Por uma literatura negra


“Enegrecer é preciso, viver é performance”: por uma literatura negra

Foto by Fernando Frazão/Agência Brasil

 

1. Introdução

Neste ensaio pretendemos problematizar e elucidar a categoria literatura negra como uma forma de pensar e tensionar a literatura de supremacia branca, autorizada pelo cânone que desmerece e deslegitima a escrita preta. Para que o povo preto se empodere e tenha sua voz ouvida através da narrativa literária, é necessário que ele comece falando a partir de sua corporeidade e faça da literatura uma máquina de guerra contra toda forma de opressão, pois foi essa a prece de Fanon: “Ó meu corpo, faz sempre de mim um homem que questiona!” (FANON, 2020, p.242). Foi animada com esse exercício de sensibilidade e pactuada com a importância de se pensar uma Literatura negra a partir da nossa afro-brasilidade, que a nossa ancestral Conceição Evaristo fez sua Dissertação de Mestrado em 1996, Na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Foi a partir desse lugar que Evaristo pavimentou caminhos e nos permitiu pensar a “nossa” literatura negra, ou seja, foram essas marcas deixadas por ela que nos encorajou enquanto negros a pensar uma crítica negra e romper com a crítica hegemônica.

Dito isso, não basta assumir o lugar da subalternidade na escrita e nem racializá- la. É preciso entrar numa batalha discursiva, criar fissuras no discurso hegemônico e propor novos processos de subjetivação em que o sujeito preto possa ter a sua voz ouvida, legitimada e humanizada. A literatura negra deve se transformar em uma complexa epistemologia em que o povo preto não somente reivindique seu lugar social e político de fala, mas que ele tenha a sua humanidade restaurada e a sua voz coletiva ouvida através da escrita.

Desse modo, o povo preto precisa performar a linguagem, a partir de seu “pretoguês”, como nos ensinou a intelectual Lélia Gonzalez e propor uma política do aquilombamento discursivo, uma vez que a própria língua nos desumaniza e nos retira da humanidade já que essa é branca, cis, imperial e patriarcal. Propor um cânone preto a partir desse processo de enegrecimento implica em criar suas próprias encruzilhadas e para isso é preciso inventar novas fagulhas criativas, pois somente derrubaremos a “casa grande” quando criarmos a nossas próprias ferramentas conceituais e epistemológicas. A encruzilhada aqui deve ser encarada como lugar de luta política, pois é partir dela que a literatura é performada e enegrecida. Encruzilhada é o lugar de fala, de empoderamento e onde os signos da literatura negra se multiplicam ao infinito.

Para essa política do enegrecimento divido esse ensaio em quatro momentos que se entrecruzam. O primeiro momento do ensaio, “Enegrecer a literatura”, tento situar a importância de enegrecer a literatura a partir da intelectual e feminista negra Sueli Carneiro, pois foi ela quem abriu caminhos para darmos esse lugar à escrita preta. O segundo momento, “A escritura da pele”, trago a escrita-corpo do pensador Eduardo Miranda quem forjou e problematizou a categoria epistêmica “corpo-território”. O terceiro momento, “Escritura negra como resistência”, dialogo com a ancestral Conceição Evaristo e a sua política da escrita como escrevivência. Por fim, o último momento, “Enegrecer é preciso, viver é performance”, onde abordo a importância do corpo nessa arte de performar a  escrevivência.

 

2. Enegrecer a literatura

A proposta de enegrecer a literatura é algo que vem me acompanhando a um bom tempo, pois desde que me reconheci como negro senti a necessidade de pensar a poética preta a partir da minha afro brasilidade, da minha ancestralidade. Para isso, compreendi que é necessário performar a minha escrita sem, inclusive, retirar meu corpo e a minha subjetividade. Comecei a pensar que meu corpo precisa ser uma máquina de guerra contra toda forma de opressão e ao mesmo tempo precisava me libertar da norma eurocêntrica, canônica e ocidental. Principalmente quando se trata do campo literário que é hegemônico, de supremacia branca, patriarcal e canônica. “A literatura negra, no contexto brasileiro, é ainda pouco publicada e divulgada. E também tem sido ignorada como objeto de estudo crítico” (EVARISTO, 1996, p.4), evidencia Conceição Evaristo.

Foi Sueli Carneiro que utilizou pela primeira vez o termo enegrecer o feminismo. Essa necessidade de demarcar esse lugar geopolítico é fundamental, pois as mulheres negras a muito tempo vêm reivindicando seus lugares sociais e políticos de fala, uma vez que não se sentiram incluídas e representadas no chamado feminismo hegemônico, o de mulheres brancas. Ou seja, o feminismo de mulheres brancas nunca reconheceu a humanidade das mulheres negras. Essa invisibilidade resultou não somente no apagamento, como no epistemicídio (SANTOS, 2005), ou seja, na morte e apagamento da história e das produções do povo negro.

