Uma pororoca tropiconcreta
CATATAU: UMA POROROCA TROPICONCRETA[1]
Em entrevista concedida a Régis Bonvicino e publicada originalmente no jornal carioca GAM, em 1976, Paulo Leminski esclareceria o seu conceito de “pororoca”:
Quanto à “pororoca”, o seguinte. Chamei de “pororoca”, num artigo, ao encontro entre a Poesia Concreta paulista e a Tropicália baiana. Para mim, esse encontro é o mais importante acontecimento da cultura brasileira, dos últimos 10 anos. A Poesia Concreta é cartesiana. A Tropicália é brasileira. (…) Catatau é pororoca. É um livro tropicalista, o livro tropicalista que Gil e Caetano jamais se interessaram em fazer. Aliás, eu ia dedicar o livro a eles. Mas preferi dedicá-lo a Augusto, Décio e Haroldo (LEMINSKI, 1992, p. 174).
O poeta paranaense chama de “Tropicália baiana” o que Frederico Coelho, no livro Eu, brasileiro, confesso minha culpa e meu pecado, denominou de “tropicalismo musical”, movimento criado por Caetano Veloso e Gilberto Gil. Este se diferenciaria, segundo Coelho, da tropicália, a qual seria anterior ao “tropicalismo musical” e que teria como grande mentor Hélio Oiticica. Afirma Frederico Coelho que a tropicália “vinha sendo maturada por Oiticica pelo menos desde as suas incursões na zona norte carioca e no morro da Mangueira em 1964 (COELHO, 2010, p. 117). Continua Coelho:
A tropicália vai além dos marcos temporais oficias do tropicalismo musical (outubro de 1967 a dezembro de 1968); vai além dos seus participantes (músicos baianos e paulistas, além de Nara Leão, Jorge Ben, Capinam e Torquato Neto); e vai além das suas intenções (regenerar o tecido cultural brasileiro, criticar o populismo nacionalista, retomar a linha evolutiva da música popular, integrar a música brasileira no mercado pop etc.) (2010, p. 117).
Segundo o músico, poeta e tropicalista Rogério Duarte, citado por Frederico Coelho, o tropicalismo musical seria um “momento” dentro do “movimento” denominado tropicália.
Acreditamos ser interessante apresentar essas observações feitas por Coelho já que não temos como confirmar a influência direta da obra de Hélio Oiticica sobre Leminski (a despeito de todas as similaridades que acreditamos haver entre os dois artistas, como a ligação com a arte concreta e com o universo da cultura popular, por exemplo), o que nos faz associar necessariamente a obra leminskiana ao tropicalismo musical e a todas as suas características (que não se limitam apenas àquelas enumeradas acima por Coelho).
Se a pororoca do Catatau[2] foi formada pelas águas tropicalista e concreta, observemos inicialmente como Leminski mergulhou de cabeça no “riocorrente” concreto.
Catatau e os concretos
Toninho Vaz descreve assim o primeiro contato pessoal de Paulo Leminski com os poetas concretos:
Era a Semana Nacional de Poesia de Vanguarda, que prometia reunir em Belo Horizonte a fina flor da intelligentsia brasileira. Ele decidiu ir para conhecer de perto o grupo paulista de Poesia Concreta, editores da revista Noigandres, com os quais tinha profundas afinidades — sobretudo pelos poemas e as traduções dos Cantos, de Ezra Pound, feitas por Haroldo de Campos. Falava da produção poética dos “irmãos Campos” como a descoberta do “fio da meada” (VAZ, 2001, p. 68).
Durante a Semana Nacional de Poesia de Vanguarda, realizada em 1963, Leminski travaria contato com Décio Pignatari, Augusto e Haroldo de Campos, além de Pedro Xisto, Waldemar Cordeiro, Luiz Costa Lima, entre outros. Depois do evento, Augusto de Campos convidou Leminski para visitar a sua casa, em São Paulo, e declarou que o poeta curitibano “ficou lendo os Cantos até amanhecer” e que ele “tinha um entendimento e uma identificação com o nosso trabalho como nenhum outro poeta naqueles anos” (VAZ, 2001, p. 69).
