Memórias pósteras do Capitão Nosferato
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40 anos sem as mordidas do vampiro tropicalista da marginália
abaixo o senso das proporções
pertenço ao número
dos que viveram uma época excessiva
(“Coroas para Torquato”, Paulo Leminski)
Let’s Play That: “Quando eu nasci/ um anjo torto, muito louco/ veio ler a minha mão”. Ele foi cuspido ao mundo em 9 de novembro de 1944, com a tarefa de mijar no piquenique dos contentes. Ele arrombou a festa, desafinou o coro dos estúpidos e foi embora em 9 de novembro de 1972. Ele era filho único. Ele era canhoto. Ele cumpriu a missão, tomou o último gole e pediu a conta. Não é fácil ser gauche na vida! Quem quiser ficar, que fique: “Pra mim, chega” – estava escrito no bilhete de despedida que deixou. Mas o bilhete é o de menos. A morte é o de menos. O que deixou é demais…
Como uma espécie de Brás Cubas, atou as pontas do fim às do começo: chegou e partiu na mesma data – 28 anos depois. Mas, diferentemente da personagem machadiana, as memórias que legou não são póstumas: nossa personagem é um autor defunto, não um defunto autor. Suas memórias foram escritas em vida, com a vida: só quem vive tem o que contar. Nas palavras de Wali Salomão, companheiro de geração, o presente é o futuro passado. Só quem vive intensamente pode legar histórias ao futuro: o que se vive hoje é o que se pode narrar amanhã. Por isso, suas memórias são pósteras.
Mário de Andrade dizia que, se não podia servir de exemplo a ninguém, que ao menos servisse de lição: as memórias de nossa personagem servem de lição aos atuais e futuros rebeldes transgressores, embalando-os no acalanto da revolta e do inconformismo. Lição de subversão: rima e solução. Mas, como este amante de frases de pára-choques de caminhão gostava de repetir: “Não me acompanhe que eu não sou novela… Bem na linha do poeta-andarilho-samurai Bashô: “Não siga os antigos. Procure o que eles procuraram”. O mesmo sábio que, a propósito, ensinava: “Respeite as regras. Então, jogue todas para o alto. Pela primeira vez, você atinge a liberdade total”.
Não deu pra sacar ainda de quem estamos falando? Mais algumas notas: Pablo, qual é a música? Em resposta a um questionário da revista Intervalo (especializada em televisão e co-patrociadora do Festival de Música da TV Record), deu a Toshiro Mifume e Marcelo Mastroianni o título de atores preferidos. O prêmio de atriz preferida ficou com Jeanne Moreau. Elegeu João Gilberto como seu cantor predileto. Maria Bethânia era sua cantora de estimação. Apesar de amante de música, era desafinado e não tocava nenhum instrumento. Adorava beber cerveja. Seu prato favorito era o vatapá. Aos 21 anos, media 1,74 e pesava 60 quilos.
Conforme seu biógrafo, o jornalista Toninho Vaz (que também escreveu uma ótima biografia do poeta Paulo Leminski: O bandido que sabia Latim), “ele tinha um jeito peculiar de se sentar à mesa do botequim, cruzando os braços abaixo do queixo, de modo a poder segurar os ombros com as mãos invertidas; as pernas, ele as cruzava até conseguir dar a segunda volta, como só fazem mulheres elegantes e homens de pernas compridas”. O poeta concretista Décio Pignatari assim se lembra do esquálido fumante inveterado (no texto Saudade do saudável: uma saudação): “o cotovelo à mesa, braço e mão davam justinho para guindar o cigarro à boca. Baforava para cima, magro, um pulso de menino de oito anos, falava baixo como quem quisesse dar a impressão de que não estava falando, ou não quisesse falar, ou de que tudo era redundante – e esse era o seu humor”.
Seu amigo Jards Macalé, compositor e músico, recorda que ele, como o cineasta Glauber Rocha, “tinha a mão mole e gesticulava muito”. Geraldo Vandré, ícone da música de protesto com a célebre Pra não dizer que não falei de flores (que perdeu o primeiro lugar no III Festival Internacional da Canção para Sabiá, de Chico Buarque e Tom Jobim) dizia que ele era “o inocente do Piauí nas mãos dos baianos” (referindo-se a Caetano e Gil). Para o tropicalista Rogério Duarte (artista gráfico que fez o cartaz do filme Deus e o Diabo na terra do sol, de Glauber Rocha), ele “não era um homem de rebanho (…) era um Dom Quixote, um magrelinho que se lançava contra os moinhos de vento com uma coragem total”. O amigo e cineasta Ivan Cardoso lembra que ele era de escorpião, “signo dos que não temem a morte”. O amigo e poeta Duda Machado registra que ele “era da raça dos que são a faca e a ferida”. Segundo o jornalista Tárik de Souza, ele “viveu o sufocante claustro cultural do regime [militar] e, apesar do humor em sua criação, foi derrotado pelo pessimismo”.
