também é força motriz para manter-se vivo, ainda que condenado à memória e a própria identidade, como num embate entre dois espelhos (ou realidades) distintos. Eis a metáfora que simboliza a eterna oposição, ou relação dialética, entre realidade e ficção, delírio e sanidade, sintoma, que no mais das vezes, constitui-se na perturbação reinante na sociedade contemporânea, tão perdida nos atalhos de suas próprias contradições, que coloca o ser em permanente desafio nas encruzilhadas do caminho.
“Vivo para esquecer e não para lembrar” – reverbera esse personagem, que tudo indica está em tratamento por dependência química, e circula num reino em que tudo parece impreciso, vazio e sonolento, como são as enfermarias ou o cárcere das reclusões psiquiátricas. À mercê da insularidade psicológica, vai elaborando sua espiral de desatinos, levando-o a um lugar sem finalidade, talvez esse “cemitério de ventos” onde é impossível saber o que é tempo e espaço, o que é noite ou dia, o que é presente ou passado, o que é verdade ou maquinação de uma mente atormentada.
Diante dessa procela em que é lançado, como nau à deriva num mar de insanidades, ele proclama sua louca verdade: “O esquecimento me salvou de mim mesmo”, pois a memória é algoz que não dá trégua. Por isso insiste na vida para negar a morte, porque essa morte é o passado, aquilo que ficou submerso na rudeza e contumácia da cronologia, para ele um pomar onde procriam-se sombras e fantasmas. E ele se inquieta quando inquire: “Estou aqui desde sempre?”, pois, se pudesse, o passado só seria revisitado para esfregar, como uma assepsia, uma borracha nas lembranças, esse flagelo, essa lâmina de realidade que não quer penetrando a solidão da carne e da alma, que padecem de um crepúsculo selvagem.
Numa cascata de reflexões, de questionamentos e expansões oníricas que vai se desdobrando ao longo do texto, como palimpsestos íntimos, o balanço delirante se constrói a partir de sentenças que borbulham, transbordam como verdades lançadas a esmo, emergindo da imensa erupção de uma (in)consciência que vai se desnudando num imenso e labiríntico iceberg interior: “Estou doente de penumbras”, “Estou esperando o futuro para esquecer de vez o passado”, “Eles dizem que sofro sonhos”, “Cada um é a assombração de si mesmo”, tudo para culminar numa fulminante constatação: “Ter vivido e não lembrar. Não sou ninguém, mas não conto a ninguém que não sou ninguém”.
Além de outro doente, um vizinho de leito que o instiga na sustentação de seus delírios e acicates, a palavra é seu único recurso, sua única companhia, seu escape e âncora para o porto seguro nesse mundo de sombras, nessa atmosfera de aflição e angústia. É a palavra a sua única, verdadeira e profilática arma para reescrever o tempo e reinventar a vida.
Em “Previsões de um cego” Maciel radicaliza seu meticuloso processo criativo, calcado na economia de meios, na vinculação ao poético, na recusa a qualquer truque, enfeite ou estripulia formal. Concentrando-se na eficácia de uma linguagem que dispensa adereços e que comunica, com harmonia, delicadeza e sofisticação, o que é essencial e profundo na natureza do personagem e da própria arte, presenteia o leitor com uma narrativa bem elaborada, trazendo hálito novo à ficção contemporânea brasileira.
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[Publicado, orginalmente, no Diário da manhã, Goiânia, sexta, 23 de março de 2012]
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Ronaldo Cagiano é autor de “Dicionário de pequenas solidões“ (contos) e “O sol nas feridas” (poesia), dentre outros. É mineiro de Cataguases e vive em São Paulo. E-mail: ronaldo.cagiano@caixa.gov.br
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30 abril, 2012 as 23:00