Logo após esses encontros, Leminski criaria, “tendo como sede a sua própria casa” (VAZ, 2001, p. 73), o Núcleo Experimental de Poesia Concreta. O que serve para demonstrar a sua imensa admiração pelo trabalho dos poetas concretos e o enorme influxo que estes exerceram sobre a sensibilidade do autor de Caprichos & relaxos.
Em 1964 e 1966, Paulo Leminski publica poemas na revista Invenção, que foi criada em 1962 por Décio Pignatari, Haroldo e Augusto de Campos, e que contava com a colaboração de outros poetas, como Pedro Xisto, Edgard Braga, Mário Chamie e Cassiano Ricardo. Esses poemas foram posteriormente estampados em Caprichos & Relaxos, dentro da seção “Invenções”.
Dentre os poemas dessa fase “concretista” de Leminski, um dos mais interessantes e de melhor fatura é “PARKER” (LEMINSKI, 2013, p. 164):
No poema, verifica-se claramente o modo de composição concretista: disposição geométrica das palavras, rigor compositivo, sintaxe espacial etc. Porém, identificamos, na peça, um humor que se mostra um tanto incomum em comparação às peças concretistas da chamada “fase ortodoxa”, aquela em que imperava a “matemática da composição”[3].
Observa-se no poema uma série de marcas de grandes empresas multinacionais, todas impressas em “caixa alta”, e, no final do poema, a expressão “casas pernambucanas”, estampada em “caixa baixa”. Essa expressão tanto poderia se referir à tradicional empresa nacional como às casas onde habitariam pernambucanos.
Se entendermos que “casas pernambucanas” refere-se ao nome da empresa, tem-se a sátira ao produto nacional, apresentando-o ironicamente como “menor” (inclusive fisicamente menor e “rebaixado”, posto que a expressão está impressa em “caixa baixa”) em comparação à grandeza (materializada na “caixa alta”) das marcas internacionais. A sátira fica ainda mais potente quando lembramos que o poema foi publicado depois do golpe militar de 1964, isto é, durante um governo em que se exaltava o nacionalismo e o patriotismo e se desejava a construção de um “país grande” (exemplos desse Brasil monumental são a rodovia Transamazônica e a Usina Nuclear de Angra dos Reis). É também curioso perceber a palavra “GENERAL”, separada fisicamente de “MOTORS”, podendo também sugerir uma crítica aos generais que estavam no comando do país. Leminski ridiculariza a ideia do “país grande” ao mostrar as empresas multinacionais como símbolos da dominação estrangeira e da nossa situação de país colonizado. (A propósito, o tema do Brasil pobre e colonizado aproxima “PARKER” de “Verdura”.)
Por outro lado, se entendermos a expressão “casas pernambucanas” como o lar onde vivem os pernambucanos, temos aí novas possibilidades de compreensão do poema. O sujeito lírico estaria sugerindo que os produtos das empresas multinacionais teriam invadido as “casas pernambucanas” – e, em última análise, as “casas brasileiras” – com seus produtos e serviços e que, como nação atrasada e colonizada que sempre fomos, seríamos incapazes de constituir uma indústria nacional que satisfizesse as necessidades dos brasileiros e, por conseguinte, estaríamos condenados eternamente a consumir todo tipo de “enlatados estrangeiros”.
Esse humor cáustico e crítico, observado no poema em estudo, pode ser verificado em toda a obra de Leminski, inclusive nas páginas do Catatau. Ou seja, a despeito da sua filiação aos modos de composição concretistas, Paulo Leminski, desde o início de sua carreira literária, sempre se caracterizou pelo humor e pelo uso de uma linguagem irônica, satírica e carnavalescamente subversiva, como se pode observar no trecho a seguir:
Engraçado: se cair de quatro, não levanta, e sai pastando uns pasteizinhos de amargar. Engraçado ainda é galinha pondo defeito no ovo. Careca apanhando chuva. Bater em cego pelas costas. Briga de foice no escuro. Correio com sapato apertado. Roubar e não poder carregar. Coruja cercando frango para não deixar o sol sair. Papagaio falando polaco, engraçado é a única maneira que eu acho para não parar de rir quando tudo já foi gozado (p. 155).
