Verdades inconvenientes
O dia em que comemos Maria Dulce: Percursos de dor e desengano
Verdades inconvenientes, muita sensibilidade social, brilho estilístico, domínio técnico e segurança narrativa são algumas das qualidades encontráveis nos 13 contos reunidos pelo poeta e ficcionista Antônio Mariano em “O dia em que comemos Maria Dulce” (Ficções Editora, 2015, 124 p.), seu livro de estreia no gênero.
As histórias seduzem de forma arrebatadora. Elas vencem o desafio imposto ao escritor de estabelecer uma tensão imaginativa, ou jogo simbólico, capaz de provocar no leitor mais do que purgação de emoções reprimidas ou fruição de estímulos gozosos. Além desses elementos que marcam a coletânea de forma eficiente, Mariano propõe mais.
No manejo dos chamados elementos estruturais do conto (alta tensão expressiva, domínio dos encaixes da palavra, compressão do espaço-tempo entre convenções cronológicas e as liberalidades psicológicas elásticas da temporalidade, o fluir da ação, a verossimilhança dos personagens, entre outros) e das representações sociais como sistema de crenças, mentalidade, aparato legal e meios de comunicação, ciência, éticas, e trabalho, os contos convidam leitores e leitoras a refletir sobre o ser (o indivíduo), a história (a sociedade), o grupo (a coletividade) e os aspectos positivos e negativos das texturas e tessituras do cotidiano que alimenta e destrói desejos de felicidade e a ânsias de liberdade.
Angústia e ternura, perda e crueldade, acaso e impotência, indiferença e exclusão se misturam sob o poder imaginativo do autor paraibano para definir um campo de escolhas que privilegia no ritual humano os percursos da dor e do desengano. Ao mesmo tempo, a pessoa, ente decaído na soleira interditada do paraíso perdido, rebrilha como um cristal ao sol imerso no cascalho entre a fragilidade e a beleza num percurso, destino, desconexo que evolui ao sabor dos golpes da sorte.
Antônio Mariano confirma sua contribuição original à contística paraibana que se alimenta do realismo mítico-dramático das contribuições de Adalberto Barreto, Aldo Lopes, Carlos Tavares, Maria José Limeira e Geraldo Maciel, passando pelo simbolismo lírico de Bráulio Tavares, Wellington Pereira, José Leite Guerra, Marília Carneiro Arnaud, Luiz Augusto Crispim e André Ricardo Aguiar, até o criticismo cético de Madalena Zaccara, Políbio Alves e Dôra Limeira, para citarmos alguns dos mestres desse gênero narrativo. Com Mariano, essa galeria se expande.
Walter Galvão é poeta, jornalista e editor geral do jornal A União (PB). E-mail: galvaopvw@gmail.com
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Confira um conto do livro:
Heroi Interrompido
Em meio a este ressonar, que é o último passo para a morte, o astronauta dos sonhos, antes de sumir de vez na imensidão dos espaços siderais, transmite a sua última mensagem em direção à torre central da Terra:
Solidão, terrível solidão.
Maria José Limeira
Esperar ônibus em lugar cheio de gente tem suas vantagens. As paradas da Lagoa, no centro de João Pessoa, por exemplo, são atrações à parte aos olhos de alguém vindo do interior, pouco afeito a esses movimentos nervosos de bois vestidos. Pessoas diferentes, tipos engraçados, moça bonita como artista de televisão. Para Jailson, não havia melhor espetáculo do que vê-las passar em roupas justas, as bundinhas arrebitadas dançando conforme caminhavam. Os olhos agradeciam a distração. Ao chegar em casa, quase sempre, aaah! Como era bom contar até cinco, os dedos da mão.
Centro da cidade. As pessoas se chocavam mecanicamente, tombavam, quase levadas ao chão. Às vezes, davam conta e xingavam. Outras, não. Dormentes, nem percebiam existir, era a conclusão rápida. Jailson esboçava um leve sorriso. Ia para casa depois de cinco dias pouco humanos de trabalho, a semana inteira na construção civil. Bastava esperar mais um ônibus que o transportaria à casa de um parente onde armava dormida no terraço. As pessoas se atropelavam, acotovelam-se, diziam palavrões na tentativa de conseguir melhor lugar no coletivo. Jailson tornava a rir, sacudia a cabeça, superior. Pra que esse desespero? Ele estava voltando, ora essa. Para casa. Não tinha pressa de chegar. Depois, os carros já vinham apinhados, permitindo somente que cinco ou seis pessoas se enlatassem ali e seguissem viagem, sardinha sem conserva.
