Divagações sobre Charles Baudelaire


Três divagações sobre Charles Baudelaire

 

I.

 

Paul Valéry em “Situação de Baudelaire”, ensaio onde situa e recorta a singularidade do autor das Flores do mal contra um pano-de-fundo romântico, que à época experimentava o seu auge, sustenta que “com Baudelaire a poesia francesa ultrapassa as fronteiras da nação. Ela – continua Valéry – é lida no mundo inteiro”. Baudelaire consegue essa proeza, segundo o autor de Ébauch d’Un Serpent, porque sua poesia não dá continuação a alguns dos traços da tradição literária/cultural francesa, tais como: o medo do exagero e do ridículo; certo pudor na expressão (poder de expressão?); a tendência abstrata do espírito; as harmonias sutis demais; uma elegância e uma pureza excessivas no trato do discurso, etc. Assim, por ser a linguagem de Baudelaire – contente de tropeçar “sur les mots comme sur les pavês”, isto é, por ser mais suja em comparação com essa tradição – algo refratária a essas “manias” congeniais à língua e ao gênio franceses, ela “impõe-se como a poesia própria da modernidade”. E a modernidade está marcada por essas transações de fronteira. Transculturações. Baudelaire importa e incorpora, por exemplo, a poética de Poe para, mais adiante, num movimento de assimilação ou de plagiotropia, fazer a sua “poesia de exportação” (gr. plágios, a, on ‘oblíquo, que não está em linha reta, que está de lado; transversal) – tomo de empréstimo, aqui, as célebres noções da antropofagia cultural do poeta do modernismo de 22, Oswald de Andrade.

Inspirado em Mallarmé, Paul Valéry diz que quem fala no poema é a própria linguagem e não o poeta: a música calada dessa “estranha esgrima”. Se, com efeito, não há nem mesmo um ego scriptor por detrás do poema, com quem, afinal de contas, o leitor manterá uma interlocução senão consigo mesmo numa atitude de leitura inventiva, colaborativa. A ambiguidade calculada do poema pressupõe um leitor também crítico e atuante. Leitor interessado em produzir sentidos a partir do seu desejo de linguagem. Assim, poderíamos reformular a ideia mallarmaica dizendo o seguinte: quem fala, em última análise, no poema é o leitor, esse intérprete de uma partitura que reúne um conjunto de signos abertos à sua decifração. O poeta-crítico é um leitor-crítico. Segundo Paul Valéry, “a obra romântica, em geral, suporta muito mal uma leitura lenta e sobrecarregada com as resistências de um leitor difícil e refinado”. Para Valéry, Baudelaire era esse leitor. Baudelaire e, mais ainda, Paul Valéry vivem o dilema da experiência poética no seio da modernidade. Ou seja, embora peritos artistas do gênero, e tendo em vista a tradição e o entorno a partir dos quais produzem sua arte e sua crítica, não se considerem mais como poetas (naquele sentido consagrado pela antiguidade), mas, antes, se reconhecem como uma representação controversa, como a problematização arrojada desse imaginário.

 

Nota: w. benjamin  pg. 37 – “sobre alguns temas de baudelaire”

 

 

II.

 

Desde o ponto de observação de sua água-furtada, “du haut de ma mansarde”[1], a máscara poética de Baudelaire, ou, em outras palavras, seu ego scriptor, divisa a topografia entre operosa e operística da cidade: “les tuyaux, les clochers, ces mâts de la cité”, as fiações, os cordames de mastros espetados como marcos da árdua tristeza da capital e do capital. Ensaio arquitetônico da situação espiritual pública, sob cujo teto a moda cidadã do terno e sobrecasaca pretos dramatiza uma beleza política que é expressão de uma igualdade geral. Baudelaire narra o movimento dessa população apertada em seus magros ombros pretos como uma “imensa procissão de papa-defuntos – papa-defuntos políticos, papa-defuntos eróticos, papa-defuntos particulares. (…) A roupa do desespero (…). E as pregas na fazenda que fazem caretas e que se enroscam como cobras em volta de carne morta, não terão seu encanto oculto?”[2]. Deparamos, assim, a silhueta metafórica da cidade como uma embarcação infernal cujo périplo (seu destino-sentido) ainda não está devidamente estabelecido.