Aqui as várias expressões populares parecem limalhas atraídas por uma força atrativa que as aproximam, criando sentidos e possibilidades inusitadas de leitura. Expressões como “cair de quatro”, “briga de foice no escuro”, “cercando o frango” vão sendo misturadas e recontextualizadas para provocar o efeito de humor típico do Catatau. Em todo o trecho citado, a despeito da comicidade explícita, há várias sugestões de algum tipo de violência: “cair de quatro”, “amargar”, “pondo defeito”, “bater em cego”, “briga de foice”, “roubar”. E por que a violência? Na verdade, nos tempos duros em que vivia Leminski, o difícil era não pensar em violência, mesmo que fosse para expressá-la de forma cômica, como nas brigas entre palhaços de circo.
Enfim, acreditamos que a produção do Catatau significa para Leminski a materialização plena do que ele chamou de “pororoca”, isto é, o romance leminskiano parece-nos ser um imenso exercício crítico em que o autor reelabora os procedimentos de vanguarda (que estão na base da poesia concreta), misturando-os com a linguagem provinda das manifestações culturais populares, como o provérbio, as frases feitas e a “lengalengagem”[4] utilizada pelo povo, o “inventa-línguas”[5].
Para ilustrar essa influência da língua falada nas ruas sobre a prosa leminskiana, transcrevemos um trecho de uma carta de 30 dezembro de 1970, endereçada a Augusto de Campos, na qual Leminski comenta sobre o seu contato com a fala popular:
Prossigo meu trabalho de formiga das letras treinando para o grande salto: cataqual? Continuo extraindo as séries estocásticas (estoxicásticas, melhor melhorando) da língua. Ouço as pessoas (do povo prefiro, ascensoristas, flamenguistas, crioulos, que manejam maravilhosamente o código oral do português)… (VAZ, 2001, p. 128).
Catatau: Popcreto?
Em dezembro de 1964, Augusto de Campos expôs seus Popcretos na Galeria Atrium, em São Paulo. Popcretos são “expoemas” (como os designou Augusto) construídos com recortes de imagens e textos extraídos de jornais e revistas (procedimento, aliás, semelhante às colagens cubistas). Os títulos dos “expoemas” constantes da exposição foram: “SS”, “O ANTI-RUÍDO”, “GOLDwEATER” e “OLHO POR OLHO”.
Sobre os poemas, afirmaria Augusto de Campos:
pop em parâmetros concretos: construção, intencionalidade crítica.
qualificar a quantificação. quantilificar a qualitidade em quantilates.
no escolho da quantidade a qualidade da escolha: o olho.
concreções semânticas.
out-nov 1964
(CAMPOS, 2001, p. 124)
A despeito da diferença física entre a monumentalidade do Catatau e a concisão dos Popcretos, acreditamos poder ver algumas similaridades de propósitos estéticos e ideológicos entre Augusto de Campos e Paulo Leminski.
A semelhança mais clara entre as obras é a combinação de repertório erudito com popular, ou seja, a justaposição carnavalizante de alto e baixo. Gonzalo Aguilar afirma que o concretismo, nos Popcretos, “permanece como elemento configurador (‘-cretos’), mas deve dividir seu lugar com outros estilos (‘pop’)” (AGUILAR, 2005, P. 110).
Contudo, por ora, gostaríamos de chamar a atenção especialmente para um aspecto que une o Catatau e os Popcretos: a crítica ao regime militar.
Antes, porém, é importante observar que o engajamento político da poesia concreta teve início em 1961, quando Décio Pignatari cunhou a expressão “salto participante” e Haroldo de Campos criou o termo “poesia-para”, da qual é exemplo o poema “Servidão de Passagem”, também de 1961. Outros poemas importantes da “fase participante” concretista são “Greve” (1961), de Augusto de Campos, e “estela cubana”, de Décio Pignatari (1962). Esse engajamento, segundo Gonzalo Aguilar, foi motivado principalmente pela Revolução Cubana e pela possibilidade da tomada de poder pela esquerda brasileira.