Um contentamento o fazia inflar o peito, respirar o ar pouco cheiroso da Lagoa. Jailson repetia para si que era um homem de sorte. Nos seus dezoito anos de vida nunca experimentara esse sentimento de reconforto. Que lhe importava só conseguir tomar a lataria após as sete, oito horas da noite? Tanto melhor. O centro da cidade já estaria vazio e quem sabe ele até pegasse um lugar sentado podendo assim ir contemplando, saboreando cada ponto da paisagem desta cidade de que já gostava como uma namorada. Jailson era sertanejo de uma cidadezinha pacata e sem movimento. Motivo de orgulho voltar e, rapaz, que fim levaste, é, agora moro na capital, tenho emprego, carteira assinada.
No canteiro de obras planejavam implantar um projeto de alfabetização. Jailson pretendia estudar, conseguir melhor emprego, comprar um carrinho, conquistar uma moça bonita como essas que passam e o encaram ofendidas pelo olhar demorado. Não era querer muito. Decerto, merecia.
Que lhe importava os ônibus? Jailson pretendia ficar ali olhando as meninas até que a última delas sumisse de sua mira.
A propósito, uma o agradava em especial. Fazia lanche num dos quiosques padronizados do Parque Sólon de Lucena, coisa de cinco metros à frente. Jailson observava discretamente para não dar na vista e não deixá-la com raiva ou desprezo dele por isso. Sonhar com uma mulher dessas! Te enxerga, rapaz. Não é pro teu bico. Espécime de uma beleza exemplar, é certo. Parabéns, Jailson. Tens bom gosto. Esse vestido estampado com decote, ai, meu Deus. Ninguém é de ferro, não é verdade? E, reconheça-se, não há cristão que aguente. Jailson não era o único a prestar atenção. Alguns olhavam, faziam comentários, mudavam a objetiva, seguiam destino. Jailson, porém, considerava-a detidamente. Tomava-se de estranha emoção, uma eletricidade que percorria as veias, latejava na fronte, queimava as maçãs do rosto, valha-me, são Guido. Livrai-me do teu mal, livrai-me de uma queda. Igual àquela não vira ainda. Dona de umas pernas que vou te contar. Ai dela. Já a retivera na memória. Chegando em casa, ai, ai.
Mas que pena. A ingrata se levantava para ir embora. Tão cedo. Que desgraça. Alegria de pobre, que bosta. Mal começa, zupt, se vai, com a primeira descarga. A moça se dirigia a um carro esporte parado em frente a uma loja. Ei, mas tinha um cabra estranho seguindo ela. Ou ele se confundia, só impressão? Jailson se inquietava. Era verdade. O sujeito estava mesmo mal-intencionado, olhava para a bolsa de onde ela tirava a chave do carro, se aproximava, movia-se para lá e para cá. Talvez a mesma idade dele. Também era magro, baixinho e preto. A coitada nem percebia. O tal foi chegando perto, sucuri faminta. Preparava-se para o bote. Jailson começava a andar automaticamente sem compreender por quê. Com sua mochila às costas estava correndo porque o delinquente já tinha arrebatado a bolsa e a menina estava gritando como uma desesperada.
Tudo foi se processando muito rápido na cabeça de Jailson. Quando conseguisse recuperar a bolsa, de que não duvidava, seria de se vislumbrar a possibilidade de uma recompensa. Não era necessário muita coisa, tome cinco reais, moço, para a cervejinha, não, que é isso, não aceitaria. Não esperava grande prêmio, um beijo no rosto, ela se oferecendo para deixá-lo em casa de carro, antes uma rápida passagem num bar do caminho, uma bebida para relaxar, esfriar o sangue, uma conversa animada, o selo de uma grande amizade. Nada disso passava pela cabeça dele, que Jailson sabia o seu lugar. Não queria muito. Só o bastante. Um aperto de mão bastaria (como deve ser macia aquela mão!), um sorriso, um muito obrigado, moço, puxa, nem sei como lhe agradecer. Isso, e bastaria. Jailson seria o mais feliz dos mortais.
Jailson passava pela moça como um raio. Tão próximo que dava para sentir o cheiro bom do perfume, a cara raiando-se pelas lágrimas, a pérola dos dentes iluminando o choro.
