A memória das coisas


Arthur Bispo do Rosário, Jorge Luis Borges e Peter Greenaway –

Documentação da obra de Arthur Bispo do Rosário, Museu Bispo do Rosário – Arte Contemporânea, Rio de Janeiro.

 

“Um homem se propõe a tarefa de desenhar o mundo. Ao longo dos anos, povoa um espaço com imagens de províncias, de reinos, de montanhas, de baías, de naus, de ilhas, de peixes, de moradas, de instrumentos, de astros, de cavalos e de pessoas. Pouco antes de morrer, descobre que esse paciente labirinto de linhas traça a imagem de seu próprio rosto.” (Jorge Luis Borges)

 

  1. A imaginação taxonômica

Ao descrever o prodigioso catálogo de recordações que constitui a memória de Irineu Funes, no conto “Funes, el memorioso”[i], Borges atribui ao ato de recordar do personagem uma função taxonômica: a de inventariar todas as lembranças possíveis (e impossíveis) de todas as coisas vistas, lidas, experimentadas e imaginadas ao longo de uma vida. E caracteriza esse “catálogo mental” como inútil, por saber que Funes – mesmo sendo capaz de registrar  todos os sonhos e entressonhos que já teve, “as formas das nuvens austrais do amanhecer do dia trinta de abril de mil oitocentos e oitenta e dois”, as folhas isoladas de cada árvore que viu ou imaginou – era incapaz de esquecer. [ii] Sua memória sem lapsos era o atestado de sua infelicidade, podendo mesmo ser comparada a um “despejadouro de lixos”, uma espécie de “museu de tudo”, onde as coisas se acumulam na mesma proporção em que anulam qualquer esforço de organização.

Para compor o personagem, Borges busca subsídios históricos e literários na História Natural , de Plínio, o Velho, mais especificamente no Cap.24 do Livro VII, onde o autor romano enumera uma série de casos conhecidos de memória fabulosa, como o de Ciro, rei dos persas, que podia chamar pelo nome todos os soldados de seu exército;  o de Lúcio Cipião, que sabia de cor os nomes de todos os cidadãos romanos; Cíneas, o embaixador grego que, um dia após sua chegada a Roma, já sabia os nomes de todos os senadores e cavaleiros do reino; Mitridates, que reinava em 22 línguas; e Metrodoro Cépsio, que registrava na memória absolutamente tudo o que ouvia uma vez só.[iii]  Mas longe de fazer de Funes apenas mais um exemplo de prodígio mnemônico para a lista de Plínio, Borges repete com esse personagem o mesmo gesto irônico inscrito no conto “La biblioteca de Babel”: o de evidenciar a insensatez e a ineficácia de toda tentativa de arquivamento ou classificação exaustiva do conhecimento e das coisas do mundo, visto que todo recenseamento tende, em seus limites, a revelar o caráter do que é naturalmente incontrolável e ilimitado.

Não parece ser muito diferente o gesto de Georges Perec, no romance Vida: modo de usar[iv], no qual a vida dos habitantes de um prédio em Paris é descrita a partir do inventário exaustivo e pormenorizado de tudo o que preenche cada mínimo espaço de cada cômodo de cada um dos apartamentos habitados. Um inventário que – pelo excesso de ordenação e detalhamento – acaba também por perder sua própria eficácia enquanto procedimento taxonômico diante da proliferação excessiva dos objetos e detalhes que se acumulam enquanto “materiais da vida” dos personagens. Nesse caso, a experiência e a memória têm como registro a exterioridade sensível de tudo o que materialmente as define e as consome, como se só as coisas pudessem perdurar para além de nosso esquecimento e nossa precariedade.