…………..Sem dúvida, o fato emblemático de todo esse processo foi a Revolução Cubana, que significou, por um lado, a possibilidade de regimes revolucionários nos países latino-americanos e, por outro, a reorganização das posições políticas em função de objetivos mais radicalizados. Diante dessa perspectiva, para muitos escritores o conflito representou um paradoxo de difícil resolução: como responder à sofisticação evolutiva do campo específico e, ao mesmo tempo, dar conta das exigências sociopolíticas (AGUILAR, 2005, p. 88).
Esse “paradoxo de difícil resolução” acabou por resultar também nos Popcretos, que, assim como os poemas engajados anteriormente citados (“estela cubana” e “Servidão de passagem”, por exemplo), são realizados por meio dos procedimentos concretistas (espacialização, montagem) e do discurso político antipoder. A diferença entre os Popcretos e aqueles outros poemas é que os primeiros, como dissemos acima, elaboram a mistura do repertório erudito (procedimentos de vanguarda) com o popular (utilização de recortes de jornais e revistas). Ou seja, o popular, o pop, é o grande diferencial dos Popcretos em relação aos poemas engajados da “fase participante” concretista verificada entre 1961 e 1962.
E não seria também uma espécie de Popcreto o poema leminskiano “PARKER”? As palavras (nomes das empresas) “coladas” no espaço composicional da folha não teriam o mesmo valor da colagem feita com os olhos das celebridades no poema “OLHO POR OLHO”? Marcas de empresas e olhos de celebridades não seriam os signos de um mesmo capitalismo repressivo e reificador?
O Popcreto mais conhecido talvez seja o citado “OLHO POR OLHO”. Augusto de Campos assim o descreve:
OLHO POR OLHO: ou a olhos vistos. ou, de novo, “questo visibile parlare” (dante). ou “ver com olhos livres” (oswald). videograma pop. revistas re-vistas. stars, starlets, políticos, poetas, uma onça preta, pignatari (décio), o uirapuru, pelé, sousândrade, aves, faróis, a máquina de lavar, sinais de tráfego. olhos. metamorfoses. bocas. a boca (dente por dente) de BB. uma babel do olho. haroldo batizou: BABOEIL (CAMPOS, 2001, p. 123).
No alto do poema (ou “expoema”), identificamos sinais de trânsito: “à esquerda, tráfego proibido; no centro, siga em frente; à direita, direção única à direita; e no vértice superior, termo da viagem, sinal geral de perigo” (CAMPOS, 1978, p. 86). A crítica ao regime de exceção aqui é, para quem tem olhos para ver, muito clara: a “direita” representa o governo ditatorial e a esquerda (proibida, cassada, perseguida) é a oposição ao Estado de exceção. Aqui o humor e a ironia são elementos importantes na composição da peça, o que não era muito comum nas obras de Augusto de Campos anteriores aos Popcretos, a não ser algumas raras exceções, como o poema “Luxo”, de 1965, e “Bestiário para fagote e esôfago”, de 1955.
O Catatau, tal qual os Popcretos, também produz uma crítica ao regime de exceção, como podemos verificar nos excertos abaixo:
Mas advirta que tortura não deve chegar aos ossos, osso já não é gente: torturar com raiva, sim, – mas os mestres são calmos, por onde pois para eles não existe perdão (p. 99).
Câmera de lenta tortura, mas a faca está cega! Não tem importância… É pra usar no escuro mesmo (p. 144).