Ao trazer e elucidar esse lugar que já vinha trilhado e pavimentado pelas mulheres negras que a antecederam, como Lélia Gonzalez, Beatriz Nascimento e outras e antes mesmo do feminismo negro existir enquanto categoria epistemológica nas universidades, as mulheres negras já se movimentavam em várias direções e buscavam as suas humanidades. Categorias epistêmicas que hoje em dia são pensadas nas academias como interseccionalidade, lugar de fala e empoderamento já eram forjadas pelas mulheres do movimento negro, uma vez que a palavra não existia mas elas já pensavam de forma intersecional, já mostraram seu empoderamento feminino e já anunciavam e enunciavam seus lugares sociais e políticos de fala:

Enegrecer o movimento feminista brasileiro significa, concretamente, demarcar e instituir na agenda do movimento de mulheres o peso que a questão racial tem na configuração, por exemplo, das políticas demográficas, na caracterização da questão da violência racial como aspecto determinante das formas de violência sofridas por metade da população feminina do país, que não é branca; introduzir a discussão sobre as doenças étnicas/raciais ou as doenças com maior incidência sobre a população negra como questões fundamentais na formulação de políticas públicas na área da saúde; instituir a crítica aos mecanismos de seleção no mercado de trabalho como a “boa aparência”, que mantém as desigualdades e os privilégios entre as mulheres brancas e negras (CARNEIRO,2019, p.316).

Ora, segundo Sueli Carneiro a importância de enegrecer o feminismo é fundamental para demarcar a agenda das mulheres negras com as suas especificidades e anseios, uma vez que o feminismo de mulheres brancas não conseguiram, em suas lutas, dar a visibilidade que as mulheres negras sempre necessitaram. Para combater o racismo, o eixo nodal de todas as outras opressões, é preciso ser antirracista, ou seja, propor um feminismo antirracista e antissexismo:

Nós, mulheres negras fazemos parte de um contingente de mulheres, provavelmente majoritário, que nunca reconheceram em si mesmas esse mito, por que nunca fomos tratadas como frágeis. Fazemos parte de um contingente de mulheres que trabalharam durante séculos como escravas nas lavouras ou nas ruas, como vendedoras, quituteiras, prostitutas… mulheres que não entenderam nada quando as feministas disseram que as mulheres deveriam ganhar as ruas e trabalhar. Fazemos parte de um contingente de mulheres com identidade de objeto. Ontem, a serviço de frágeis sinhazinhas e de senhores de engenho tarados (CARNEIRO, 2019, p. 314). 

Dito de outro modo, Sueli Carneiro, ao nos fazer refletir sobre a situação da mulher negra na América Latina, denuncia que à mulher negra foi relegado o papel de humanidade, pois foram invisibilizadas e apagadas da sociedade ao terem que trabalhar como doméstica, prostitutas e em lavouras. Trata-se de um contingente de mulheres que se transformou em “objeto”, ou seja, são tidas como o “Outro”. E ao serem tratadas como Outro, são desumanizadas. Vale a pena um rápido recuo no tempo, pois Sueli Carneiro foi profundamente influenciada pelas mulheres que pavimentaram esse caminho e uma delas é Lélia Gonzalez. Lélia é considerada a primeira e maior representante do feminismo negro pois, ao abrir caminhos, pensou gênero, raça e classe de forma interseccional ao denunciar o imperialismo e o europocentrismo. Nessa trilha de Lélia, Sueli Carneiro se fez presente, pois, salienta a pensadora Sueli Carneiro:“Tal como afirma Lélia Gonzalez, o sistema (colonial) não suavizou o trabalho da mulher negra. Encontramo-la nas duas categorias citadas: trabalhadora do eito e mucama” (CARNEIRO, 2019,p.49).

Dito de outra maneira, só é possível hoje pensar e problematizar a literatura preta como categoria epistemológica por que o movimento de mulheres negras e o feminismo negro pavimentou todo um caminho que nos serviu de ponto de partida para hoje enegrecermos também a crítica literária que sempre foi brancocêntrica e canônica. Elas tiveram que enfrentar antes uma batalha discursiva, erguer suas vozes, mostrar o empoderamento da mulher negra e, a partir daí, terem suas vozes ouvidas, legitimadas. Escritoras como Maria Firmina dos Reis, Carolina Maria de Jesus e Conceição Evaristo enfrentaram vários obstáculos numa sociedade patriarcal e em uma academia de supremacia branca que sempre bestializou a escrita preta e ao fazer isso, retirou o povo preto de qualquer possibilidade de fazer parte da ratio ocidental.

Por fim, a partir dessas escritoras, tivemos não somente o processo de enegrecimento da literatura legitimado, como tivemos a oportunidade de nos libertarmos, escrevendo a partir de nossa pele, pois o corpo negro é sempre político. Tivemos a partir dessas escritoras negras o acontecimento de uma nova ética e uma nova estética da existência preta.

 

3. Escritura da pele

Pensar a escritura da pele como processo de enegrecimento da Literatura é um ato corajoso e desafiador, principalmente quando tentamos tensionar esse campo da Literatura que é hegemônico, branco, heterossexual, cis e patriarcal. Portanto, é impossível fazer crítica ou pensar a Literatura pelo viés decolonial sem me posicionar enquanto sujeito, sem trazer o meu corpo e, junto com ele, os marcadores sociais. Na escritura da pele faz-se eclodir o sujeito preto. É nessa escritura de si que ele se liberta dos traumas e de toda violência colonial que ainda sangra em sua ferida aberta:

Ao se falar de um sujeito na literatura negra, não estamos falando de um sujeito particular, de um sujeito construído segundo uma visão romântico-burguesa, mas de um sujeito que está abraçado no coletivo. O sujeito contido na literatura negra tem a sua existência marcada por sua relação, por sua cumplicidade com outros sujeitos. Temos um sujeito que, ao falar de si, fala dos outros e, ao falar dos outros, fala de si (EVARISTO, 1996, p.43).

