Um poeta secreto


 

No ano em que teria completado 91 anos, o poeta Max Martins continua a ser um nome que circula entre um público seleto e secreto. Contudo, sua poesia atingiu um ponto em que poucos conseguiram chegar.

Em Belém do Pará, ao longo do século XX e até hoje, a circulação da cultura que aí se produziu e produz foi sempre precária, pautando-se pela inexistência, só escassas iniciativas institucionais. No caso da poesia, não havia editoras, tudo se passava entre o eixo Rio-São Paulo. Max Martins enfrentou essa vicissitude, e passou a publicar em edições próprias, mas procurando manter uma qualidade digna da sua produção. Isso provocou a independência editorial em relação às editoras do sul, mas enclausurou a sua poesia no nicho regional, dificultando a circulação nacional. Malhas que o império tece

Com efeito, a produção literária do Norte do Brasil ainda é pouco conhecida, e um dos mais importantes romancistas, Dalcídio Jurandir (autor da magnífica série Extremo Norte, que chegou a receber o grande prêmio pela obra da Academia Brasileira de Letras, em 1979), até hoje não recebeu a merecida edição. Mas a literatura surgida aí persistiu, e gerou diamantes ocultos. Se o país só nos últimos tempos descobriu o exotismo da gastronomia e a música daquela região, não surpreende que a poesia de Max Martins seja uma pérola conhecida por poucos.

Ele fazia parte de uma plêiade que incluía Mário Faustino (que não era paraense, mas viveu desde jovem na capital até sua mudança para o Rio de Janeiro), o ensaísta e filósofo Benedito Nunes, e o romancista Haroldo Maranhão, para citar aqueles que suplantaram as fronteiras amazônicas e obtiveram reconhecimento nacional.

Coube a estes jovens a ousadia de organizarem suplementos literários, e agitarem a paisagem letárgica da capital nortista, durante os anos 40/50. Mesmo longe dos centros, estavam atentos ao que se passava no resto do país, além de demonstrarem o domínio criativo, cada um em seu espaço. Max foi o único que permaneceu na penumbra, mas não parou de escrever, e era unanimemente admirado. Ele herdou uma tradição e moldou-a conforme sua personalidade estética. Soube adaptar e renovar a herança cultural, fortalecendo-a com a riqueza imagética e temática da sua obra.

Sua dedicação à poesia superou cronologias, estilos, modismos, sem jamais se acomodar em sua expressividade. Ele escrevia para além de si, projetando sua ressonância num espaço intemporal, como todo grande poeta é capaz de fazer.

Nascido em 1926, estreou com O Estranho (1952), seguiram-se, Anti-Retrato (1960), H’era (1971), O Ovo Filosófico (1976), Risco Subscrito (1980), Caminho de Marahu (1983), A Fala entre Parêntesis (1982), em parceria com Age de Carvalho, 60/35 (1985), Para ter onde ir (1992). Tais obras, felizmente, estão sendo relançadas pela editora da UFPA, permitindo ao leitor o acesso a essa voz singular.

Creio que viver em Belém nunca diminuiu a vitalidade da sua poesia, só entrincheirou-a no isolamento injusto, reforçando ainda mais o tom original, e o adensamento dessa voz que atravessou sucessivos surtos criativos, demonstrando como as condicionantes geográficas não domam a criatividade e o gênio de um poeta. Ele projeta o seu tempo e demarca os próprios limites.

Soube – e utilizo aqui uma imagem derradeira de “Problemas da Lírica” do poeta alemão Gottfried Benn – apanhar a lança e arremessá-la para frente, a fim de que outro poeta  continuasse a corrente de renovação, mantendo, porém, um diapasão poético inimitável. Ele atravessou décadas criando, exprimindo-se, norteado pela “solidão essencial” que Maurice Blanchot postulava. A tensão de sua poesia manteve-se intacta. Permaneceu fiel a si mesmo, imprimindo um lirismo densamente sensual, sob a égide erótica que mesclava o prazer da linguagem acompanhada pela sucessão de imagens surpreendentes.

Falei antes nos limites, Max superou-os, e recompôs-se sempre. Essa forma de encarar a linguagem – “a fera nos lambendo” -, olhando-a nos olhos, é um dos modos mais eficazes de se efetuar a aferição do alvo que um poeta se dispôs atingir. Ele jamais se extraviou do seu ponto cardeal, não perverteu a obra, pelo contrário, aprofundou sua experiência poética. De que forma ocorre a descoberta dessa linguagem, o momento fulminante que leva alguém a abeirar-se de uma expressividade, despertando em si a reverberação?  Tal movimento enigmático acontece, muitas vezes, quando o processo está em curso, ou continua ao longo da vida. Dir-se-ia que existem brechas que libertam uma luminosidade peculiar, breves indícios que se revelam no poema.

É como se algo pairasse numa combustão invisível, e só o encontro com a palavra absoluta porventura explicaria. Emily Dickinson dizia reconhecer a poesia genuína, ao sentir uma espécie de choque elétrico atravessando sua espinha dorsal. Max Martins produz esse efeito, hoje em dia raro.

Ao falecer, em 2009, legou-nos uma floresta poética disposta a ser esquadrinhada. Cabe agora apontar às novas gerações as balizas determinantes dessa poesia. O que ela nos revelou e mostrará continuamente como ato puro de vida e linguagem.

 

 

 

 

 

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Jorge Henrique Bastos é jornalista, tradutor e editor, organizou “Poesia brasileira contemporânea, – dos modernistas à actualidade”. (Antígona, 2002). E-mail: jorgehenriquesbastos@gmail.com




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