O negro na obra de Graciliano Ramos
Representações do negro na obra de Graciliano Ramos: impactos e consequências
………….(Foto: Arquivo público do estado de São Paulo)
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A noção de comunismo nos anos 1930: ação libertadora e prisão
Entre os aspectos com os quais se podem explicar as muitas lacunas de sentido deixada pela recepção crítica de Graciliano estão a falta de exame dos fatores concretos que determinaram sua prisão em 1936 e a noção de comunismo por trás dela. Segundo parte da crítica, sua adesão às ideias comunistas seria explicação plausível de seu aprisionamento. Assim, a fundamentação histórica da hipótese encontrar-se-ia em sua filiação ao Partido Comunista em 1945, o que, na prática, não se sustenta. Dez anos antes de sua filiação, a noção de comunismo não era a mesma. Em 1935, a ideia fundamentava-se numa interpretação radical da direita de que a ação revolucionária comunista se encontraria na estratégia de inclusão, fosse na literatura como na vida prática, das chamadas raças degeneradas no tecido social, como forma de dissolução dos valores e um meio de desorganização do ambiente “saudável” da nação, proporcionando as condições para uma efetiva subversão da ordem.
Outro aspecto ligado à prisão é que houve sim um processo judicial, com base num inquérito policial-militar em Alagoas, entre dezembro de 1935 e fevereiro de 1936, sobre um possível levante comunista em Maceió. Muito embora o autor não estivesse arrolado, o processo teve consequência direta na sua exoneração do cargo de diretor da Instrução Pública e posteriormente na ordem de prisão. Presidido pelo juiz Alpheu Rosas Martins, o processo fora encerrado em 28 de fevereiro de 1936 por falta de provas. Cinco dias depois, Graciliano foi exonerado e preso com os réus do processo que haviam sido declarados inocentes pelo magistrado. Transportado no porão do Manaus, junta-se aos presos de Natal, responsáveis pelo levante conhecido pejorativamente como “Intentona Comunista” e com quais nunca teve ligação.
Solto em 1937, fixa-se no Rio. Escreve o artigo “Norte e Sul”, que Octávio de Faria, achando-se provocado, responde com “O defunto se levanta”, justificando tê-lo acusado de comunista em 1935, “quando começou-se a explorar a moda marxista e em vez de romances começaram a nos impingir (…) indigestos e maçantes ‘gestos’ de pobres negros repentinamente marxistizados [sic]” (FARIA, 1937, grifo meu).
A representação do negro na arte e na vida
Naquele período, personagens negras eram interpretadas como “elementos dissolventes”, com propósito de “degenerar” o ideal patriótico e dar condições de realizar-se a revolução comunista. Para Faria, as figurações de negros no romance regional traduziam-se por “manobras escusas (…) (antes de se concretizarem em novembro de 1935…)” na Intentona (FARIA, 1937).
Criminalizava-se a arte como espaço plural. E Graciliano, além das figurações literárias, dera acesso tanto a crianças como a professores negros nas escolas de Alagoas. Em Memórias do cárcere, conta que, pouco antes de prendê-lo, dona Irene, diretora negra promovida por ele, foi à sua casa. Sente vergonha da exoneração, desviando-se do assunto pela lembrança das crianças negras matriculadas por eles: “Quatro dessas criaturinhas arrebanhadas nesse tempo, beiçudas e retintas, haviam obtido as melhores notas nos últimos exames. – Que nos dirão os racistas, d. Irene?” (RAMOS, 1998, p. 44). Eles haviam transformado uma das melhores escolas de Pajuçara em modelo de inclusão:
[…] No estabelecimento dela espalhavam-se a princípio duzentos e poucos meninos, das famílias mais arrumadas de Pajuçara. Numa campanha de quinze dias, por becos, ruelas, cabanas de pescadores, d. Irene enchera a escola. Aumentando o material, divididas as aulas em oito turnos, mais de oitocentas crianças haviam superlotado o prédio. (RAMOS, 1998, p. 44).
Jamais tirou da memória o episódio. Em uma carta dirigida a Getúlio Vargas, logo que deixa o presídio, Graciliano exige explicações de sua prisão, que não tendo um objeto de acusação formal o faz deduzir que ela decorria de sua administração do ensino em Alagoas: “[…] lá cometi um erro: encontrei 20 mil crianças nas escolas e em três anos coloquei nelas cinquenta mil […] Os professores ficaram descontentes, creio eu. E o pior é que se matricularam nos grupos da capital muitos negrinhos” (ALVES, 2016, p. 313).
