Desnorteio


 

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Um punhado de areia nas mãos. Basta que essa reserva se perca e fique entre os dedos um único e pequeno grão: o grão da loucura. Pois é este pouco, esta migalha, que renova diariamente o “adeus aos velhos modos”. O que burla o tempo e nivela conquistas e derrotas. É a loucura que cobre de riquezas a indigência, que não recusa a ninguém o seu império, essa herança bem distribuída entre os membros de uma família a personagem que protagoniza este romance, multiplicando suas vozes e suas faces.

Estreia corajosa de Paula Fábrio na literatura, “Desnorteio” tem a palavra como fio do labirinto em que se perdem Rodolfo, Miguel e Benévolo, os irmãos que abdicaram do mundo ou foram pelo mundo abandonados, devolvidos como náufragos a uma casa onde fizeram seu reduto de delírio, sua caverna de sombras no interior de São Paulo, em Sorocaba. Rodolfo, o Dôrfo, irmão mais velho, confinado num cubículo brande seu cajado, amaldiçoa as mulheres, amarra as pernas de uma boneca que é sepultada no quintal. Miguel, irmão do meio, o artista da fome, é aquele que um dia se entregou, que parou de cantar e de viver e agora cheira álcool de um galão guardado debaixo da cama. Benévolo, o Bené, é o Quixote que sonha, o que lê sempre as mesmas notícias em jornais velhos e que uma tarde decide comer as telhas da casa.

Mas a loucura da família Oliveira não se limita aos fantasmas vivos do labirinto-casebre, embora aí se exponha com aquela exorbitância de que só a miséria mais desesperançada é capaz. Também as irmãs Oliveira têm sua parte nessa herança, que tentam esconder sob a máscara feliz do matrimônio. Suas histórias acompanham as de um país de generais, hospícios, pierrôs e colombinas nos carnavais, até chegar aos nossos dias. Querer resistir à loucura não será aumentá-la?, perguntaria Erasmo de Rotterdam. Ao que o cenário sempre mutante do romance responde que sim, a loucura exubera, se espalha por toda parte, nas figuras nômades e legendárias das ruas, no labirinto-mundo de um capitalismo fazedor de loucos no centro de suas leis e em suas margens.

Paula Fábrio toca a matéria escura com zelo poético, nela encontrando a dignidade e a ternura que fazem o extrato desta outra herança, literária, em que se irmanam o absurdo da vida e o fascínio de uma narrativa que atravessa gerações desde o mais recôndito mundo de seus personagens. Aqui, como diz a própria autora, “não temos uma história de lavradores, escravos, bandidos ou revolucionários. Tampouco de reis ou estadistas. Nos deparamos com uma história sobre homens nus.” É a partir dessa nudez que “Desnorteio” nos enreda em uma visão mais profunda do humano, que vem enriquecer nossa literatura na melhor tradição dos escritores do desassossego e da miséria redentora.

 

[Prefácio escrito por  Mariana Ianelli]

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Balancete

Um dia a menos. Outro dia a menos. Um dia a menos. Outro dia a menos. Tudo o que se viveu. O tempo que nos resta. Ninguém faz essa conta aos quinze anos. Será que nos abandonamos à loucura num momento de contabilidade?

Talvez tenha sido no inverno que os três irmãos Oliveira se tornaram mendigos, mas o primeiro desvario pode ter acontecido em outra estação. À noite, por certo. Na noite frágil dos nossos pensamentos as possibilidades se alargam.

Amor, loucura e morte não se explicam, mas o percurso até eles tem sua dose de encanto e repugnância. E esta história começa no meio desse caminho. Mais precisamente no vagão da segunda classe de um antigo trem da estrada de ferro sorocabana.

Um jovem ainda sem barba nem bigode estremece ao ouvir o nome da próxima estação. Sem meios de compreender aos seus instintos, o rapaz só consegue se lembrar que há horas não coloca nada no estômago.

E esse trem, vai levá-lo onde mesmo?

Para o destino, usamos apenas o tato. A ponta dos dedos. E esse me­nino não sabe, como agora eu sei, aos quarenta anos. Saber o suficiente. Para temer. A conta é simples. A viagem da vida a bordo de um trem. De alta velocidade. O trem da sorocabana é apenas um vagão desse trem maior. Sua viagem nem bem começou, por isso o menino ainda não aprendeu a equação que nunca se resolve. Ele ainda não precisa recuperar as horas e correr a ler todos os livros da estante, tampouco ter coragem de abdicar, sentar-se à beira do rochedo e respirar, pegar um punhado de areia nas mãos e permanecer com um único grão a gi­rar entre os dedos, até que ele faça parte do seu corpo. E aí sim soltá-lo, sem obrigações, com gentileza.

Mas a senhora de cabeleira branca, que mexe distraidamente uma panela para o almoço, conhece o fio do destino que ata as pessoas. Também conhece o tempo. O olhar distante, a cabeça trêmula são pro­vas disso. Mas há satisfação em tudo que faz. Afinal hoje é domingo e a família toda virá almoçar. E esta pode ser a última vez, então é preciso caprichar nos temperos, tirar a acidez do molho, a acidez das bocas.

Com as mãos lentas, a mulher distribui o pão sobre o prato antigo e esse movimento vagaroso é um convite para desviar a atenção e re­cordar o menino imberbe do trem quando este já era moço e usava bigode fino ao estilo clark gable. Considerou que a irmã tinha feito um bom casamento. Cabelos fartos, olhos amarelos e o rosto quadrado. Sim, a maria luísa conseguira um senhor casamento. Pena foi ter acon­tecido tudo aquilo. Não gosta nem de pensar.

O molho transbordou da panela e apagou o fogo. O cheiro de gás trouxe a senhora de volta aos seus setenta e oito anos.

Esqueceu de tomar o remédio para a memória. Será que esqueceu mesmo? Ou tomou e não lembra? Não lembra.

Aos quarenta, a memória é a do sentimento. As lembranças já não têm a mesma nitidez. E os passos escondem o vacilo numa cadência eficiente, sem nenhuma chance de errar. O tempo está se esgotando. Todavia, a senhora de setenta e oito já se despiu dessa urgência.

Em que momento o conta-giros desiste? Será no fim do percur­so, quando queremos andar para trás e não mais correr em direção à morte?

O garoto de quinze, a senhora de setenta e oito, a mulher de qua­renta. Cada qual tem seu relógio. Sua versão da história. Cada qual tocou a face dos irmãos Oliveira com a ternura e o medo que lhe foram possíveis.

 

[Primeiro capítulo do romance de Paula Fábrio, Editora Patuá]

 
 
 
 
 

Paula Fábrio nasceu em 1970 na cidade de São Paulo. Formada em Comunicação Social pela Faap, atuou como redatora de publicidade. No campo literário, idealizou e dirigiu a Rato de Livraria, gerenciou o acervo da Biblioteca de São Paulo e atualmente escreve artigos para revistas acadêmicas. Desnorteio é seu romance de estreia. Email: paula.fabrio@uol.com.br





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