Aficionado por listas, verbetes enciclopédicos, levantamentos estatísticos, glossários, índices, dentre várias outras modalidades classificatórias colocadas a serviço de nosso desejo de ordenação do mundo e do conhecimento, Perec soube levar às últimas consequências tais procedimentos nesse e outros livros, criando critérios insólitos de organização, parodiando a lógica burocrática das instituições e valendo-se matematicamente de estatísticas absurdas. Sua experiência mais radical nesse campo foi, sem dúvida, a lista por subtração que criou no romance La disparition (1969) do qual excluiu toda e qualquer palavra que contivesse a vogal e, como forma de homenagear seus pais judeus, de origem polaca, assassinados/desaparecidos nos campos de concentração nazistas. Vale mencionar ainda o livro de ensaios Pensar/Classificar, dedicado inteiramente a uma teorização não-convencional dos sistemas de classificação, no qual o autor , após reconhecer quão “tentador é o afã  de distribuir o mundo inteiro” segundo determinados códigos capazes de reger o conjunto dos fenômenos, conclui: “lamentavelmente não funciona, nunca funcionou, nunca funcionará. O que não impedirá que sigamos durante muito tempo classificando os animais pelo seu número ímpar de dedos ou por seus chifres ocos”.[v]

Poderíamos arrolar aqui uma longa lista de escritores e artistas contemporâneos de diferentes contextos culturais que têm se dedicado ao exercício criativo das taxonomias, movidos não tanto pelo impulso lúdico que tal  exercício enseja, mas sobretudo pelo propósito de subverter/criticar a lógica burocrática que define o uso dos sistemas legitimados de organização do mundo.  Ítalo Calvino, por exemplo, foi outro que brincou com essa lógica, sobretudo através do personagem Palomar, cujo olhar míope não o demovia do intento de contar – com o auxílio de um mapa e de uma luneta –  todas as estrelas do céu, e tampouco o impedia de converter uma queijaria em uma enciclopédia de nomes, formas, cheiros, sabores e tamanhos de todos os queijos possíveis.[vi] O iugoslavo Milorad Pávitch, por sua vez, optou por contar a história dos kazares – tidos como o único povo da história a se converter, em massa, ao judaísmo –  na forma do que chamou de “romance-enciclopédia de 100 mil palavras”, valendo-se de uma narrativa em verbetes e escrevendo versões diferenciadas e entrecruzadas dos mesmos acontecimentos.[vii]  Para não mencionar o cineasta britânico Peter Greenaway que, não bastasse criar filmes atravessados por uma lógica serial, vem se dedicando também a fazer exposições e óperas  em forma de catálogos, nos quais objetos, imagens e palavras – desdobrados em suas múltiplas possibilidades de representação e associação –  acabam por instaurar o caos dentro da própria ordenação que as define, revelando dessa forma um mundo que se assemelha ao “museu de tudo” que Borges nos traz através da memória de Funes ou Perec pacientemente constrói com seu inventário de coisas em  Vida modo de usar.

 

  1. Arthur Bispo do Rosário: o rigor do delírio, a simetria do caos

No Brasil, o artista sergipano Arthur Bispo do Rosário (1909-1989) poderia ser o nome mais exemplar para integrar tal lista de artistas/escritores, embora seu trabalho de catalogação – que tão surpreendentemente antecipa obras seriais de artistas sofisticados como o inglês Tony Cragg ou o francês Arman, para não falar de suas afinidades com Marcel Duchamp –  não esteja vinculado necessariamente a um projeto estético ou resulte de uma inquietação de ordem intelectual. Ao contrário, ele nunca sequer se reconheceu enquanto artista de verdade, vivendo em completa marginalidade social – dada sua condição de pobre, negro e psicótico em um país e uma época marcados pelo forte preconceito – e inteiramente alheio aos espaços privilegiados das artes e do saber letrado de seu tempo.

Tendo exercido atividades como pugilista, marinheiro e empregado doméstico, Bispo passou cerca de 50 anos em um hospital psiquiátrico do Rio de Janeiro, onde compôs toda a sua obra, composta de quase mil peças, atualmente recolhidas no Museu Bispo do Rosário, na Colônia Juliano Moreira, no Rio. Essas peças, que vão de objetos avulsos, como navios de madeiras ou uma roda de bicicleta, até assemblages, fardões, fichários, faixas, panôs, coleções de miniaturas, tabuleiros com peças de xadrez e um majestoso manto bordado, dentre vários outros artefatos, compunham o que o próprio artista designou de “registros de minha passagem sobre a terra”, ou seja, um conjunto de todas as coisas do mundo, que, segundo ele, seria apresentado a Deus no dia do Julgamento Final.