Noutro passo do poema, “L’émeut, tempêtant vainement à ma vitre”, o tumulto da vida moderna golpeia sem obter resposta a vidraça do escritório do poeta que, por sua vez e a par de um certo receio, experimenta um poderoso fascínio na observação dos “fleuves de charbon monter au firmament”, imagem metonimizada do atelier do mundo metropolitano do qual ele se sente como que teatralmente protegido. Mas a cidade é o ideograma desmesurado da visão de modernidade meditada pelo poeta – quer como anseio, quer como mal-estar -, e como decorrência, Baudelaire se sente sugado para o interior dessa vertigem, ao mesmo tempo em que modula uma mise-en-scène de recusa com relação à ela mesma. Razão pela qual, Hugo Friedrich descreve a urdidura poética dos Tableaux Parisiens como “a tentativa de evasão no mundo externo de uma metrópole”[3]. O enfarruscado interior das coisas que constituem o estado de alma do poeta, e onde ele afunda luxuoso, entranha-se mesmo no aparente das camadas rugosas dos pavimentos da grande cidade.

Em anotação à margem de “O Convite à viagem”, peça extramuros dos Tableaux Parisiens, Baudelaire, após convidar sua pequena irmã a ver “sobre os canais/ dormir junto aos cais/ barcos de humor vagabundo” (na tradução de Ivan Junqueira), nos oferece menos uma perspectiva interpretativa do que uma glosa ao seu poema: “Estes belos, grandes navios, como são embalados imperceptivelmente na água tranqüila, estes navios fortes que têm um aspecto tão ansioso quanto ocioso – será que não nos perguntam numa linguagem muda: quando embarcaremos para a felicidade?”. Podemos aventar aqui uma imagem possível para a cidade da modernidade com a qual Baudelaire se debate, visando descobrir-lhe um traço heróico, embora agônico e algo preguiçoso.

A modernidade baudelairiana, embora se sabendo não-épica, deixa vislumbrar em seus subúrbios, seus trapeiros, seus dandys – atrás de cujas persianas encenam secretas luxúrias -, enfim, deixa vislumbrar em sua transitoriedade a feição frágil desta existência que se torna a representação (ou a epifania antecipatória) da antigüidade em que ela mesma se solverá. E as nuvens-rios de carvão que se elevam contra o firmamento, mais do que indicar o mundo transfigurado que começa a dar-se em espetáculo, se condensam, deste modo, como um véu opaco no intervalo entre o poeta e os quadros que depara. A correnteza-fuligem de signos, enubla, põe em causa essa concretude avassaladora através da qual o real se presta à verdade precipitada em vedar qualquer possibilidade de interpretação que a considere tão-só como um sentido. Vale frisar, ainda, que a paronomásia acústica ansioso/ocioso, materializa ao rés dos significantes o feeling do percurso poético baudelairiano. E como ressonância disso, o estribilho anafórico da invitation à sua irmã, “Là, tout n’est qu’ordre et beauté,/ Luxe, calme et volupté”, representa até certa medida o lugar instável de onde fala Baudelaire.

Com efeito, do observatório de sua mansarda, Baudelaire estreita a modernidade em suas mãos. Sobre o vazio papel defendido pela brancura, ele exercita a sós e ao mesmo tempo embebido dos estereótipos da rua – pois será preciso tropicar “sur les mots comme sur les pavês” para que suas alegorias se tornem menos rarefeitas -, o mundo da sua linguagem que, não obstante seja crítica com relação aos discursos cobertos de “pátina poética”, simula evadir-se enquanto tenta recusar a linguagem tumultuária, “le bric-à-brac confus”, de um mundo de passagens, prosaico e derrisório que, a contrapelo, encontra nele o seu maior tradutor e comentarista:

 

Je ne vois qu’en esprit tout ce camp de baraques,

Ces tas de chapiteaux ébauchés et de fûts,

Les herbes, les gros blocs verdis par l’eau des flaques,

Et, brillant aux carreux, le bric-à-brac confus.