Horto, muito horto, Senhor do Escândalo Maior! O melhor da faca para o mais delicado: quem pisca, enfiam agulha no olho. (p. 53)
Um dia isto será apenas capítulo na história da repressão escrita numa catacumba das cidades futuras por netos, de renato não feitos, recebendo todo esse eco. O cão do lado de cada palavreado isca os pêlos do pegador de arrepio, pau de sebo onde ninguém sobe de surpresa. (p. 128)
Estes são apenas alguns dos exemplos, dentre os vários encontráveis no Catatau, em que, por meio do riso destronador, podemos observar o governo militar sendo ridicularizado pela prosa barroca e carnavalizada de Paulo Leminski. A tortura (que “não deve chegar aos ossos”), método hediondo e criminoso utilizado pelo regime para extrair informações de seus presos políticos, é tratada de forma irônica e satírica. No terceiro exemplo, há outra alusão à tortura (“agulha no olho”) e ao extinto Estado-Maior das Forças Armadas – EMFA (“Escândalo Maior”), órgão depois substituído pelo Ministério da Defesa. Por fim, no último excerto mencionado, a repressão surge como algo que vai passar e que será descoberta em “catacumbas” pelas gerações futuras. No trecho, há também uma referência implícita ao herói do romance, Renatus Cartesius (“de renato não feitos”). O mecanismo de tortura, pau-de-arara (substituído pela expressão “pau de sebo”), comparece aqui, porém oculto dentro de uma frase aparentemente nonsense.
O riso leminskiano que satiriza a tortura não quer fazer esquecer o horror, pelo contrário, esse riso quer explicitar o horror, tirá-lo das sombras, e, por consequência, torná-lo possível de ser combatido e abatido. E esse riso, por meio da lógica carnavalesca que comanda o Catatau, revela que, como tudo o que existe no mundo, o horror é igualmente exterminado pela força devastadora do tempo.
E, com os pés fincados no presente, Augusto de Campos e Paulo Leminski (e tantos outros) combateram o regime autoritário com amor (pela liberdade) e humor (contra a seriedade do tipo “Tradição, Família e Propriedade”), criando obras que, até hoje, devem ser consideradas grandes exemplos de subversão estética e política.
Catatau e a tropicália: nacionalismo crítico e lógica paródica
Além do encontro com os poetas concretos, outro contato muito importante para a vida pessoal e artística de Leminski foi o que ele travou com os tropicalistas, em especial Caetano Veloso e Gilberto Gil. Em Paulo Leminski: o bandido que sabia latim, é registrado o primeiro encontro do poeta curitibano com Caetano, em fins de 1974:
………….No final do ano, para compensar as vicissitudes de um período de baixo astral financeiro, surgiria um episódio capaz de alegrar a vida de qualquer um, principalmente de Paulo Leminski, um tropicalista de primeira hora. Aconteceu numa tarde de sábado, quando ele andava sobre o muro lateral da casa, fazendo um exercício rotineiro de equilíbrio. Alice estava no quarto lendo, quando um carro parou em frente ao portão. Leminski falou “tem gente aí, benzinho”, pulou do muro e foi conferir quem chegava — e quase perdeu a voz. Eram Caetano Veloso e Gal Costa, esvoaçantes, descendo de um carro enorme. Ele não acreditou no que viu. (…)
…………As consequências deste encontro em sua vida se fariam notáveis não apenas na seleção de camisas mais coloridas e roupas tropicais, como na própria essência de sua sensualidade. Ele passou a tirar, com mais facilidade, a roupa que cobria a sua nudez mais atávica. O polaco encontrava os embaixadores dos trópicos e suas doutrinas de prazer, capazes de derreter qualquer puritanismo ou ascetismo de imigrante. Leminski planejou com Alice viagens futuras para o Rio e Salvador. Começou a esboçar, do ponto de vista intelectual, a tese que chamaria de Pororoca, “a ponte arco-íris”, o encontro das correntes paulista e baiana. O Yin e o Yang (VAZ, 2001, pp. 162-3).
Antes desse encontro pessoal com Caetano e Gal, Paulo Leminski já admirava a obra dos tropicalistas, o que fica comprovado no seguinte trecho da sua biografia, que narra a noite do aniversário de 24 anos do poeta:
Nesta noite, eles [Leminski e seus convidados] ouviram repetidas vezes o disco Tropicália ou Panis et Circensis, que tinha sido lançado semanas antes numa grande festa no Dancing Avenida, em São Paulo (VAZ, 2001, p. 94).