Até sua morte em 1989, Bispo dedicou-se, com grande afinco e extraordinário senso de rigor e simetria, à sua missão, convicto de que tinha sido o escolhido de Deus  para reconstruir o mundo após o fim de tudo, repovoando a terra com seus “objetos mumificados” e suas listas infinitas de nomes iniciados com determinadas letras do alfabeto e imagens em série bordadas sobre panos ordinários.  Buscava sua matéria prima no cotidiano mais imediato, nos redutos marginalizados da pobreza, no agora de sua própria experiência: sapatos, canecas, pentes, garrafas, latas, ferramentas, talheres, embalagens de produtos descartáveis, papelão, cobertores puídos, madeira arrancada das caixas de feira e dos cabos de vassouras, linha desfiada dos uniformes dos internos, botões, estatuetas de santos, brinquedos, enfim, tudo o que a sociedade jogou fora, tudo o que perdeu, esqueceu ou desprezou. Compôs, a partir desse entulho, uma espécie de memorial de sua passagem pelo mundo, uma narrativa ordenada segundo as leis mais rigorosas da taxonomia e, ao mesmo tempo, atravessada pela espontaneidade de uma imaginação delirante.

Difícil não associar esse trabalho de catalogação com o que, segundo a mitologia bíblica, Noé realizou ante a ameaça do Dilúvio. Considerado por estudiosos como o primeiro colecionador da história da humanidade, o primeiro – segundo John Elsner e Roger Cardinal – a sofrer a “patologia da completude a todo custo”[viii], Noé converteu o ato de recolher e agrupar todas as criaturas da terra em um antídoto contra  a destrutividade do tempo e da morte. Sua fé foi colocada a serviço da salvação do mundo, como a de Bispo do Rosário. Com a diferença de que, para Bispo, o mundo não se afigurava de forma naturalizada, mas artificialmente moldado a partir do que nele foi depositado pela cultura. Interessava-lhe, particularmente, coletar a multiplicidade das coisas fabricadas e das nomenclaturas que as acompanham. Ou como ele mesmo dizia, “o material existente na terra dos homens”.Isso, certamente, por considerar as coisas – em especial os objetos ou dejetos do  cotidiano – como o testemunho mais concreto da existência humana, sua memória mais perene.

Com o mesmo afã de completude que moveu Noé e Funes, Bispo buscou inventariar todas as coisas, acreditando que assim poderia manter viva a memória do mundo.  Mas ao contrário do personagem borgiano, não fez de seu inventário um grande e insensato “despejadouro de lixos”.  Procurou, sim,  fazer seus objetos coexistirem em um todo finito e organizado, a partir de uma lógica desconcertante, na qual os códigos reconhecidos de classificação são atravessados por uma maneira particular de captar, como diria Foucault, “por sob as diferenças nomeadas e cotidianamente previstas”, as afinidades subterrâneas entre as coisas, suas “similitudes dispersas”[ix]. Ou mesmo as diferenças invisíveis que, sob semelhanças explícitas, se instalam entre os objetos repetidos de uma série. Isso porque as coleções de Bispo guardam estranhas simetrias, ou simetrias em desequilíbrio, como se pode ver, por exemplo, em uma de suas “vitrines” de chapéus.

Aproximados pelo material de que são feitos e pela sua função utilitária, nove chapéus de palha, atados por fitas, são dispostos em um suporte de madeira, compondo uma bela combinação de cores e tamanhos. A disposição simétrica é, contudo, assaltada por um chapéu impar, que sobra, dando uma impressão de transbordamento dos limites do próprio suporte. Detalhe este que poderia ser aproximado, em certa medida, àquilo que Barthes – em seus estudos sobre a fotografia – chamou de punctum: o elemento de desvio, a pequena picada que vem  fustigar o studium, ou seja, o campo meramente cultural da ordem e da própria ideia de coleção.[x] Em quase todos os trabalhos de Bispo, verificam-se esses pequenos desvios de simetria, sobras e transbordamentos, que evidenciam uma lógica peculiar, que rompe com a obviedade das disposições pretensamente regulares ou reguladoras, aliando-se a uma espécie de investimento afetivo do artista no gesto de selecionar e aproximar os objetos anônimos que coleciona.