Tal ação era efetivamente compreendida como “estratégia de Moscou”, de “degeneração” dos ambientes sadios da nação, garantindo, no momento oportuno, uma melhor penetração das ideias soviéticas, sobretudo de uma nação sem Deus. De fato, a Igreja Católica havia aderido às ideias racistas e defendia o ensino religioso nas escolas, o que Graciliano rejeitara como secretário de Educação. Havia uma massiva campanha em Alagoas pela efetivação do que, na Constituição de 1934, ficou estabelecido como “estimular a educação eugênica”, tendo sido nela aprovada também o “ensino completivo” opcional, isto é, o catecismo. Assim, diria Celeste de Pereira, uma das diretoras da rede pública de Ensino de Alagoas, à época:
Os competentes e os que podem ter influência nas nossas causas educacionais de certo procurarão […] evitar males na nossa futura geração, porque não desconhecem certos estigmas físicos, indicativos de degeneração, dentre eles a parada do crescimento, o cretinismo, o imbecilismo. (SEMEADOR, 1934, capa)
“Estigmas físicos” expressavam diretamente características ligadas a negros e indígenas, tomados como “indícios” de degeneração (tanto em aspectos fisionômicos como moral). Isso justificaria a “educação eugênica”, segregação racial a fim de que se preservassem as “gerações futuras” (duzentas crianças representadas pelas “famílias mais arrumadas de Maceió”). Contudo, para o diretor da Instrução Pública, “parada de crescimento” tinha a ver com “falta do que comer”, implantando a merenda escolar de forma inédita no Brasil. Pelos exames anuais, provava, contra os argumentos da educação eugênica da AIB (Ação Integralista Brasileira) e da Igreja Católica, assumidos no artigo de Celeste de Pereira, que as teses racistas eram mero preconceito. O contato com as crianças negras leva-o, inclusive, a ponderar a respeito da literatura de 1930:
Os moleques do romance moderno são amigos dos moleques vivos, que, sentindo-se retratados nessas admiráveis figuras criadas por nossos escritores novos, afinal compreendem que não se devem envergonhar e que essa história de raça inferior foi uma conversa contada por indivíduos bem armados para se aproveitarem do trabalho deles. (RAMOS, 2012, p. 171)
A luta do autor contra o fascismo/nazismo no Brasil vai além do que atualmente a crítica supõe. Veja-se o lamento do padre alagoano Medeiro Netto à época: “A Constituição [de 1934], que correspondeu ao nosso justo direito, não foi atendida, pois foi a educação mesma que continuou leiga, tendo à frente, aqui [em Alagoas] como no Rio de Janeiro, homens hoje presos por comunistas” (NETTO, 1936). Caracterizava-se, portanto, como comunismo, os seguintes aspectos destacados pelo jornal A Nação: “O Sr. Graciliano Ramos, autor de um livro [São Bernardo] inconveniente às meninas alagoanas, já se vinha tornando intolerável pela perseguição às professoras que não seguiam o credo vermelho e pela liberdade com que agia a favor do comunismo” (A NAÇÃO, 1936, grifos meus).
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Uma sombra no olho azulado: a consciência negra de Fabiano em Vidas secas
Graciliano deixava a prisão em 1937, passando a atacar de forma contundente os conservadores, que tinha na figura do crítico Octávio de Faria um dos seus mais importantes intelectuais. Faria teria acusado Graciliano de, em vez de romances, produzir panfletos comunistas e dar à representação de personagens negras um caráter francamente marxista. Em 1938, Graciliano responderia a essas críticas construindo uma personagem branca, de olhos azulados, contudo fazendo com que de sua consciência emergissem memórias da escravidão.
Recorde-se que, após Fabiano notar que em vez de ter algo a receber do seu trabalho havia contraído uma enorme dívida, pensa consigo: “Trabalhar como um negro e nunca arranjar carta de alforria!” (RAMOS, 2015, p. 94). A série de evocações de lembranças do cativeiro, no romance, não deixam dúvidas da origem e incidência das memórias pelas expressões “negro fugido”, “trabalhando como negro”, “no tronco”, “carta de alforria”, aconselhando “os companheiros que dormiam no tronco”, “aguentando no lombo cipó de boi”, a ter paciência, “apanhar do governo não é desfeita”.1 Todos esses signos funcionam como uma espécie de isotopia da senha libertária. Fabiano os evoca pelas relações de trabalho, propriedade privada e o patrão (mundo objetivo), relacionando-os às metáforas do cativeiro, que sinalizam sua interioridade. A figura do “juros” (mundo objetivo) assemelha-se, para Fabiano, ao “tronco”/“cadeia” e ao “cipó de boi” (introspectivamente, memória da escravidão); consecutivamente: “patrão” sugere a figuração “governo dos brancos”/“amo”. A metáfora correlaciona o mundo objetivo ao universo introspectivo da personagem enquanto sensações experimentadas no período escravista. A figura da arribação, num “mundo coberto de penas” em termos subjetivos, é ocasionada pela figura objetiva dos juros, que absorvem o pouco que lhe resta para subsistir no semiárido, reduzindo o personagem e sua família a “vidas secas”. Assim, diante da dívida e da seca: “Só lhe restava jogar-se no mundo como negro fugido” (RAMOS, 2015, p. 117). Podemos dizer, portanto, que:
Os temas [da seca] disseminam-se pelo texto em percursos, as figuras [da escravidão] recobrem os temas. A reiteração discursiva dos temas e redundância das figuras, quando ocupam a dimensão total do discurso, denominam-se isotopia. O conceito de isotopia, assim como o termo, foi proposto por Greimas, na Semântica estrutural (1966). As primeiras definições de isotopia, embora bastante vagas, marcam já, com precisão, a noção de recorrência, ou seja, de que ao menos duas unidades são precisas para sua determinação. (BARROS, 2001, p. 124).