Já deu para sacar qual é o nome do homem? Maestro Zezinho, mais algumas notas: ele escreveu com Edu Lobo canções como Pra dizer Adeus (gravada também por Elis Regina), bem no estilão bossa nova. Compôs letras românticas como Zabelê, em parceria com Gilberto Gil. Com o ex-Ministro da Cultura, seu maior parceiro, fez também Louvação, na linha das canções de protesto. É de sua autoria um dos hinos do movimento tropicalista, a canção Geléia Geral: “Um poeta desfolha a bandeira/ e a manhã tropical se inicia”. Que também parodia o Hino à Bandeira, numa espécie de “antihino” (termo do poeta concretista Augusto de Campos) que ironiza os clichês ufanistas tão em voga nos anos de chumbo da ditadura militar: “Salve o lindo pendão dos seus olhos”. Que também tira uma onda do romântico Gonçalves Dias: “minha terra é onde o sol é mais limpo/ e mangueira onde o samba é mais puro”. Que também exalta a antropofagia do modernista Oswald de Andrade: “A alegria é a prova dos nove” (máxima do Manifesto Antropofágico do poeta da Semana de Arte Moderna de 22). Que também funde antropofagicamente a música jovem internacional (o iê-iê-iê dos Beatles, cuja versão tupiniquim é a Jovem Guarda de Roberto Carlos e cia) ao folclore nacional (o bumba-meu-boi): “ê bumba iê, iê, boi”. Que também funde antropofagicamente a indústria à natureza: “formiplac e céu de anil”. Que também funde antropofagicamente o arcaico ao moderno: “pindorama, país do futuro”.
Ele foi jornalista cultural, armando suas barricadas na polêmica coluna Geléia Geral, do jornal Última Hora (título extraído da seguinte frase de Décio Pignatari: “na geléia geral brasileira alguém tem de exercer as funções de medula e osso”). Foi editor, junto com o poeta Wali Salomão, da revista Navilouca, importante publicação da contracultura tupiniquim (na transição entre a Tropicália e o movimento dos chamados “poetas marginais”), projeto eclético que reuniu textos de poetas (como os concretistas Décio Pignatari, Haroldo e Augusto de Campos), artistas plásticos (como Hélio Oiticica e Lygia Clark), de cineastas (como Ivan Cardoso) e músicos (como Caetano Veloso).
Ele foi também roteirista e diretor do programa Vida, Paixão e Banana do Tropicalismo, ao lado do poeta e compositor Capinam (o programa seria exibido na Rede Globo, mas foi vetado pela Rodhia, empresa patrocinadora; então, foi gravado na gafieira Som de Cristal, no centro de São Paulo). Na capa do disco Tropicália ou Panis et Circensis, posou de dândi revolucionário, com uma boina à Che Guevara, à frente de Tom Zé e ao lado de Gal Costa. Foi também ator de filmes em super-8, como Nosferato no Brasil, do cineasta “marginal” Ivan Cardoso (nova estética que combatia o Cinema Novo de Glauber Rocha). Aliás, amante da sétima arte, considerava Buñuel e Pasolini os maiores pensadores do cinema…
Em sua biografia, rolam muitas pérolas que ajudam a edificar o mito do artista “maldito”. Por exemplo, ele acompanhou o amigo e artista plástico Hélio Oiticica (cuja obra Tropicália, aliás, serviria de inspiração para o batismo do movimento musical) em viagem de navio para Londres, onde este faria uma exposição, levando um fuminho para outras viagens. Em carta ao artista Rubens Gerchman, Oiticica (cujo lema “Seja marginal, seja herói” homenageava o amigo Cara-de-Cavalo, bandido morto pelo Esquadrão da Morte) dá o tom da trip transatlântico-transgressiva: “Você acha que no mar, no navio, o fumo será demais, ou melhor, dará pânico? Não sei quem me contou que um sujeito se atirou no mar depois de queimar um fumo. Será que eu e [ele] faremos isso? Se eu achar que o movimento do navio já é uma ‘onda’ legal, não queimarei nada, ou então muito pouco”.