Em ensaio sobre o ato de colecionar, Jean Baudrillard diz que todo objeto, ao ser colecionado, deixa de ser definido pela sua função para entrar na ordem da subjetividade do colecionador.[xi] Abstraído de seu contexto, perde sua presentidade, desloca sua temporalidade para a espacialidade de um repertório fixo, no qual a história é substituída pela classificação. Nesse sentido, colecionar se converte em uma forma de enclausurar o objeto, des-historicizá-lo, de maneira que seu contexto seja abolido em favor da lógica sincrônica da coleção.

No caso de Bispo do Rosário, entretanto, isso se dá de forma mais complexa. Seus objetos, mesmo que esvaziados do caráter funcional, ao serem subjetivizados pela posse e pela criatividade do artista, passam a dizer muito mais de seu contexto do que quando ocupavam simplesmente o espaço utilitário de suas funções imediatas. Eles adquirem uma linguagem, convertem-se em metonímias do contexto de que foram tirados.  As coleções de Bispo arrancam o objeto de sua própria inércia, dão-lhe um nome, um lugar e uma história.  Ao mesmo tempo em que se configuram como registros de uma vida marcada pela pobreza, pela loucura e pela exclusão. E nesse sentido, enquanto colecionador, Bispo assume também o papel de instaurar o que Walter Benjamin chamou de “uma relação com as coisas que não põe em destaque o seu valor funcional ou utilitário, a sua serventia, mas que as estuda e as ama como o palco, como o cenário de seu destino”[xii].  Daí que o artista, ao definir seu trabalho como registros de sua passagem pela terra, tenha a ele atribuído também uma função autobiográfica, memorialista.

Sob esse prisma, pode-se dizer que as vassouras, os baldes, os utensílios domésticos, os produtos de limpeza, as latas de óleo, as garrafas de plástico, reunidos em painéis ou vitrines contam tanto a história do mundo do consumo e do descartável, como também a da experiência individual de um ex-empregado doméstico. As séries incontáveis de navios construídos em madeira ou bordados em grandes estandartes dizem-nos do ex-marinheiro. Os nomes das pessoas gravados no manto são aquelas que o artista conheceu. Os cobertores e uniformes dos internos, usados como matéria-prima do Manto da Apresentação e de outros trabalhos de bordado, registram o espaço e o tempo de sua loucura.

À feição de Perec, em Vida modo usar, ele converte cadeiras, armários, cabides, caixas, enfeites, latas e garrafas, dentre inúmeros outros trastes, no registro sólido e inconteste de sua/nossa presença na terra, um antídoto contra o esquecimento. E como se essa suposta garantia não bastasse, ainda fixa em listas os nomes e a descrição de muitos desses objetos.

Sabe-se que o ato de rotular e descrever objetos em listas foi uma das primeiras práticas taxonômicas de que se tem notícia nas civilizações alfabetizadas, figurando como o procedimento mais elementar advindo da influência da escrita nas operações cognitivas. Como explica o antropólogo Jack Goody[xiii], a história documentada dos primeiros séculos das culturas escritas mostra que as listas floresceram enquanto exatamente nesse período, não apenas como formas textuais, mas também como objetos: eram tiras longas feitas de madeira, pedra, argila,  pedaços de pano ou qualquer outro material sólido, nas quais eram gravadas as palavras em série, com diferentes propósitos: desde a simples nomeação das coisas até o levantamento de pessoas, animais, objetos ou eventos. Listas administrativas, funerárias, literárias, religiosas são encontradas em várias culturas primitivas, sendo que algumas delas – como as tábuas sumérias, por exemplo – já funcionam como uma espécie de protodicionários ou enciclopédias embrionárias. Algumas cobriam um vasto campo de observações astronômicas, climáticas, medicinais. Outras, de caráter lúdico ou didático, já consistiam no levantamento de nomes de pessoas ou coisas começados com uma determinada letra do alfabeto.