No entanto, o sujeito da literatura negra é coletivo, pois abraça a coletividade. Por isso seu corpo é político, pois está implicado numa complexa relação com seus ancestrais. Nesse sentido, quando fala de si, ele fala dos outros e quando fala dos outros, de certo modo, fala de si mesmo. Nosso corpo individual está em simbiose, implicado no corpo coletivo. Por isso é impossível falar essa encruzilhada literária sem chamar o intelectual que convida-nos a mudar de pele a partir de seu corpo-território (MIRANDA, 2020). É nessa seara que ensina a nossa ancestral Neusa Santos:

O corpo do ser falante é um corpo afetado pelas palavras, é um corpo que desobedece à lógica cartesiana, é um corpo necessariamente vinculado ao pensamento. E nessa condição o corpo se faz enigma, o corpo interroga a psicanálise (SOUZA, 2021, p. 157).

Impossível pensar na e pela encruzilhada sem trazer a minha experiência subjetiva enquanto corpo, preto, macumbeiro e gay. Ou seja, pensar e pesquisar somente tem sentido, segundo Eduardo Miranda, se for “com o corpo todo”. Nesse sentido é que entro com todo o meu corpo nessa escritura das margens, que se declara macumbeira (SIMAS, 2018) para enegrecer a literatura. Acrescenta-nos Conceição Evaristo:

Pela memória da pele escreve-se o elogio de um corpo crepuscular, onde a ausência de luz a noite, surge sem ameaças, oferecendo uma visão de um olhar não maniqueísta, onde a brancura, a luz, é sempre proposta como um signo do bem, e a negrura, a escuridão, como um signo do mal (EVARISTO, 1996, p. 90).

Esse processo de enegrecimento somente será possível se nos colocarmos enquanto corpo-preto e desestabilizar essa gramática eurocentrada, cis, patriarcal e branca. Portanto, a escritura precisa ser de dentro, a partir de nossa memória-corpo ancestral. Pensar a literatura preta a partir do corpo significa um convite a mudar de pele e propor rachaduras decoloniais, a partir de políticas da transgressão na educação. No entanto, tendo a sua potente escrita que nos transporta e nos transforma diante da complexidade do arco-íris da diversidade em sua obra Corpo-território & educação decolonial: proposições afro-brasileiras na invenção da docência, o intelectual Eduardo Miranda salienta-nos:

Com o meu corpo-território perfilado pelas contribuições de filosofias de Oxumarê vou construindo em devir, em contato com outros corpos, potências afetivas responsáveis por ressignificar os meus olhares sobre o mundo (MIRANDA, 2020, p.53).

Desse modo, na trilha de Oxumarê, esse remédio que também é veneno vou me transfigurando e mudando de pele na medida em que a escrita me faz pensar a mim mesmo enquanto corpo-narrativa. Sendo filho de Oxosse, tento relançar a flecha contra esse tempo que nos bestializou, nos desautorizou e nos desumanizou. Após ser afetado por esse corpo-território (MIRANDA, 2020) que bebe do axé, da força de Oxumarê, é que proponho aqui tensionar a crítica literária canônica e pensar novos processos de subjetivação a partir da escrita encarnada, corporificada, pois ter uma atitude decolonial significa se colocar enquanto corpo na escrita, pois o que Eduardo Miranda nos ensina é pesquisar, pensar e problematizar o mundo a partir de todo um tecido da sociopoética e das dobras da pele de nós mesmos: “O corpo pode ser levado consigo todas as experiências com as quais ele cruza/constrói diariamente, e como o corpo é o próprio ser humano, a sua dinamicidade oportuniza mutações subjetivas” (MIRANDA, 2020, p.72).

Desse modo, ao descolonizar a crítica, experimentaremos a rebeldia da escrita e a partir de um tom marcado pelo corpo que fala a partir de um lugar marginalizado propõe um lugar de fala (Ribeiro, 2019) a partir da encruzilhada onde a narrativa da margem inscrita no corpo possa se legitimar numa academia que ainda é branca, eurocêntrica, racista, cartesiana e normativa. Diz em sua poética Conceição Evaristo:

Na escuridão da noite
meu corpo igual
bóia lágrimas, oceânico,
crivando buscas
cravando sonhos
aquilombando esperanças
na escuridão da noite. (EVARISTO, 2021, p.15).

Ora, as sábias palavras de Conceição Evaristo nos animam a cravar sonhos e a nos reinventarmos, aquilombando esperanças e [r]existências para enfrentarmos a escuridão da noite colonial. Desse modo, ampliamos o conceito de corpo para além das discursividades, pois meu corpo é atravessado pela narrativa e essa, ao saltar em minhas dobras, transforma-se em obra de arte. Ampliamos o conceito de narrativa que transborda sangue e, como uma escrita canibal, cozinha o discurso autorizado e logo depois o devora antropofagicamente.