Chegando ao destino, ele conheceu e entrevistou Jimi Hendrix (outro gauche, outro canhoto) – embalados pelo álbum branco dos Beatles e haxixe. Nas palavras do biógrafo: “o guitarrista, que tinha moral de gigante e estatura de jóquei, abriu uma misteriosa caixa de sapatos, recheada com variados tipos de drogas. Havia marijuana, haxixe, anfetaminas, ácidos, mescalina – impossível determinar com exatidão a variedade em oferta”. Em Paris, hospedou-se no hotel Stella, no mesmo quarto em que morara o poeta beatnik Allen Ginsberg (que exerceria grande influência na contracultura dos anos 60): “O teto era rabiscado com um texto que diziam ser de Ginsberg. Eu não tinha motivos para duvidar, pois ele realmente havia morado ali. Nunca fui confirmar a veracidade, mas, de qualquer maneira, era bom dormir sob os versos de um poeta”.
Se Mário de Andrade foi 300, 350, ele foi Torquato, Torquatro mil. Estamos falando de Torquato. Do Torquatália. Do Torquato da Tropicália. Do Torquato da Marginália. Do amante dos trocadilhos que também assinava Toudequatro Neto. Yes, your name is Neto: Torquato Neto. Estamos falando do Neto que não quis segurar o brasão da família, que não quis seguir a tradição, mas que fez do nome do antepassado seu próprio nome, levando a sério a lição de Freud. Do Neto que corajosamente disse bye, bye à mãe, como atesta a canção Mamãe, coragem: “mamãe mamãe não chore/ a vida é assim mesmo/ eu fui embora/ mamãe mamãe não chore/ eu nunca mais vou voltar por aí/ mamãe mamãe não chore/ a vida é assim mesmo/ e eu quero mesmo é isso aqui/ mamãe mamãe não chore/ eu quero eu posso eu fiz eu quis”.
Aliás, sobre a canção, que é a faixa 10 (e é mesmo 10!) de Tropicália, Paulo Andrade diz o seguinte, na dissertação de mestrado Torquato Neto: uma poética de estilhaços: “[a letra] discute a ruptura dos jovens corajosos e decididos que negam a estabilidade, a tranqüilidade e o conforto do lar de classe média (espaço fechado) a fim de conquistar a própria liberdade num espaço aberto e perigoso da cidade grande” (on the road, meio Kerouac nordestino, foi do Piauí provinciano ao Rio cosmopolita, passando por Londres, Paris, Amsterdam…).
Torquato: um Neto que se assumiu sujeito, ousando dizer “eu” numa época em que é um descaramento dizer “eu” – firmando-se como exceção à regra formulada por Theodor Adorno. Um Neto, então, que se fez nato, apropriando-se de si para ser, como registrou no poema Cogito: “Eu sou como eu sou/ pronome/ pessoal intransferível/do homem que iniciei/ na medida do impossível/ eu sou como eu sou/ agora/ sem grandes segredos dantes/ sem novos secretos dentes/ nesta hora/ eu sou como eu sou/ presente/ desferrolhado indecente/ feito um pedaço de mim/ eu sou como eu sou/ vidente/ e vivo tranqüilamente/ todas as horas do fim”.
Este homem plural que também assinava “Capitão Nosferato” não escreveu uma autobiografia, não deixou um livro de memórias. Aliás, não publicou nenhum livro em vida, como lembra o poeta Paulo Leminski, companheiro de geração: “Como Buda, Confúcio, Sócrates ou Jesus, Torquato não deixou livros”. Mas, diferentemente deles, Torquato escreveu. E não foi pouco. E em muitos gêneros. Seus textos foram reunidos por seu amigo Wali no livro Os últimos dias de Paupéria, publicado em 1973, que registra a vocação poligráfica do autor: artigos de jornal, poemas, letras de música, anotações de diário, cartas…
Além dessa pluralidade de gêneros textuais, Paulo Andrade destaca também a multiplicidade de estilos da escrita torquatiana, dizendo que sua obra oferece ao leitor “um conjunto de poemas e escritos em registros diversos que vão do lirismo sensível e intimista à paródia tropicalista, passando pelo experimentalismo construtivo, até atingir, a partir de 1969, níveis de linguagem cada vez mais radicais”. Sempre aberto às experimentações, incorporou elementos de estéticas diversas, transitando entre diferentes movimentos: foi, por exemplo, da poesia engajada ao poema processo, passando pelo tropicalismo e pelo concretismo.