Bispo constrói várias de suas listas em tiras, faixas, pedaços de pano ou madeira, como que restituindo a essa modalidade taxonômica sua função primeva. Com elas, cria verbetes para as coisas de suas coleções, rotula seus “ready-made”, conduz ao estado de dicionário os nomes que, pacientemente, recolheu ao longo de sua vida. Ato este que poderia ser comparado, em certa medida, ao do cineasta Peter Greenaway, também um aficionado por listas de todos os tipos e formatos, que tem se valido intensamente desse recurso em seus filmes, textos e óperas, mas com propósitos lúdicos e irônicos.

Aliás, não foi à toa que Greenaway,  em seu primeiro contato com a obra de Bispo, em agosto de 1998, quando esteve no Rio de Janeiro para a exibição  da ópera 100 Objetos para Representar o Mundo, reconheceu as afinidades de seu próprio trabalho com o do artista brasileiro. “Ele é mais obsessivo do que eu; a obsessão dele é infinita” [xiv]–  admitiu o cineasta, à medida que percorria o vasto acervo dos trabalhos de Bispo no Museu Nise da Silveira. Chamou-lhe a atenção, especialmente, o uso criativo que Bispo fez das taxonomias, a forma como ele parece “zombar um pouco com a mania dos intelectuais de catalogar tudo, de transformar o mundo em verbetes de enciclopédia”[xv].

Com tal observação, Greenaway não apenas marca a sua cumplicidade oblíqua com a obra do artista brasileiro, como também define o seu próprio gesto catalogador. Um gesto que não se define necessariamente pelo objetivo ilusório de completude, mas pela necessidade crítica de mostrar como os princípios legitimados de organização, sejam alfabéticos, numéricos, estatísticos, cartográficos, tendem a se tornar fins em si mesmos.

 

  1. Bispo do Rosário e Peter Greenaway: afinidades dissonantes

Desde o início dos anos 70, quando realizou seus primeiros pseudodocumentários à luz dos ensinamentos de Borges e Calvino, Greenaway tem se valido ironicamente das taxonomias, conjugando, estrategicamente, as regras de classificação com as leis paródicas da ficção. Vale lembrar que quase todos os seus longas estruturam-se em forma de catálogos narrativos, dentro de um rigoroso princípio de ordenação seriada, de cuja simetria emerge, paradoxalmente, uma lógica desordenadora e muitas vezes absurda. O que se repete, de forma explícita, em seus trabalhos de artes plásticas e, especialmente, os de curadoria, como o que teve como título Some Organising Principles, uma exposição no País de Gales (1993), na qual, através de obras selecionadas, criou uma espécie de história sincrônica da taxonomia, do século XVII à época contemporânea, a partir de um olhar irônico, para não dizer paródico, que acaba por desestabilizar os princípios que estruturam essa mesma história. Em todos esses trabalhos, percebe-se o nítido propósito do cineasta em evidenciar aquilo que Borges já atestara em um de seus famosos ensaios: “notoriamente não há classificação do universo que não seja arbitrária e conjetural”[xvi].

Não seria inconveniente dizer, portanto, que o cineasta britânico busca chegar, pelas vias transversas da ironia, ao que Bispo do Rosário alcançou, de forma espontânea, com a força da imaginação: revelar, através das ordenações taxonômicas, a desordem e a multiplicidade do mundo. E é nesse sentido que ele transforma em projeto o que para Bispo foi uma missão.

Isso pode ser visto, de forma explícita, na já mencionada ópera-instalação, 100 Objetos para representar o Mundo, escrita e codirigida por Greenaway, com música de Jean-Baptiste Barriére. Definido como uma “opera-prop” (prop, em inglês, é um termo do teatro que significa acessórios do contrarregra, adereços), o trabalho é uma paródia da história das duas naves Voyager que, contendo mais de uma centena de imagens e arquivos sonoros, foram enviadas ao espaço pelos norte-americanos, em 1977, com o propósito de mostrar a eventuais extraterrestres a existência da Terra. Como argumenta o próprio Greenaway, é provável que tal material representativo, compactado em um espaço restrito, tenha se limitado às referências culturais da década de 70 e à visão subjetiva de um grupo de “americanos brancos, de classe-média, com formação científica, e talvez com arrogantes ideais democráticos e atitudes paternalistas em relação ao resto do mundo”[xvii].