A recorrência das figuras ligadas ao cativeiro não deixa dúvidas quanto sua intencionalidade. Disso resulta que a animalização em Vidas secas não ocorre do entendimento de Fabiano de si mesmo ou da sua relação com a natureza (a seca): ele a deduz da desumanização produzida pela sujeição capitalista, “na presença dos brancos” e por seus meios de controle econômico. Os proprietários/homens impõem-se ao “animal”/trabalhador domesticável pela violência, o que o transforma em “bicho”/escravo. Por ter pensando consigo mesmo “você é um homem, Fabiano!”, precisa fazer a correção em voz alta: “você é um bicho, Fabiano!”, pela possibilidade de, fora os meninos, a qualificação de si mesmo como gente ter chegado aos ouvidos do patrão. Na sequência dessa cena, aparece uma sombra no olho azulado de Fabiano, como se tivesse aparecido um buraco na sua vida, produzindo “perturbação”, do qual tenta desviar-se com o cumprimento das suas funções de vaqueiro. Contudo, a obrigação não vai afastá-la, e sim acentuar cada vez mais seus contornos pela relação: “Trabalhar como um negro e nunca arranjar carta de alforria!” (RAMOS, 2015, p. 94). Nesse sentido, a isotopia temática de Vidas secas corresponde à tragédia representada pelas forças da natureza, enquanto a figuração isotópica corresponde à subjetividade do personagem, evocada por uma memória do cativeiro, cujo horizonte de expectativas se expressa pelo desejo de liberdade. Essa simbiose do branco e do negro em Vidas secas era, para Graciliano, inconcebível antes da prisão em 1936, uma vez que era impensável no Brasil: “[…] que negociantes e funcionários recebessem os tratos dispensados antigamente aos escravos […]. E estávamos ali, encurralados naquela imundice, tipos da pequena burguesia” (RAMOS, 1998, p.142). A experiência do cárcere proporcionaria a Graciliano uma compreensão aproximada da condição em que se encontravam as pessoas negras no Brasil, dizendo inclusive que “[…] certos aspectos da vida ficariam ignorados se a polícia não nos oferecesse inesperadamente o material mais precioso que poderíamos ambicionar” (RAMOS, 1975, p. 98): o sentido de liberdade, expresso pela persistência do arbítrio herdado do sistema escravista tanto no período como ainda hoje, o que faz o episódio de sua prisão um marco da luta pelos direitos humanos, pelo direito de milhares de pessoas atualmente presas sem processo ou um julgamento justo.
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1 As expressões entre aspas encontram-se na própria obra do autor. Ver na edição aqui analisada, no capítulo “Fabiano”: RAMOS, Graciliano. Vidas secas. Rio de Janeiro: Record, 2015.
Referência Bibliográficas
ALVES, Fabio Cesar. Armas de papel: Graciliano Ramos, as Memórias do cárcere e o Partido Comunista Brasileiro. São Paulo: Editora 34, 2016.
A NAÇÃO. “A ação do general Newton Cavalcanti contra o comunismo no Norte”. Rio de Janeiro, 11 de março de 1936. Fonte: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.
BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria do discurso: fundamentos semióticos. São Paulo: Humanitas, 2001.
FARIA, Octávio. “O defunto se levanta”, O Jornal, 30 maio 1937. Fonte: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
NETTO, Medeiros. “Instrução pública”. O Semeador, Maceió, 6/03/1936. Fonte: Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas. Acervo: Periódicos.
O SEMEADOR. “Instrução e Pedagogia”, por Celeste de Pereira. Capa, 24 março de 1934. Fonte: Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas (IHGA). Acervo: Periódicos.
PATTO, José Belmiro. “O Código de Processo Penal brasileiro 75 anos depois: uma trajetória de autoritarismos, ineficiências, descasos e retrocessos”. Revista Pensamento Jurídico, São Paulo, vol. 11, n. 1, jan./jun., 2017.
RAMOS, Graciliano. Vidas secas. Rio de Janeiro: Record, 2015.
. Memórias do cárcere. Rio de Janeiro/São Paulo: Record/Altya, 1996.
. Garranchos. Rio de Janeiro: Record, 2012.
. Linhas tortas. Rio de Janeiro: Record, 1975.
Edilson Dias de Moura é pesquisador, professor, editor e autor de materiais didáticos. Mestre e doutor em Literatura Brasileira pela USP. Seus campos de pesquisa são a teoria literária, a semiótica, a historiografia, a estética do ato de leitura e a teoria da recepção. Lançou em 2023 pelas Edições Sesc, Graciliano: romancista, homem público, antirracista. E-mail: edilson.moura@usp.br
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