 

(…)

Paris change! mais rien dans ma mélancolie

N’a bougé! palais neufs, échafaudages, blocs,

Vieux faubourgs, tout pour moi devient allégorie,

Et mes chers souvenirs sont plus lourds que des rocs. 

 

[Só na lembrança vejo esse campo de tendas,/ Capitéis e cornijas de esboço indeciso,/ A relva, os pedregulhos com musgo nas fendas,/ E a miuçalha a brilhar nos ladrilhos do piso. (…) Paris muda! mas nada em minha nostalgia/ Mudou! novos palácios, andaimes, lagedos,/ Velhos subúrbios, tudo em mim é alegoria,/ E essas lembranças pesam mais do que rochedos.][4]

Sendo assim, Baudelaire não se projeta para o mundo, mas, antes, o sonha, a seu modo, nos transes da linguagem, na “oficina irritada” de uma percepção do poema derivada da metalinguagem de Poe, a partir do qual, no que toca a imperícia compositiva, não há indulto possível: “Only this and nothing more”. Como assinala Walter Benjamin, “Baudelaire conspira com a própria língua. Calcula seus efeitos a cada passo”, sabe que o incógnito e a ambigüidade são as leis não só da sua em particular, mas da poesia que se fez e se fará, antes e depois de suas flores deletérias. O cálculo e a meticulosidade do Baudelaire mestre (me sirvo do termo na acepção em que Ezra Pound o empregava), são galvanizados na figura do artífice trôpego por mauvaise conscience, o trapeiro que fuça o moderno da vulgaridade quotidiana sob os despojos da sua ideologia e do seu étimo, em busca de um eco épico, ou de um heroísmo seduzido pela entropia do trágico: “Temos aqui um homem – ele deve apanhar na capital o lixo do dia que passou. Tudo o que a grande cidade deitou fora, tudo o que perdeu, tudo o que despreza, tudo o que destrói – ele registra e coleciona. Coleciona os anais da desordem, o Cafarnaum da devassidão, seleciona as coisas, escolhe-as com inteligência; procede como um avarento em relação a um tesouro e agarra o entulho que nas maxilas da deusa da indústria tomará a forma de objetos úteis ou agradáveis”[5]. O poeta-trapeiro baudelairiano mapeia a metrópole a partir de um escrutínio semiótico, seleciona e combina sintagmas-coisas, fragmentos, objetos-antiguidades colecionáveis, desentranhados pósteros à dissolução do presente, visando um poema, um modelo de sensibilidade, um sonho exato sob pórticos voluptuosos.

Antonio Candido, no ensaio “O albatroz e o chinês”, considerando a poesia de Baudelaire em comparação com a de outros autores, argumenta que a expressão literária ou poética implica uma “dialética (dilema) do espaço aberto e do espaço fechado”, que, por sua vez, apontam para um caminho que se bifurca em duas direções, numa o “desejo de representar o mundo” e, noutra, o anseio pela “invenção de um mundo autônomo”. O grande ensaísta sustenta que Baudelaire prepara o terreno “para uma aventura nova que, levada às últimas consequências, será uma das marcas da poesia no século 20: confiar totalmente na força criadora da palavra, instituidora de mundos arte-feitos”. Portanto, conclui Candido, o poeta não se sente afetado pelos tumultos exteriores “porque ele já está mergulhado na alegria imensa que permite substituir a representação do mundo pela invenção de outro”[6]. Estamos próximos daquilo que dirá Mallarmé alguns anos mais tarde a propósito do autor de “O corvo”, e que da mesma forma se pode aplicar a Baudelaire, isto é, que ele, no confinamento do seu escritório, buscou e logrou “um sentido mais puro às palavras da tribo”. Outro comentador (Jacques Rivière), salienta que Baudelaire parte da palavra rara, e aos poucos a aproxima do tema. Se considerarmos justo este comentário, Baudelaire estaria então antecipando um dos tópicos mais importantes do pensamento-arte de Paul Valéry, que pode ser traduzido neste esboço, nesta anotação recuperada aos seus diários, onde ele diz e dissimula assim: “Se pois me interrogam acerca de que eu ‘quis dizer’ em tal poema, respondo que eu não quis dizer, mas que quis fazer, e que foi a intenção de fazer que quis o que eu disse”.