Com o visível propósito de ironizar tal empreendimento, Greenaway cria a sua própria lista, inventariando um número limitado de objetos (concretos e abstratos) que, em sua opinião, poderia simbolizar e descrever (ironicamente, é claro) a multiplicidade inumerável das realizações do homem e da natureza na terra. Tais objetos, que vão desde o mais prosaico guarda-chuva ou uma coleção de sapatos, até figuras representativas do imaginário cultural do Ocidente, como Adão e Eva,  “A Vênus de Willendorf”, “O chapéu, o casaco e a pasta de Freud”, são recolhidos de temporalidades e culturas diversas (dependendo do país onde a ópera é apresentada, a lista passa a incorporar símbolos locais) e dispostos no espaço serial de um catálogo multimídia, cuja finalidade principal não difere da de outros projetos taxonômicos do artista: desqualificar todo e qualquer esforço humano de representação racional do mundo. Uma lista que atesta não apenas a nossa diversidade, mas também a nossa vulnerabilidade, nossa irrelevância e nossa megalomania, tornando-se, portanto, crítica de si mesma e de sua própria pretensão.

Para a apresentação de tal lista, Greenaway converte o palco em uma espécie de sala de exposição, onde alguns objetos são dispostos segundo a lógica curatorial do diretor. Elementos cinemáticos e teatrais contribuem para o impacto visual do espetáculo, pois à medida que os cem objetos vão sendo apresentados em uma sequência narrativa, uma profusão tecnológica de vozes, luzes, textos e imagens projetadas sobre o palco satura o espaço de signos, apontando para a impossibilidade de se esgotar a pluralidade de referências que circunda culturalmente cada “objeto” apresentado. Um projeto enciclopédico, sem dúvida, que guarda similitudes com certos projetos literários de autores contemporâneos que também fizeram de suas obras verdadeiras enciclopédias ficcionais. Enciclopédia, aqui, entendida não como um conjunto fechado e definitivo, mas como uma totalidade incompleta, conjetural, multíplice. Como é também a obra de Bispo, feita de um saber não legitimado socialmente, fora da ordem canônica da cultura erudita e, portanto, em estado de deslocamento, de novidade e de alteridade radical em relação aos modelos enciclopédicos conhecidos.

Umberto Eco, ao comparar o dicionário à enciclopédia, chama a atenção para o princípio de “semiose ilimitada” que define o modelo enciclopédico. Segundo ele, a enciclopédia, ao contrário do que almejaram os filósofos iluministas, não reflete de modo unívoco e racional um universo ordenado, mas fornece regras, em geral “míopes”, para que, “segundo algum critério provisório de ordem”, se busque dar sentido a um mundo desordenado ou cujos critérios de ordem nos escapam. Nesse sentido, tal modelo destoaria do de dicionário, por excluir definitivamente, segundo Eco, “a possibilidade de hierarquizar de modo único e incontroverso as marcas semânticas, as propriedades, os semas”.[xviii] Em suas palavras:

“O conhecimento enciclopédico seria de natureza desordenada, de formato incontrolável, e praticamente deveria fazer parte do conteúdo enciclopédico de cão tudo o que sabemos e poderemos saber sobre os cães, até a particularidade por que minha irmã possui uma cadela chamada Best – em suma, um saber incontrolável até para Funes, o Memorioso.”[xix]

Como vimos, os objetos apresentados por Bispo em suas coleções são visivelmente enciclopédicos, pois abrangem toda a esfera das matérias a que o homem empresta uma forma. Eles compõem, em conexão com os inúmeros textos, desenhos, mapas, em geral bordados em roupas e estandartes, um mundo desordenado pelas suas próprias regras de organização, através do qual o artista busca dar um sentido à sua própria realidade. É interessante observar ainda o fato de que vários de seus objetos também aparecem na ópera de Greenaway, como os sapatos em série, uma coleção de moedas,  a cadeira-de-rodas, o guarda-chuva, a cama, o barco, a boneca, o lixo, objetos de uso doméstico, além dos mapas, textos e das listas intermináveis de palavras começadas com uma determinada letra do alfabeto. O que confirma, mais uma vez, as imprevistas afinidades entre os dois.