A escrita transforma-se em um ritual canibal. Isso por que a minha escrita não se separa da minha subjetividade. Mais que isso, a escrita é o meu corpo, pois não escrevo de uma torre que me separa da vida. Mas escrevo do redemoinho da minha própria vida. Já ensinou-nos o pensador Abdias do Nascimento (2017) ao dizer que sua escrita “não está interessada no exercício de uma ginástica teórica, imparcial e descomprometida”, ou seja, ela somente passa a ter valor quando comprometida em ser parte da matéria investigada. Nesse caso, a Literatura é uma encruzilhada por cruzar com a minha própria vida, com a do meu povo, meus ancestrais e meus processos de subjetivação. É um bando que fala, pensa e age na encruza e potencializa novos caminhos:

É, ao escrever o corpo, que marcadamente se realiza a alta rotatividade dos signos negros. Os mesmos signos que isolam, que provocam, o exílio na pele, são os que escrevem a plenitude dessa mesma pele, e constroem uma apologia étnica. (EVARISTO, 1996, p.87).

Quem habita na encruzilhada poética não anda nunca sozinho, pois somos povoados por toda uma ancestralidade que habita a nossa existência e que tenta, de certo modo, romper com a tradição de silêncio. Para isso, ensaio aqui trazer as vozes dos irmãos e irmãs gays, bixas pretas, afeminadas, travestis e transexuais, as “condenadas da terra”, habitantes do “entre lugar”, os nômades e as forasteiras. Esse encontro acontece na encruza da ancestralidade pois é nela que fortalecemos nosso corpo-território. Acrescenta-nos Eduardo Miranda:

A potência da ancestralidade pode levar o indivíduo a fortalecer o forjar o corpo-território decolonial, ao passo que descamar as epistemologias eurocêntricas para abrir espaços para as epistemologias advindas da ancestralidade é um encontro com a memória do seu povo, dos mais velhos, isso para quem se coloca no lugar de pertencimento com as populações negras (MIRANDA, 2020, p. 166).

Diante disso, é impossível, segundo Eduardo Miranda, pensar o corpo-território a partir de um olhar decolonial sem trazer a epistemologia do povo preto advinda da sua ancestralidade, pois o corpo somente pode ser pensado e tematizado conectado com a memória de seu povo. Trazer essas vozes das margens e transformá-las em poéticas da diferença é a forma mais legítima de confirmar o que Conceição Evaristo disse “A gente combinamos de não morrer” (EVARISTO, 2016, p.99).

Nas palavras da ancestral poetisa Conceição Evaristo combinamos de não morrer, por que sim combinaram de nos matar, uma vez que o colonialismo além de nos apagar enquanto sujeitos subalternos, apaga a nossa memória ancestral enquanto povo preto, invalida e deslegitima os nossos saberes, pois a tradição letrada é canônica e branca, isto é, o regime de autorização discursiva da crítica que se construiu é branca e europeia. A Literatura é o lugar vivo da resistência e da reinvenção do povo preto. Por isso precisamos mudar de pele a própria narrativa branca e autorizada que está em nós para que possamos ser senhores de nossas vozes e termos a nossa humanidade e nossa dignidade restituída.

Dito de outro modo, nossas estórias, nossas dores, nossos mitos e nossas memórias foram apagadas e ficamos silenciados, pois a nossa história foi contada por mãos brancas. Trazer essas experiências é fundamental, uma vez que, como já nos ensinava Eduardo Miranda: “Discorrer sobre a categoria corpo-território requer um compromisso pessoal em viver e comprovar a minha realidade a referida perspectiva” (MIRANDA, 2020, p. 39). Ou seja, trazer o corpo para narrativa implica em nos mostrarmos enquanto sujeitos e mostrar nosso compromisso pessoal com a vida coletiva. Por isso, a nossa macumba poética precisa ser encarnada, corporificada para fazermos da escrita-corpo nosso lugar de luta, de batalha discursiva e revolucionário. “O corpo, suporte de saberes e memórias, é também terreiro. O corpo é também o espaço/tempo onde o saber é praticado” (SIMAS, 2018, p.53).

Por fim, é no corpo, como salienta Luiz Simas, que guardamos os saberes, memórias, reinventamos a vida e o cotidiano, pois são corpos atravessados nas encruzilhadas transatlânticas. Esse corpo que foi objetificado, bestializado e desumanizado e matado pelo Colonialismo. Por isso precisamos inventar novas fagulhas criativas, criar novas imagens, ressignificá-las e cortá-las a partir de navalhas criativas operadas na e pela linguagem literária.

Para isso precisamos criar uma escrita encorajada a mudar de pele, a provocar rachaduras na linguagem e no discurso e que esteja aberta à dinamicidade e à plasticidade, ou como lembrou Eduardo Miranda, que esteja disposto a escrever,  “com o corpo todo”. Para isso, como uma navalha, a escrita precisa cortar, sangrar.

 

4. Literatura negra como escrevivência

Ora, a categoria “literatura negra” foi, no nosso universo literário e crítico pensada e desdobrada  epistemologicamente por Conceição Evaristo e vale a pena situar:

A literatura negra é um lugar da memória. E transporta para dentro de si uma memória, que pode ser lida em cada negro, querendo ele ou não, tendo consciência disto ou não. Um judeu pode esconder sua origem. Um negro não. Sua origem é guardada e memorizada em seu rosto, em seu corpo, em sua cor, que, mesmo miscigenada, com uma pigmentação de mais ou menos melanina, é denunciada ao sol (EVARISTO, 1996, p.23).