Destacando a importância de sua obra para a produção vindoura, Heloísa Buarque de Holanda, no livro Impressões de viagem – CPC, Vanguarda e Desbunde: 1960/70, diz que esses textos “foram por algum tempo lidos como bíblia pelas novas gerações. Tanto a densidade da transcrição de suas vivências de limite quanto a avidez com que o livro foi lido e relido demonstram a força e a presença dos temas da loucura e da morte no momento”.
Sua influência foi fundamental, por exemplo, para os jovens autores da poesia pós pós-tropicalista, que ficaram conhecidos como poetas marginais. O poeta Glauco Mattoso, aliás, registra no livro O que é Poesia Marginal o seguinte: “se não foi o primeiro poeta marginal, foi um dos primeiros a assumir essa postura e a jogar com o termo: compôs Marginalia II com Gil”. Melhor ainda é o depoimento de um dos influenciados, o poeta Chacal: “O nome Artimanhas era uma homenagem ao poema que Torquato havia publicado na Navilouca. Aquilo acabou virando nossa marca” (“Artimanhas” é o nome das performances dos poetas cariocas dos anos 70, grupo que se autodenominava Nuvem Cigana).
Torquato foi um poeta do comportamento, apesar de nunca deixar de ter também um comportamento de poeta, com rigor construtivo e consciência da linguagem (marcas, por exemplo, que o diferenciavam dos poetas marginais, mais desencanados, espontâneos, intuitivos, desinformados). Como um flaneur baudelairiano na geléia geral brasileira, foi, segundo Leminski, “o poeta das elipses desconcertantes, dos inesperados curto-circuitos, mestre da sintaxe descontínua, que caracteriza a modernidade”. Poeta experimental de vida experimental, escreveu com a vida: nietzcheanamente, escreveu com sangue, com as tintas rubras da existência. Escreveu com o vermelho da paixão, com o vermelho da fúria, com o vermelho da subversão. Com o mesmo vermelho da cueca vermelha que cobria seu rosto quando foi encontrado morto no banheiro de sua casa, asfixiado pelo gás que abriu para vencer a lei da gravidade da vida: “Pra mim chega”.
Se não é possível escolher o dia da chegada ao mundo, é possível marcar a data da partida: suicídio aqui significa livre-arbítrio, escolha única, inalienável, intransferível, do sujeito. Subvertendo o cogito de Descartes, é como se dissesse: penso, logo desisto; estou farto, por isso parto. De fato, não se vive com intensidade impunemente: Torquato pertence ao número dos que viveram uma época excessiva. Por isso seus amigos da Navilouca celebraram seu passamento, na mesma madrugada neblinada de gás, com muito gás, num misto de lágrimas e risadas, lendo poemas, fumando maconha e ouvindo Rolling Stones. Porque as pedras não podem parar de rolar…
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Paulo César de Carvalho nasceu em São Paulo em 22 de abril de 1970. É bacharel em Direito e mestre em Lingüística pela USP, professor de Gramática, Interpretação de Texto e Redação do curso Anglo Vestibulares, co-autor do material de Língua Portuguesa do Sistema Anglo de Ensino, autor dos livros Tópicos de Gramática e Tópicos de Interpretação de Texto e Redação (Editora CPC – www.cpc.adv.br ou livraria@cpc.adv.br). Escreveu em co-autoria o material paradidático Arte e Cultura nos Anos 60 (Editora Anglo). Foi editor do boletim Texto & Cultura, colaborador das revistas Discutindo Língua Portuguesa, Discutindo Literatura, Arte & Informação, Livro Aberto e Libertárias e consultor da TV FUTURA no programa Tá Ligado? Foi curador da exposição Linguaviagem (organizada pelo Museu da Língua Portuguesa e Ministério das Relações Exteriores), que abriu em 2010, em Brasília, o Congresso dos Países Lusófonos. Sua dissertação de mestrado intitula-se Fragmentos epistolares de um discurso amoroso: elementos para uma análise semiótica do estatuto do gênero “carta de amor”. Tem poemas publicados no livro Na virada do século – poesia de invenção no Brasil (Landy Editora) e na antologia portuguesa Poezz (Almedina). Em 2010, lançou o livro Toque de Letra (editora nhambiquara). É vocalista e letrista da banda Os Babilaques. Tem parcerias com Tatá Aeroplano, Gustavo Galo e Cabelo (Trupe Chá de Boldo), Pélico, Juliano Gauche, Carlos Zimbher, Reynaldo Bessa e Wella Borges Costa. E-mail: carvalho70@gmail.com
6 março, 2012 as 2:03