Na interseção entre esses dois artistas que nunca se encontraram, cada um cria uma forma distinta (porque subjetiva e cultural) no ato comum de inventariar o mundo. Se, por um lado, a subjetividade de Greenaway é a da consciência irônica, lapidada pelo exercício diário de uma lucidez que, de tão lúcida, revela sua própria vertigem, por outro, a de Bispo advém de uma cumplicidade visceral com a experiência, com o agora de seu próprio corpo, de sua loucura e de sua realidade. Um faz do rigor um delírio; o outro extrai do delírio o rigor.

Assim, à diferença de Greenaway e de outros autores enciclopédicos como Perec, Borges, Calvino e Pavitch, Bispo não extrai sua matéria-prima do espaço canônico da cultura ocidental, mas da  precariedade material de sua existência cotidiana. Mas à semelhança desses mesmos autores, constrói um antissistema de classificação, que acaba por funcionar como contraponto paródico aos sistemas taxonômicos legitimados pelo logos moderno.

Todos eles mostram, por caminhos diversos ou inversos, que não obstante o gesto de classificar seja um dado presente em todos os tempos e lugares, nenhuma classificação que se quer exaustiva – seja ela regida pelo movimento espontâneo da imaginação ou pelos critérios legitimados pela razão, é realmente satisfatória em si mesma. Isso, por saberem, consciente ou inconscientemente, que a  desordem não deixa de habitar qualquer de nossas tentativas de  apreensão totalizadora do mundo, visto que o paradigma da construção e reconstrução dos mundos míticos, místicos, estéticos e até mesmo científicos, como aponta Félix Guattari,  é sempre o da narratividade delirante[xx].

 

 

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[i] BORGES, 1974, pp. 485-490. As citações que se seguem foram extraídas da tradução em português de Carlos Nejar, em BORGES, 1998, pp. 539-546.

[ii]BORGES, 1998, p.543..

[iii] PLINY, 1991, pp.88-89.

[iv] PEREC, 1991.

[v] PEREC, 1996, p.111.

[vi] Cf. CALVINO, 1990.

[vii] Cf. PAVITCH, 1989.

[viii] ELSNER and CARDINAL, 1987, p. 1.

[ix]  FOUCAULT, 1966, p. 63.

[x] BARTHES, 1994, pp.45-49.

[xi] BAUDRILLARD, 2000, p. 94.

[xii] BENJAMIN, 1987, p. 228.

[xiii] GOODY, 2000, p.74-111.

[xiv] GREENAWAY , 1998,  p. 1-2

[xv] GREENAWAY apud ALMEIDA, 1998,  p. 1-2

[xvi] BORGES, 1970, p. 143

[xvii] GREENAWAY, 1998, p. 34.

[xviii] ECO, 1991, p. 336-337.

[xix] ECO, 1997, p. 192.

[xx] GUATTARI. 1992, p. 99.

 

 

 

 

 

 

Referências Bibliográficas

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BARTHES, Roland. A câmara clara. Trad. Júlio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
BARTHES, Roland. As pranchas da enciclopédia. Novos ensaios críticos. Trad. Heloysa Dantas, 1974.
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BORGES, Jorge Luis. Otras inquisiciones. Buenos Aires: Emecé, 1970
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Obs.: Este ensaio faz parte do livro A memória das coisas – ensaios de literatura, cinema e artes plásticas, de 2004, Editora Lamparina.

 

 

 

 

 

 

Maria Esther Maciel  é professora titular de Teoria da Literatura e Literatura Comparada da UFMG, atualmente é professora colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Teoria e História Literárias na UNICAMP. Publicou, entre outros, os livros Longe, aqui (2020), Literatura e animalidade (2016), O livro dos nomes (2008)  e O livro de Zenóbia (2004). É diretora editorial da revista Olympio – literatura e arte. E-mail: memaciel@gmail.com

 

 

 




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