Em outras palavras, é importante salientar, que Conceição Evaristo ao elucidar a memória como potência da literatura negra, reforça que, mesmo sem ter consciência, no corpo  guardamos toda memória ancestral. Seu corpo, como possibilidade de leitura, não pode ser separada de sua memória. Pelo corpo e através dele, o negro é capaz de narrar suas escrevivências no mundo. Desse modo, a escrevivência transforma-se em um potente conceito  ou operador epistemológico para que o povo preto se localiza geopoliticamente no pensamento e na cultura.

Em Olhos d’água Conceição Evaristo relembra: “Eu aqui escrevo e relembro um verso que li um dia”. “Escrever é uma maneira de sangrar. Acrescento: e de muito sangrar, muito e muito”  (EVARISTO, 2016, p.109). Ou seja, escrever sangra por que dói, por que o povo negro precisa lidar com a ferida aberta, como uma “febre incontrolável”. Por isso diz a feminista Glória Anzaldúa: “Escrever é perigoso porque temos medo do que a escrita revela: os medos, a raiva, as forças de uma mulher sob pressão tripla ou quádrupla. (ANZALDUA, 2021, p.54). Ou seja, os povos oprimidos, sobretudo as mulheres negras precisam lidar com suas dores e opressões, com a violência, com os traumas do mundo que pesam sob seus ombros. A Literatura deve sangrar, cortar para denunciar e propor políticas da [r]existência e de humanização.

Ao fazer da escrita seu lugar de grito e resistência Megg Rayara, a primeira travesti a se transformar em Doutora em um país que mais mata travestis e transexuais é motivo não somente de comemorar, como ela mesma diz, mas de alertar, de denunciar esse país genocida e legbtfóbico. A travesti preta Megg Rayara marcou em nossa pele ao dizer “A navalha mais afiada contra a transfobia é o conhecimento”. É com essa navalha que pretendemos cortar toda forma de opressão e fazer sangrar na escrita e expurgar toda forma de opressão que nos impossibilita de libertar a própria vida. É para insistir nessa navalha literária como máquina de guerra contra toda forma de opressão e segregação que escrevemos, existimos e resistimos.

A Literatura negra transforma no lugar transgressor na medida em que dialoga com as margens e desloca o saber autorizado. Ela se potencializa na medida em que borra o discurso hegemônico e fala dos saberes cruzados, onde possamos cruzar com narrativas, mitos africanos e chamar toda encruzilhada literária para a conversa e fazer da Literatura uma conversa infinita, uma máquina de guerra contra toda forma de opressão. Poesia, Filosofia e Narrativa formam uma simbiose com a escrita encarnada, prenhe de vida, de afetos, uma vez que deixamos de ser artistas e nos transformamos em obra de arte.

A literatura negra, ao atualizar a sua escritura, procura assumir o seu corpus negro através da linguagem, símbolos, memórias, interpretação do mundo, em síntese, através de uma cosmogonia própria, negra, conflitante com a visão branca sobre o negro (EVARISTO, 1996, p. 41).

Nosso corpo é porta-voz da narrativa e performa nossa ancestralidade. A Literatura negra é da encruzilhada, rompe com o silenciamento e fala a partir de sua experiência encarnada, do vivido. Chamo o bando marginalizado pelo ocidente: os negros, as travestis, os gays, os afeminados, as anunciadoras do fim do mundo como a Jota Mombaça, as feministas negras como Bell Hooks (2019), Conceição Evaristo (2019), Sueli Carneiro (2019), a poeta Audre Lorde (2019) que encontrou na raiva a forma mais potente de responder ao racismo. Com todas elas fiz da escrita um “ebó” literário e amarrei na encruzilhada da palavra.

Questiona Rayara:

Por que o Movimento Social de negras e Negros não me abraça? Por que não me ouve mesmo quando eu grito? Por que o Movimento social de Negras e Negros continua ignorando de forma sistemática a situação de exclusão e violência que incide sobre as existenciais de travestis e mulheres transexuais negras? A resposta se anuncia, mas não pode ser tomada como algo preciso. (GOMES DE OLIVEIRA, 2018, p.168).

Nesse sentido, Megg Rayara contesta e reivindica esse lugar social e político de existência não somente no movimento negro e feminista, mas no movimento da própria vida. Se ignoramos e não abraçamos as sujeitas e sujeitas mais vulneráveis, nós mesmos nos desumanizamos, pois somo incapazes de restituir a humanidade que as margens das margens precisam. O discurso se sempre teve autorização e legitimidade foi do homem hétero cis e patriarcal. É hora de voltarmos para nós mesmos e nossos modos de vida pois a Europa, assumiu desde sempre as rédeas do mundo e se legitimou como humanidade que não nos cabe:

A Europa assumiu a direção do mundo com ardor, cinismo e violência. E vejam, como a sombra dos seus monumentos se estende e se multiplica. (….) A Europa se recusou a toda humanidade, a toda modéstia, mas também a toda solicitude, a toda ternura. (FANON, 2005, p.361).

 Nesse sentido, descolonizar e deseuropeizar o pensamento significa pensar a partir das margens e propor um novo projeto de humanidade. Junto com esse projeto, nós gays, bixas, mulheres negras, trans e travestis precisamos nos incluir para que possamos pensar uma sociedade de fato justa. Precisamos erguer a nossa voz (HOOKS, 2019).