Feito o sol, em nossa visão cosmonáutica, Baudelaire em “Le soleil”, também se posta no centro; neste micro-sistema – o poema, máquina verbal por meio da qual exercita sua estranheza – ele, então, se retrata a si mesmo durante a consecução do seu processo de composição. Ao acionar seus recursos de linguagem, ao otimizá-los às vezes em um espasmo negativo, lançando mais além os marcos expressivos do gênero, Baudelaire também alarga as marginais de seu entourage, assim como penetra e queda nos cantos (“coins”) mais recuados e ignotos das vielas da capital parisiense, retida em seus versos “desde há muito tempo já sonhados”. O poeta olho-do-sol arroja seus punhais (palavras-raio) até as esquinas e os antros mais abjetos da cité; o exercício da escrita – em que não se despreza a dimensão de physis nela contida – se transforma numa “fantasque escrime” (“wordswordswords/ swords”, José Paulo Paes dixit). Benjamin fala a respeito do suor, do esforço, que Baudelaire considerava imprescindível associar ao trabalho de fatura do poema. Escritura-esgrima que, não obstante a exatidão como fundamento – isto é, o necessário virtuosismo dos golpes precisos -, requer, por outro lado, a colaboração do acaso, le hasard, e do impreciso:

 

Sur la ville et les champs, sur les toits et le blés,

Je vais m’exercer seul à ma fatasque escrime,

Flairant dans tous les coins les hasards de la rime,

Trébuchant sur les mots comme sur les pavés,

Heurtant parfois des vers depuis longtemps rêvés.

 

(…)

Quand, ainsi qu’un poëte, il descend dans les villes,

Il ennoblit le sort des choses les plus viles,

Et s’introduit en roi, sans bruit et sans valets,

Dans tous les hôpitaux et dans tous palais.

 

[Sobre a cidade e o campo, os tetos e os trigais,/ Exercerei a sós a minha estranha esgrima,/ Buscando em cada canto os acasos da rima,/ Tropeçando em palavras como nas calçadas,/ Topando imagens desde há muito já sonhadas. (…) Quando às cidades ele vai, tal como o poeta,/ Eis que redime até a coisa mais abjeta,/ E adentra como rei, sem bulha ou serviçais,/ Quer os palácios, quer os hospitais.][7]

Nas três estrofes de versos alexandrinos que compõem o poema “Le soleil” (duas oitavas e um quarteto), a estrofe intermediária corresponde a uma passagem bucólica que evoca o motivo da écloga (poesia campestre onde o poeta é a personificação do pastor seduzido pela cena natural e a vida rústica), espécie de recidiva romântica. Detença em que Baudelaire parece denunciar seu ânimo indecidível com relação a um tempo-espaço que atravessa uma etapa de oscilação: um acabar-começar civilizatório, e a respeito do qual ele, Baudelaire, se vê coagido a propor uma reflexão crítico-estética que não só o problematize, mas que também, no lance de traduzi-lo, a partir dos parâmetros da “signagem” poética, ponha a descoberto sua beleza fragmentária e em trânsito.

Não são poucos os que se referindo ao poeta como “romântico”, utilizam-se do termo em tom acusatório. Outros apontam sua falta de convicção, de conhecimento, de constância.  Um desses críticos escreve: “ele pode mudar sua fisionomia como um condenado em fuga”[8]. Baudelaire escapa de raspão ao romantismo, por outro lado, não chega a se inscrever na irmandade simbolista. Ele é não-romântico e não-simbolista. Confisca de ambas as ficções os insumos que considera indispensáveis para tornar possíveis, isto é, imateriais, “les grands ciels qui font rever d’éternité” sua Paris material. Estamos, portanto, diante de um poeta, ou melhor, de um homem que inventou um assunto: a metrópole moderna. De certa forma, Baudelaire nos legou um questionamento que chega até os nossos dias sem que se tenha produzido uma solução para o mesmo. E a pergunta subjacente ao seu percurso de poeta-crítico pode ser assim formulada: a metrópole é arte ou não-arte? Nos “Quadros Parisienses”, a metrópole-arte se abre em labirinto estético, monturo glamurizado, morredouro-nascedouro de signos na devoração das próprias entranhas. Ao fim e ao cabo, a Paris histórica, civil, cidade em obras, se submete a um déficit de realidade porque se reflete e se anula no atrito com esse verdadeiro “poema visual transitável” – para usar a denominação com que Joan Brossa (1919-1998) intitulava suas obras desenhadas tanto para o espaço e como à interação corporal -, a metrópole-arte de Baudelaire: réplica satânica e lésbica que emerge do plano-piloto dos seus versos.