O Catatau e a tropicália guardam muitas semelhanças, dentre elas o que os poetas concretos chamaram de “nacionalismo crítico” e que se aplica não somente à produção concretista mas também à estética tropicalista. Segundo Gonzalo Aguilar, o “nacionalismo crítico” se opunha ao provincianismo e à xenofobia, “que não faltavam em vários setores de esquerda (sem falar nos setores de direita)” (AGUILAR, 2005, p. 104).
Augusto de Campos, em seu livro Balanço da Bossa e outras bossas, ao comentar a obra de Oswald de Andrade e o influxo desta sobre Caetano Veloso e seu trabalho tropicalista, defendia a ideia de “um nacionalismo crítico e antropofágico, aberto a todas as nacionalidades, deglutidor-redutor das mais novas linguagens da tecnologia moderna” (CAMPOS, 1974, p. 161).
O Catatau é também um claro exemplo de “nacionalismo crítico”, pois se trata de um exercício de antropofagização de vários elementos da tradição literária ocidental, especialmente aqueles ligados à literatura da alta modernidade, como a prosa de Guimarães Rosa ou de James Joyce[6].
A outra face do “nacionalismo crítico” é o provincianismo, e um exemplo curioso de provincianismo brasileiro, e que esteve ligado à história do tropicalismo, foi a famosa “Marcha contra a guitarra elétrica” ocorrida em 1967 e que contou com alguns dos principais músicos e compositores brasileiros da época, inclusive Gilberto Gil, ironicamente um dos criadores do tropicalismo. A despeito de ter sido um movimento promovido por artistas ligados ao pensamento de esquerda, essa marcha acabou, por seu caráter nacionalista, assemelhando-se a outra marcha, esta, por sua vez, de caráter retrógrado e organizada por setores conservadores da sociedade brasileira: a famigerada Marcha da Família com Deus pela Liberdade.
Esse provincianismo nacionalista e conservador, que se sentiu ameaçado por um simples instrumento musical, pode ser explicado pelo que Décio Pignatari analisou como sendo uma luta entre “pressões culturais endógenas vs. pressões culturais exógenas”:
[Estas pressões] podem ser observadas desde as primeiras manifestações da literatura épica, ou de Gregório de Matos, até a simplória oposição entre violão e guitarra elétrica nos festivais de MPB, na década de 60, ou nos inúteis debates sobre a criação de um “herói brasileiro” para as histórias em quadrinhos, onde a proposta mais ridícula foi a de heroicização do saci-pererê, um “herói” bidimensional e de um perna só… (PIGNATARI, 1998, p. 23).
As “pressões culturais endógenas”, nos anos 1960 e 1970, eram fomentadas pelo desejo de afirmação daquilo que era tipicamente nacional (a cultura ligada ao campo e às pequenas cidades do interior) e esse desejo, por sua vez, tinha claramente uma motivação política. A esquerda, representada, por exemplo, pelo CPC (Centro Popular de Cultura), defendia as manifestações culturais originalmente brasileiras como forma de combate à opressão exercida pela ideologia capitalista e pelo “imperialismo americano”. Por seu turno, as “pressões culturais exógenas” – além de possuírem um caráter comercial óbvio (a venda, dentro do território nacional, de produtos culturais estrangeiros, especialmente os destinados à mídia de massa) – eram motivadas também pela natural necessidade artística de pesquisa e exploração de novas formas e conteúdos.
Renato Franco, baseado nas ideias de Ismail Xavier, faz uma observação muito perspicaz sobre a importância do tropicalismo como uma proposta de modernização da cultura brasileira em tempos de dominação da Indústria Cultural:
O Tropicalismo, de cuja origem Caetano Veloso participou ativamente, inaugurou uma atitude nova entre os produtores culturais, no fim dos anos 60, porque foi constituído no interior mesmo da Indústria Cultural – vale dizer, ele, talvez, tenha elaborado uma das primeiras respostas críticas ao processo de modernização do país que, ao criar condições para a expansão e consolidação desse tipo de indústria, forçava a modernização da própria atividade cultural. Ismail Xavier constatou tal fato: “o Tropicalismo foi uma nova articulação da cultura e da política; a perda da inocência diante da Indústria Cultural” (FRANCO, 1998, p. 65).