O real e o imaginário se confundiam naquela cabeça de sonhos miúdos. Vida pequena, passado simples. Tudo então pretérito imperfeito.
O frangote tomava a rua Santos Dumont. Na esquina, hesitava brevemente se seguiria à esquerda ou à direita da avenida Dom Pedro I. Optava pela primeira alternativa. Jailson botava o pé atrás dele. Logo o alcançaria, juízo certo. Acostumara-se a perseguir burro brabo para amansá-lo nas caatingas (franzino, mas tinha raça!), como não haveria de colocar as mãos num desnutrido daquele?
O ladrão já virava à direita, subindo a rua Santo Elias em direção à Odon Bezerra. Certamente pretendia chegar ao Baixo Roger, onde dificilmente seria encontrado. Pela primeira vez estiveram Jailson e ele correndo na mesma reta. O nosso herói gritava ladrão, pega o ladrão, mas as pessoas seguiam indiferentes. Não iriam se intrometer em questão de homens tão iguais.
Ao cruzar a Odon Bezerra, um dos carros quase os atropelava, tu morre, miséria. Estava próximo demais do indivíduo para que um simples automóvel o detivesse. Coisa de dois metros, se muito. Jailson chupava o ar nos pulmões, prendia-o e, num pique desembestado, por um triz deixava de tocar a camisa do filho de uma égua, que entrava à esquerda da rua professor Batista Leite. Mais um pouco, e os dedos de Jailson roçavam as costas dele. Até que conseguiu segurar a gola da camiseta. Num safanão, o homenzinho se desvencilhava, e o pedaço da malha encardida ficava com Jailson.
Seguiam rua afora, pega, não pega. O cansaço os dominava, tudo próximo de um termo. Jailson podia distinguir claramente o resfolegar do outro, a respiração cada vez mais curta. Quando, espalmando a mão nas costas do desgraçado, gritou para, féla da puta, o tapa pipocou como uma bomba peido de velha. O rapazote desequilibrou-se e caiu de frente, todo o corpo. Jailson tentava agarrá-lo, mas o outro rolava no calçamento, a cara sangrando, atracado à bolsa, braços cruzados sobre o peito como se protegesse o próprio filho de uma grande ameaça. Erguia-se, porém puxava de uma perna e não foi difícil a Jailson segurar uma das alças da bolsa. O estalo da costura desfazendo-se dava pena nele, que queria devolver o objeto à proprietária em perfeito estado.
Com a perna sã, o ladrão deu um coice que por pouco não atingia a virilha de Jailson. Mesmo assim, doeu, que só, na parte interna da coxa. Jailson, por sua vez, sentou-lhe um murro no pé do ouvido que o sujeito rodopiou e caiu, soltando a bolsa. O cabra se levantou, sacou uma faca, ia investir contra Jailson, mas então avistou o grupo de pessoas que vinham gritando na direção deles. Não esperou tempo ruim: fugiu. Jailson o perseguiu até uma viela, mas o perdeu de vista.
Estava satisfeito com o desfecho da história, aquele viés de heroísmo. Ria até, orgulhoso de si. Pronto. Era só entregar a bolsa a sua dona e fim de história.
Voltando, porém, à professor Batista Leite, alguém na multidão gritou: olha ele lá. Meu Deus, corriam na sua direção. Podia identificar pessoas de aparências diversas, muitas delas observadas na Lagoa. Algumas, inclusive, que estavam ao seu lado, esperando condução. E era na direção dele que corriam e o xingavam de ladrão. Havia polícia no meio deles, dois rambos enormes, anjos exterminadores cumprindo o seu dever. Jailson hesitou. O instinto de autopreservação falou mais alto, correu. Não muito. Confuso, o sangue gelou nas artérias, a cabeça girou, caiu, a bolsa ao lado.
Os policiais o ergueram, ejetaram-no contra a parede, torceram-lhe os braços às costas. Jailson sentiu o nariz partir, o fluído quente deslizando pelas ventas. Os cliques das algemas doeram como se decepassem os seus pulsos. Voltaram-no para as pessoas indignadas, cabra safado, tenha vergonha, vá trabalhar. Viu que a moça da Lagoa se destacava e caminhava em direção da bolsa abandonada perto dele, que apanhava o pertence e o encarava, bandido, os olhos injetados de ódio.
Patife! foi tudo que pôde escutar daquela boca.
Antônio Mariano. O dia em que comemos Maria Dulce. São Paulo: Ficções, 2015.

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