No entanto, enegrecer e aquilombar a literatura significa criarmos condição e possibilidade para falarmos a partir de nós mesmos, da nossa experiência enquanto corpo e subjetividades no mundo da vida. Não podemos, segundo ele, separar o que pensamos do que somos, pois somente da nossa própria experiência que podemos extrair os sulcos do pensamento e da vida. Temos sempre que considerar o nosso corpo como parte da nossa matéria a ser investigada, ou seja, não se conhece o mundo e nada nesse mundo sem passar pelo nosso corpo, pois é o meu corpo a própria narrativa de si mesma. É através dele que performamos nossos múltiplas subjetividades no mundo.

Por isso, mais do que nunca, devemos fazer da escrita a testemunha da nossa vida e da nossa escrita, a performance de nós mesmos. Enegrecer é preciso, viver é performance. O que isso quer dizer, será nossa próxima travessia.

 

5. Enegrecer é preciso, viver é performance

Essa expressão “Enegrecer é preciso, viver é performance” é uma rápida alusão que fazemos ao poeta português Fernando Pessoa com a sua famosa e imortal expressão “Navegar é preciso, viver não é preciso”. Para dar um charme a essa escrita, fizemos essa paródia para tensionarmos o discurso brancocêntrico e empoderamos a escrita preta. Esse esforço exige, de todos nós, retirarmos a pele branca e fazer eclodir na escrita a nossa pele negra.

Em seu clássico Pele negra, máscaras brancas Frantz Fanon nos ensinou a famosa prece: “Oh, meu corpo, faça sempre de mim um homem que questiona!”. Ele trouxe o corpo negro para a cena e ao fazer isso, mostrou a importância de nós negros fazermos do corpo nossa linha de fuga ou máquina de guerra contra toda foma de opressão e desumanização. Temos que questionar e problematizar a nós mesmos pois temos um corpo que resiste a toda forma de opressão. É pelo corpo que me comunico no mundo, escrevo meu mundo e digo o mundo. Pleo corpo narra o vivido e vive o narrado. Meu corpo é o narrador e o emissor de potentes signos.

É a partir desse olhar sensível a Fanon e à decolonialidade que o sociólogo Joaze Bernardino (2016) esmiúça essa ideia sobre  “A Prece de Frantz Fanon, pois segundo ele, não tem como pensar o corpo sem localizá-lo e ao mesmo tempo, nas trilhas de Fanon, pensa um novo projeto político e humanista. Ao situar o racismo como uma das principais características da sociedade colonial, entendo este como uma sociedade que hierarquiza, segrega e divide entre uma linha abissal que é inferior e superior, humano e não humano,  ele traz essa zona estéril de Fanon que ele chama de “zona do não-ser” e traz, com isso, alguns dilemas entre “visibilidade” e “invisibilidade”.

O corpo é visto, vê e é reconhecido corretamente ou não. O corpo é objeto do olhar estereotipado. É pelo olhar branco que ó negro é esvaziado de resistência ontológica e remetido à zona do não-ser. Pelo processo de epidermização da inferioridade, o negro procura embranquecer. Por outro lado, este mesmo corpo pode ser uma agência de resistência e elaboração do conhecimento ao assumir a sua visibilidade. Diferentemente da lógica da branquidade que não assume sua marca racial e, portanto, apresenta-se como universal, o corpo negro, como parte de um projeto de liberação, assume a sua localização dentro do mundo ocidental (BERNARDINO, 2016, p.514).

Ao trazer o olhar racista do branco diante do negro Fanon diz: “Mamãe, olhe o preto, estou com medo! Medo! Medo! […] lancei sobre mim um olhar objetivo, descobri minha negridão” (FANON, 2020, p.105). A partir desse olhar, dessa experiência que Fanon tem em relação à criança branca no colo da mãe ele tem a s sua experiência estilhaçada e cai em si acerca de sua “negridão”. Ao encarar essa situação, percebemos que o corpo-narrativa de Fanon dizia algo naquele instante e se revelava sob o signo do medo. É nesse sentido que diz Joaze:

Basta o olhar de uma criança para fixar e objetificar o negro, inclusive o próprio Fanon. A corporalidade marca o negro. Estereótipos são ligados ao negro. Do ponto de vista racista, o corpo negro está preso à natureza, aos instintos selvagens, à sexualidade. Um negro é uma ameaça em potencial, daí o medo da criança. A invenção do negro como um ser inferior reduz ao silêncio, à não-existência, a nada (BERNARDINO, 2016, p.512).

Pensar uma narrativa-corpo significa criar a possibilidade de pensar uma narrativa encarnada, visceral. É assumir uma escrita preta e enegrecer a literatura a partir da encruzilhada de saberes subalternos. Assumir que a Literatura negra é uma encruzilhada significa assumi-la como agenciamento político e discursivo que se inscreve na memória da pele. Diz Evaristo: “O corpo é o primeiro sinal visível do negro enquanto negro. Esta exteriorização inconfundível do corpo negro encontra delimitação no espaço, devido a uma diferença étnica concreta (EVARISTO, 1996, p.86). Dito de outro modo, quando saio à rua é o meu corpo o primeiro texto, o que narra a minha performance no mundo e ao mesmo tempo a minha cor me localiza em um lugar de subalternização, inferiorização. É, a um só tempo, ameaça, pois causa medo e desejo ao reportar à animalização ao hipersexualizarem nossos corpos.