Antes de concluir esta divagação, enveredo por um breve intervalo para trazer ao debate um outro personagem baudelairiano. Trata-se de Marcel Duchamp (1887-1968) que, para início de conversa, em 1919 enfrascou 50cc do ar parisiense fazendo desse pequeno objeto peça antológica no “museu de tudo” da arte moderna. Duchamp inventa a arte que discute a impossibilidade da arte, num período onde tudo – começando pela linguagem – se tornou equívoco; histrião, o antiartista pergunta: onde está a arte? Sua realização mais controversa, tornada pública dois anos antes do frasco de ar parisiense, é o famoso urinol masculino “R. Mutt”. A tradução para Mutt é a de “cão vira-lata ou pessoa simplória”[9]. Assim, circunscritos na mesma área de significação que abarca o delinqüente, o vagabundo, o mendigo, etc., também comparecem o trapeiro de Charles Baudelaire e o cão vira-lata, ou seja, o Mutt de Marcel Duchamp. Formal e semanticamente instáveis, seus readymades se interpõem entre o fruidor e a “arte” que aquele não admite ver desfigurada. O fruidor exasperado tenta avistar por detrás das metáforas equívocas de Duchamp o que restou daquela arte consagrada. Coisas, máquinas inúteis, corpos sígnicos acrescentados ao mundo, as concreções de Marcel Duchamp são obstáculos poéticos-políticos, desafios à “compreensão”, enfim, rastros e perspectivas de sentido.

Corro o risco de propor uma leitura excessivamente pós-moderna do poeta dos Tableaux Parisiens, tendo em vista que experimento traduzir essa cidade sem bordas, que se altera desde o hospital até o palácio, presentificada em seus versos: “Paris change!”, como se ela fora uma Instalação – com aqueles sentidos resgatados às artes contemporâneas. Pois a metrópole-arte de Baudelaire é franqueada ao desejo de linguagem do leitor como paisagem e não-paisagem, monumento e não-monumento, arquitetura mais leve que o éter à mercê de um travelling a um tempo háptico e cínico. Então, entre as capas das Flores do mal, descubro ou invento esses takes parisienses e, quer como leitor-espectador, quer como frequentador, me deixo ficar na cidade que põe entre parênteses qualquer vontade de utilidade.

 

III.

 

Há o poeta Charles Baudelaire e o analista e esteta Charles Baudelaire (em conjunção tensa). Mas há ainda o poeta-crítico Charles Baudelaire (que, em perspectiva, anula o virtual impasse entre as personae). Sua poesia e a dos seus contemporâneos, mais a arte do seu tempo, são o alvo de sua prática e reflexão. Alguns exegetas dessa obra desenvolvida, digamos assim, nessas frentes que se bifurcam, sustentam que as abordagens críticas do poeta seriam mais avançadas que sua atividade poética. O cotejo entre as duas formas de discursos, visando a ratificar tal suposição, talvez seja descabido.

No entanto – e aqui cometo uma inconfidência -, no meu caso, o contato com seus ensaios, sempre geniais, me conduziu a uma reconsideração mais atenta da sua poesia que, a princípio, tomando por base primeiras leituras, não havia me perturbado tanto, pois ela não parecia representar a figura do moderno que o Baudelaire, crítico cultural, me ensinara a apreciar, e que tão definitivamente plasmara o pensamento das gerações que lhe sucederam. No entanto, a figura do “escritor-crítico”, conceito-base de análises de Leyla Perrone-Moisés,[10] me auxiliou a entender melhor essa relação entre a obra inventiva e a reflexão estético-crítica baudelairiana. Com efeito, não há uma hierarquia valorativa entre essas duas atividades exercidas com maestria pelo autor. Uma tentativa de resumo das ideias da crítica e professora de literatura, talvez pudesse ser feita nos seguintes termos.