O tropicalismo, por meio do seu “nacionalismo crítico”, conseguiu misturar, no seu caldeirão oswaldianamente antropofágico, as “pressões culturais endógenas” e as “pressões culturais exógenas” e produzir uma arte indiscutivelmente brasileira sem deixar de ser (“Por que não? Por que não?”), ao mesmo tempo, plenamente cosmopolita.
Outra semelhança entre o Catatau e a tropicália é o que Gonzalo Aguilar chama de “lógica paródica”. Segundo ele, a tropicália adotaria uma “lógica paródica e de pastiche e não uma lógica da exclusão” (AGUILAR, 2005, p. 143), esta última adotada, por exemplo, pelo programa da fase “ortodoxa” da poesia concreta. Prossegue Aguilar:
Os tropicalistas trabalharam com o choque violento que se produzia com a sobreposição da sintaxe modernista e da sintaxe dos meios de comunicação de massa, e seus músicos – sobretudo Caetano Veloso – encarnaram, ainda que por apenas quinze minutos, o mito do artista popular e de massa de vanguarda (AGUILAR, 2005, p. 143).
Em seu Catatau, Leminski também trabalha com esse “choque violento” (que igualmente poderíamos chamar de “pororoca”) ao misturar erudição e procedimentos da alta literatura com elementos da cultura popular: “Esseranarassa! O canto das sereias, mentira: o riso, incorreto, batem palmas para o desempenho do eco. Essa era na raça!” (p. 83). O trecho citado apresenta exemplarmente essa mistura de cultura erudita (“canto das sereias”, mitologia grega), procedimento de vanguarda (“Esseranarassa”, espécie de brinquedo verbivocovisual joyciano, que também pode ser lido como “essa era na raça”) e cultura popular (“Essa era na raça!”: expressão típica do discurso oral popular).
O Catatau, assim como o tropicalismo, opera com o que Augusto de Campos chama de “faixa da redundância”, conceito oposto ao de “informação original”. Nessa “faixa da redundância”, encontramos o universo pop, o folclore, a oralidade, os provérbios, as frases feitas, o calão, enfim, toda a cultura popular que, no Catatau, vai sendo misturada com o que há de mais erudito na cultura ocidental e oriental: “Velho poço, Tales filosofa e catrapum!” (p. 125). Tales de Mileto, considerado o primeiro filósofo grego e que afirmou que a água seria a origem de todas as coisas, mergulha aqui no poço, assumindo o lugar da rã do famoso poema de Bashô (“catrapum!”, onomatopeia que imita o “rumor de água”, na tradução de Haroldo de Campos: “o velho tanque/ rã salt’/ tomba/ rumor de água”[7]).
Para finalizar, é interessante observar o que Leminski diz sobre como funciona a “informação original” no Catatau:
O Catatau procura gerar a informação absoluta, de frase para frase, de palavra para palavra: o inesperado é sua norma máxima.
(…)
Mas, nessa busca de informação absoluta, sempre novidade, novidade sempre, por uma reversão de expectativas, ele produz a informação nula: a redundância.
(…)
O Catatau é, ao mesmo tempo, o texto mais informativo e, por isso mesmo, o texto de maior redundância. 0 = 0. Tese de base da Teoria da Informação. A informação máxima coincide com a redundância máxima (LEMINSKI, 1989, p. 211).
No Catatau, o novo é redundante. O inesperado é o que se espera. A cada página, não haver surpresa é o que surpreende. Nessa obra de Leminski, a “faixa de redundância” vira “informação original” e vice-versa.
Esperamos ter conseguido demonstrar como o fenômeno da “pororoca”, esse poderoso choque entre as águas concreta e tropicalista, pode ser observado no Catatau. E como essa “pororoca” acabou produzindo uma obra altamente subversiva, tanto estética quanto politicamente. O que nos leva àquela famosa frase de Maiakóvski, tão cara aos poetas concretos e que pode igualmente representar com precisão o espírito das obras tropicalistas: “Sem forma revolucionária, não há arte revolucionária.”
[1] Este artigo é uma versão modificada de um trecho de nossa dissertação denominada “Catatau: um ‘romance de protesto’ barroco e carnavalizado”, defendida em 2014, na FFLCH-USP.