É animada com esse exercício de sabedoria e pactuada com a ideia de afro-brasilidade e propor uma poética da escrevivência como emancipação do povo preto que  Conceição Evaristo faz uma espécie de elogio à narrativa-corpo pois para ela existe uma memória da pele que se revela na escrevivência:

O corpo negro vai se alforriando através da palavra poética que procura imprimir, que procura dar outras lembranças às cicatrizes das marcas chicotes ou as iniciais dos donos-colonos de um corpo escravo (EVARISTO, 1996, p.86).

Ao dar um novo contorno a poética preta, Evaristo traz a potência do corpo-narrativa como encruzilhada da nossa memória e faz dela uma complexa categoria epistêmica onde nós negros, gays e subalternizados assumimos nosso lugar de fala (RIBEIRO, 2019). Mais que isso, é o lugar da inventividade, do novo. É o espaço do acontecimento. A noção de narrativa aqui não é a que se representou ao longo de uma tradição ocidental, mascada por uma poiseis, mimésis, ou alegoria. A narrativa aqui deve ser compreendida como uma micropolítica do desejo que une, a um só tempo, a territorialização, desterritorialização e reterritorialização. É pelo corpo e no corpo que gritamos, lutamos e resistimos:

Escrever o corpo com seus mistérios, potências e impotências, corpo esse que se tornou o “lugar do invisível” por meio da iniciação, é conservar a lembrança de um ancestral cultura, em que o jovem, ao passar pelo seu o primeiro ritual iniciático, aprende a tratar do corpo, que é visto com o mundo em escala menor (EVARISTO, 1996, 87).

É uma narrativa do caos que desestabiliza o cânone e contraria os logos, branco e normativo. Mais que isso: é uma poética da existência e da resistência negra e gay. É a poética da encruzilhada que desafia os limites, que provoca o desconforto, o deslizamento, o entre lugar, o deslocamento, o trânsito. É uma poética da margem que desafia toda e qualquer visão eurocêntrica e normativa.

Foi a partir dessa sensibilidade ancestral que a pensadora Neusa Santos advertiu-nos:

O segundo traço da violência racista, não duvidamos, é o de estabelecer, por meio do preconceito de cor, uma relação persecutória entre o sujeito negro e seu corpo. O corpo ou a imagem corporal eroticamente investida é um dos componentes fundamentais na construção da identidade do indivíduo. A identidade do sujeito depende, em grande medida, da relação que ele cria com o corpo. A imagem ou enunciado identificatório que o sujeito tem de si está baseado na experiência de dor, prazer ou desprazer que o corpo obriga-lhe a sentir e a pensar (SOUZA, 2021,p. 30).

Ou seja, a nossa identidade só é pensada e construída por termos um corpo que é, por sua vez, marcado e subalternizado. Por isso, precisamos buscar na nossa ancestralidade a nossa história  através dos mitos e da nossa  memória-corpo  para podermos aprender a contar a nossa história, pois a mesma foi contada pela branquidade. Foi o que a ancestral Beatriz Nascimento chamou atenção:

Não podemos aceitar que a história do negro no Brasil, presentemente, seja entendida apenas através dos estudos etnográficos, sociológicos. Devemos fazer a nossa história, buscando nós mesmos, jogando nosso inconsciente, nossas frustrações, nossos complexos, estudando-os, não os negando. Só assim poderemos nos entender e nos fazermos aceitar como somos, antes de mais nada, pretos, brasileiros, sem sermos confundidos com os americanos ou africanos, pois  nossa história é outra, como é outra nossa problemática. Num país onde o conceito de raça está fundado na cor, quando um branco diz que é mais preto do que você, trata-se de manifestação racista bastante sofisticada e também bastante destruidora em termos individuais (NASCIMENTO, 2021,p. 45-6).

Assim, Beatriz Nascimento chama a atenção para a importância de valorizarmos a nossa história e que devemos fazer e nossa história e recontá-la uma vez que ela foi contada pela branquidade que por sua vez nos invisibilizou por completo de nossa própria história.

 

6. Considerações finais

Propus aqui uma reflexão acerca literatura preta enquanto corpo, a partir da escrita de mulheres negras e sujeitos, invisibilizados e subalternizados. Como sabemos, a crítica literária ainda vive a serviço do cânone branco, heterossexual, cis e patriarcal.

Ao trazer discussões em primeira pessoa que envolvem uma experiência encarnada ou corporificada, chamo a atenção para repensarmos a literatura negra como encruzilhada política, ética e estética a partir de novos modos de subjetivação. Chamo atenção para fazer um novo giro no pensamento para que as vozes pretas saem do silenciamento e tenham suas vozes ouvidas através das narrativas e dos lugares geopolíticos de existência. Ensinou-nos a nossa ancestral Conceição Evaristo:

Quando falamos de literatura negra não estamos fazendo uma mera referência étnica, mas, antes de tudo a um conceito mais abrangente, a uma implicação mais profunda, que é a de ser, a de se situar conscientemente negro na escritura (EVARISTO, 1996, p.41).

Enquanto negro e gay e militante trago a escrita que invade meu corpo e que questiona o mundo a partir dele, pois foi ele deixado de lado por toda uma existência. A nossa memória e a de todo povo preto foi bestializado e apagaram com isso a nossa memória, nossas encruzilhadas de saberes e nos violentaram a partir da colonialidade do poder/saber. Hoje trago aqui reflexões acerca da minha memória-corpo, dos vários tipos de racismos que sofremos na sociedade branca e patriarcal. Chamo atenção do irmão preto para que passamos pensar a nossa condição de desumanos e invisíveis uns com os outros e o projeto colonial de nos separar e nos segregar cada vez mais. Chamo a atenção, por fim, para sermos protagonistas do discurso: “A literatura negra tem o negro como protagonista do discurso e protagonista no discurso” (EVARISTO, 1996, p.43).