Em primeiro lugar, o escritor-crítico estabelece “um tipo particular de discurso crítico”, ou seja, estamos frente a um discurso que se situa, e que, ao menos provisoriamente, ocupa um campo estético. No entanto, nada impede no momento seguinte o abandono do terreno conquistado. Aliás, Baudelaire defendia a crítica parcial, aquela que toma partido; que se sabe precária ou provisória. Como se fora um lance numa partida de xadrez. E a cada intervenção, o escritor-crítico se embrenha (às vezes à revelia do próprio desejo) num debate de formas e ideias que diz respeito a si e aos seus iguais, e que, de outra parte, pede a interferência deles e a sua réplica futura. Esses escritores pensam de maneira interessada, e aquilo que pensam gera “maiores consequências: porque orienta a produção de suas próprias obras, dando assim continuação à ‘Literatura’”.

Por outro lado, segundo W. H. Auden [11], o escritor-crítico, ou o escritor que começa a dar ouvidos ao seu “censor interno”, sabe que possui um conhecimento limitado, e por isso mesmo sua perspicácia o faz falar de “florestas” e “folhas”, mas o impede de aventurar-se pelo assunto “árvores”. Os escritos críticos dos poetas talvez devam ser lidos como experimentos poéticos e literários de segundo grau, derivações, ficções de cânones precários. Entretanto, isto não quer dizer que seus resultados não precisem ser levados a sério, pelo contrário: apenas que as reflexões promovidas por esses escritores e poetas são desenvolvidas “com vistas a uma ação: sua própria escritura, a dos escritores que trabalham naquele momento ou que trabalharão num futuro próximo”. Quando o poeta resolve escrever crítica, prefácios, ensaios, etc, ele não tem a pretensão de socorrer o leitor – esse é o objetivo da crítica literária institucional, jornalística ou acadêmica.

Para Octavio Paz, exemplo de poeta-crítico, o sentido de um poema está sempre num outro poema. E é a partir dessa perspectiva que entendo a tarefa do escritor-crítico: o discurso crítico engendrado por ele apresenta conexões necessárias com o discurso de invenção. Um está entremeado ao outro por meio de fios não-aparentes. O escritor, por se achar implicado nas imperícias e imposturas que aponta e denuncia, sejam nas suas, sejam em obras alheias, “acha que o poema é sempre mais importante do que qualquer coisa que se possa dizer sobre ele”. Sua leitura não substituirá aquela escritura poético-literária que eventualmente esteja sob os seus olhos. Assim, o discurso crítico do escritor, mesmo o mais aparentemente afinado com a crítica literária institucional, é um discurso do desejo e da preguiça. Ele inventa um texto equivalente, contrabandeando para o interior da sua metalinguagem a beleza capturada no momento em que é levado a erguer a fronte, inclinada, até há pouco, sobre o poema.  Ele só admite ler aquilo que lhe agrada. Isto talvez explique o fato de suas abordagens, não obstante serem arduamente trabalhadas, resultarem, o mais das vezes, sincrônicas, lacunares, fragmentárias, carentes de nomes consagrados, e sempre se apresentando em oposição aos “‘quadros completos’ dos manuais de história literária”.

Outra característica desses escritores e poetas críticos é a eventual tematização de questões estéticas em suas peças inventivas, quer seja investigando a linguagem das demais artes ou de algum artista em particular, quer seja considerando os limites do seu próprio gênero ou de sua própria obra. Os escritores-críticos não dissimulam o fato de que escrever sobre escrever sempre fez parte do nosso repertório, desde Homero, passando pelos griots africanos, pelos cantores provençais, pelos simbolistas, pelos sambistas e chegando até aqui. A metalinguagem está no passado da tradição e no presente que põe em xeque ou em movimento esse passado. Escrever sobre escrever é um dos quesitos do escrever.