[2] LEMINSKI, Paulo. Catatau. Porto Alegre: Sulina, 1989. Todas as citações serão feitas a partir dessa edição, com indicação da página entre parênteses.
[3] Sobre a “matemática da composição”, ver o artigo “Da fenomenologia da composição à matemática da composição”, de Haroldo de Campos (CAMPOS et alli, 1987, pp. 96-98).
[4] “Lérias, a alenga desempenha renga nenhuma nessa lengalengagem (…)” (p. 44).
[5] Não podemos esquecer também que as “Galáxias” haroldianas, influência clara e declarada por Leminski, começaram a ser publicadas em 1963, na revista Invenção, e que nelas a presença da “língua do povo” é muito forte. Escreve Gonzalo Aguilar sobre a composição das “Galáxias”: “(…) por um lado, expressões orais, humor das locuções diárias, slogans políticos e, por outro, condensação formal, escritura autorreferencial, concentração na forma” (AGUILAR, 2005, p. 324).
[6] Interessante lembrarmos do “conto semiótico” “PAPAJOYCEATWORK”, publicado em Caprichos & Relaxos (LEMINSKI, 2013, p. 157), o qual contém algumas das principais características do Catatau, em especial a utilização da “palavra-valise” carroliana, que se trata da união de duas ou mais palavras para a criação de um vocábulo anteriormente inexistente, como o famoso “silvamoonlake” (silva[silver] + moon + lake = selva[prata] + lua + lago) joyciano.
[7] Sobre a tradução de Haroldo de Campos, ver “Haicai: homenagem à síntese”, em A arte no horizonte do provável (CAMPOS, 1977).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AGUILAR, Gonzalo. Poesia concreta brasileira: as vanguardas na encruzilhada modernista. São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 2005.
CAMPOS, Augusto de et alli. Teoria da poesia concreta. São Paulo: Brasiliense, 1987.
CAMPOS, Augusto de. Balanço da bossa e outras bossas. São Paulo: Perspectiva, 1974.
________. Poesia, antipoesia, antropofagia. São Paulo: Ed. Cortez & Moraes, 1978.
________. Viva Vaia. Cotia-SP: Ateliê Editorial, 2001.
CAMPOS, Haroldo. A arte no horizonte do provável. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1977.
COELHO, Frederico. Eu, brasileiro, confesso minha culpa e meu pecado: cultura marginal no Brasil das décadas de 1960 e 1970. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.
FRANCO, Renato. Itinerário político do romance pós-64: A festa. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1998.
LEMINSKI, Paulo. Catatau. Porto Alegre: Sulina, 1989.
________. Toda Poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
________. Uma carta uma brasa através. São Paulo: Iluminuras, 1992.
PIGNATARI, Décio. Cultura pós-nacionalista. Rio de Janeiro: Imago, 1998.
VAZ, Toninho. Paulo Leminski: o bandido que sabia latim. Rio de Janeiro: Record, 2001.
Paulo de Toledo é doutor e mestre em Literatura Brasileira pela FFLCH-USP. Poeta, publicou os seguintes livros: Torrão e outros poemas (Ed. Patuá, 2018), Concreróticos e Outros Versos (Dulcinéia Catadora, 2012), A Rubrica do Inventor (Ed. Multifoco, RJ, 2011), Hi-Kretos e Outras Abstrações (Sereia Ca(n)tadora, 2011) e 51 Mendicantos (Ed. Éblis, 2007; Ed. Amotape, 2013). Participou também dos livros Musa fugidia (Ed. Moinhos, 2017), VAIEVEM (Binóculo Editora, 2011) e LulaLivre*LulaLivro (Fundação Perseu Abramo, 2018). Colaborou com poemas, traduções, contos e ensaios para: Revista Babel, Meteöro, Cult, Revista Ciência & Cultura – SBPC, Coyote, Artéria, Revista Opiniães, Musa Rara, InComunidade, Correio das Artes, Suplemento Cultural de Santa Catarina, entre outras publicações. E-mail: paulodtoledo@uol.com.br

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