Para enfrentarmos o racismo e a abjeção que temos uns pelos outros é necessário que tenhamos uma consciência preta diante de nós mesmos. Somente tendo a consciência de todo esse projeto da colonialidade de poder que teremos um despertar para a consciência preta. Tal consciência somente teremos quando sairmos da grande noite colonial, rompermos com os silêncios que carregamos em nossas dobras, nossos corpos e nos amarmos enquanto homens pretos. Salienta Achille Mbembe apoiado em Franz Fanon:

Sair da grande noite anterior à vida exigia uma atitude consciente de “provincialização da Europa”. Era preciso, dizia Fanon, dar as costas a essa Europa que “não para de falar do ser humano ao mesmo tempo em que o massacra sempre que o encontra, em todos os cantos de suas próprias ruas, em todos os cantos do mundo (MBEMBE, 2019,p.19).

Para isso, precisamos ter a coragem de olharmos para esse passado que nos atormenta e nos mata todos os dias. Precisamos nos libertar de nós mesmos, nos acolher em nós, para acolher nosso irmão. Dito de ouro modo, precisamos de coragem para nos encontrarmos lá naquela encruzilhada para podermos falar abertamente, concretamente e termos esse verbo devoluto Exu como nosso grande mediador, pois Exu é nosso corpo, nossa resistência, a nossa memória, a nossa criatividade, a nossa alegria, a nossa afro-brasilidade e o grande pensador que nos ensinou que a literatura negra é nossa e ela habita a encruzilhada e é nela que podemos e devemos começar a contar a nossa história. Axé! Saravá, Conceição Evaristo, a nossa maior afro-brasilidade, a nossa ancestral que soube dar o lugar correto à nossa literatura negra brasileira.

 

 

 

 

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Referências

 

ANZALDÚA, Glória. A vulva é uma ferida aberta & outros ensaios. Tradução Tatiana Nascimento. A Bolha Editora, 2021.

BERNARDINO-COSTA. Joaze. A prece de Frantz Fanon: oh, meu corpo, faça sempre de mim um homem que questiona!. Civitas, Porto Alegre, v. 16.n.3, 2016

CARNEIRO, Sueli. Enegrecendo o feminismo. In: Escritos de uma vida. Prefácio: Conceição Evaristo, Apresentação Djamila Ribeiro. São Paulo: Pólen Livros, 2019.

EVARISTO, Conceição. Literatura negra: uma poética de nossa afro-brasilidade. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro, 1996.

EVARISTO, Conceição. Poemas de recordação e outros movimentos. Rio de Janeiro: Malê, 2021.

EVARISTO, Conceição. Olhos d’água. Rio de Janeiro: Pallas Fundação Biblioteca Nacional, 2016.

FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas; traduzido por Sebastião Nascimento e colaboração de Raquel Camargo. São Paulo: Ubu Editora, 2020.

FANON, Frantz. Os Condenados da Terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.

GOMES DE OLIVEIRA. O diabo em forma de gente: (r)existências de gays afeminados, viados e bichas pretas na educação. Salvador-BA-Editora Devires, 2020.

GOMES DE OLIVEIRA. Por que você não me abraça? V. 15. SUR: Revista Internacional de Direitos Humanos. Vozes, 2018.

hooks, bell. Erguer a voz: pensar como feminista, pensar como negra; tradução de Cátia Bocaiuva Maringolo. São Paulo: Elefante, 2019.

LORDE, Audre. Irmã Outsider. Tradução de Stephanie Borges. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019.

MBEMBE, Achille. Sair da grande noite: ensaio sobre a África descolonizada; tradução de Fábio Ribeiro. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes,2019.

MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte; traduzido por Renata Santini. São Paulo: n-1 edições, 2018.

MIRANDA, O. Eduardo. Corpo-território & Educação Decolonial: proposições afro-brasileiras na invenção da docência. Bahia: EDUFBA, 2020.

NASCIMENTO, Abdias do. O Genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. São Paulo: Perspectiva, 2017.

NASCIMENTO, Beatriz. Uma história feita por mãos negras; Relações raciais, quilombolas e movimentos; organização de Alex Ratts. Rio de Janeiro: Zahar, 2021.

RIBEIRO, Djamila. Lugar de fala. São Paulo: Sueli Carneiro: Pólen, 2019.

SIMAS, Luiz Antônio. Fogo no mato: a ciência encantada das macumbas. Rio de Janeiro: Mórula, 2018.

SOUZA, Santos Neusa. Tornar-se negro: as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social.  Rio de Janeiro: Zahar, 2021.

 

 

 

 

 

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Paulo Petronílio é escritor, professor e pesquisador. Pós-doutor em Teoria Literária e Performances Culturais. Doutor pela UFRGS. Pesquisa a representação na literatura contemporânea, literatura preta, afro-diaspórica e suas encruzilhadas literárias, estudos étnicos-raciais na narrativa, a escrita de si como narrativa, subalternidade, e teoria queer. Autor de “Performances na encruzilhada: estética e aprendizagem no candomblé”, entre tantos artigos e ensaios. E-mail: ppetronilio@uol.com.br




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