Muito bem, depois dessa interpolação um pouco longa, voltemos a Charles Baudelaire: poeta, resenhista, esteta. Inteligência curtida em anos de estudo vagabundo: “Como escritor, Baudelaire tinha um grande defeito de que ele próprio não desconfiava: era ignorante. O que sabia, sabia profundamente; mas sabia pouco. História, fisiologia, arqueologia, filosofia, permaneceram-lhe estranhas…” (apud Walter Benjamin). Maxime Du Camp, autor do comentário acima, talvez tenha entendido que Baudelaire se pronunciou além do tolerável a respeito de “árvores”. Ironias à parte, está aí patente a objeção, a censura superciliosa da crítica literária institucional com relação ao estilo de trabalho do escritor-crítico. A tópica baudelairiana não via disjunção entre ordem e volúpia. O limbo da poesia, acomodado em área nobre do inferno dantesco é um mundo às avessas. Como diz Baudelaire em “L’invitation au Voyage”: “Là, tout n’est qu’ordre et beauté,/ Luxe, calme et volupté[12].

Se admitirmos sem controvérsias que o autor das Fleurs du mal veste com elegância a casaca do poeta-crítico, não seria despropositado aventar também a hipótese de um Baudelaire construtivista. Segundo Walter Benjamin, Baudelaire reivindica para a arte moderna uma “força de expressão” característica da antiguidade, e essa força se limitaria à construção. E Baudelaire, tendo em mira a sua produção e a dos seus pares, afirma: “Ai daquele que estuda outra coisa na antiguidade que não a arte pura, a lógica, o método geral” [13]. Esse Baudelaire sincrônico, que onera e projeta o passado como uma figura de objetos arte-feitos, não se distancia da noção de que a poesia, para a poética clássica, corresponde ao belo imperfeito, pois o que predomina nesse gênero é a disposição para a ficção e modelos imaginativos particulares, portanto não faz sentido que se lhe exija qualquer veleidade pedagógica ou moralizante. Platão, no entanto, tem em mente o belo perfeito, a obra poética em que se realiza a união do útil ao agradável – por seu turno, o poeta francês põe luxe e volupté em relação com a beleza, agora bizarra e esquizo, da modernidade. Como poeta-crítico, Baudelaire quer “as essências e as medulas” da antiguidade, vale dizer, seu apetite crítico e estético ataca a parte viva do acervo; e assim, na verdade, ele a (re)inventa. Como leitor fervoroso (parcial) do passado criativo, tenta ser um intérprete de aspectos bem delimitados do legado, com vistas a transportar para o seu presente, o substantivo de uma tradição em movimento e onde se vê implicado.

 

 

 

Notas

[1] As flores do mal / Charles Baudelaire; tradução e notas de Ivan Junqueira, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985, p. 316.

[2] A modernidade e os modernos; Walter Benjamin, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975, p. 27.

[3] Poesia e prosa: volume único / Charles Baudelaire; edição organizada por Ivo Barroso, Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1995, p. 1033.

[4] As flores do mal / Charles Baudelaire, pp. 326-327.

[5] A modernidade e os modernos, p.16.

[6] O albatroz e o chinês / Antonio Candido, Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2004, p. 23.

[7] As flores do mal / Charles Baudelaire, pp. 318-319.

[8] A modernidade e os modernos, p. 29.

[9] Arte contemporânea: uma história concisa / Michael Archer; tradução de Alexandre Krug, Valter Lellis Siqueira, São Paulo, Martins Fontes, 2001, p. 3.

[10] “Escolher e/é julgar”, Leyla Perrone-Moisés, in Colóquio/Letras (Lisboa), no 65, Janeiro de 1982, pp. 7-8.

[11]  Fazer, saber e julgar, W. H. Auden; tradução de Angela Melim, Ilha de Santa Catarina, Editora Noa Noa, 1981, pp. 32 a 34.

[12] As flores do mal / Charles Baudelaire; tradução e notas de Ivan Junqueira, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985, pp. 234 a 237.

[13] A modernidade e os modernos; Walter Benjamin, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975, p. 10.

 

 

 

 

 

 

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Ronald Augusto é poeta, letrista e ensaísta. Formado em Filosofia pela UFRGS. Autor de, entre outros, Confissões Aplicadas (2004), Cair de Costas (2012), Decupagens Assim (2012), Empresto do Visitante (2013), Nem raro nem claro (2015), À Ipásia que o espera (2016) e Crítica Parcial (2022).

 




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