Um canto de amor para Dolores



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Talvez porque soubesse que sua passagem por aqui seria curta, Dolores Duran viveu intensamente: ela precisava pegar o sol com a mão. E ainda hoje sentimos as faíscas da luminosidade de sua presença, seja nas muitas regravações de suas 35 composições, seja no modo de sua gestualidade vocal, mais naturalizada, menos dó-de-peito, perpetuada em raros registros fonográficos e copiada por novas cantoras.

Para dar conta de uma vida curta e brilhante, o pesquisador Rodrigo Faour, com a competência que lhe é peculiar, escreve uma biografia rica e exuberante em detalhes e feitura. “Dolores Duran – A noite e as canções de uma mulher fascinante” sagra a homenageada e faz jus ao título ao recriar a noite e as motivações cancionais da cantora-compositora. Em suas mais de 500 páginas comprovamos um trabalho de pesquisa exemplar alinhavado através de um modo de escrever peculiar ao estilo Dolores de viver: entusiasta, vivaz.

Faour traduz o conteúdo na forma, e vice-versa. Como se conversasse com o leitor, ele escreve com o coloquialismo noturno e a rebeldia alegre de quem tem fome de viver, tal como a compositora-cantora. Ou seja, o autor faz do estilo e da elegância singulares de Dolores as tintas para criar o perfil necessário e merecido à grandeza da estrela cheia de tempestades solares. Sem pudores, o livro se constrói urdindo e armando as várias pontas que compõem a persona da artista com depoimentos, entrevistas, reproduções de reportagens da época e detalhes que só um trabalho muito meticuloso de pesquisa pode oferecer.

Adiléia Silva da Rocha foi uma dessas pessoas que transformam tabus em totens e, por isso, são julgadas como se estivesse à frente de seu tempo, quando na verdade, no caso de Dolores, ela capturou as urgências femininas e feministas de sua época e traduziu tudo em vida e arte. Pioneira e não coadjuvante, ela defendeu os ideais comunistas, para depois romper com tais perspectivas, enfileirou namoros e afetos, aprendeu línguas de modo autodidático e trabalhou na noite. Tudo ao sabor daquilo que seu coração traiçoeiro impunha.

Rodrigo Faour capta o clima que girava em torno de Dolores Duran e desenvolve uma narrativa estimulante, sem moral quanto ao uso de adjetivos – beirando o excesso, por vezes quase travando a fluidez narrativa, tamanha é a quantidade de referências, citações e histórias paralelas – e maneios da estética camp/queer a fim de ambienta com “coisas de mulher” uma história fascinante. Frases como “…Dolores foi se enrabichar por outro bofe, dessa vez um jovem mancebo…” (pág. 264) apontam o estilo e o coloquialismo da escrita de Faour, o esforço do autor em fazer o leitor entrar na asa do vento da biografada e a sapequice namoradeira atemporal de Dolores.

Distante das comumente enfadonhas biografias que optam pela história crua do biografado, Faour compõe uma canção de amor, admiração e luxo para enfeitar a noite de Dolores com uma estrada de sol. É deste modo que, cantada por nomes importantes de nossa canção popular, nos mais diversos estilos e épocas, Dolores ganha uma homenagem seminal e que dignifica seu ecletismo e sua inquietação.

Ao fim, “Dolores Duran – A noite e as canções de uma mulher fascinante” resulta como leitura fundamental não apenas para admiradores da cantora e/ou pesquisadores de canção popular, mas para todos aqueles que querem conhecer melhor um momento importante da formação de nossa cultura. Momento em que tudo exigia urgência: os amores, as dores. E as canções de Dolores entendem isso: as entregas passionais, os ciúmes fulminantes, as humilhações por perdão, os desenganos de esperar. E é por também entender esse turbilhão emocional e recriar isso como narrativa de uma vida que Rodrigo Faour se consolida como grande pesquisador – dono de um estilo alheio às convenções conservadoras do pseudo politicamente correto – e exímio biógrafo.

 

 

 

 

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Leonardo Davino de Oliveira é Paraioca. Pesquisador, ensaísta e escritor, especialista e mestre em Literatura Brasileira. Autor do livro Canção: a musa híbrida de Caetano Veloso. Doutorando em Literatura Comparada com projeto sobre Canção (Poéticas vocais) e Teoria da Literatura. Assina o blog Lendo canção: http://lendocancao.blogspot.com E-mail: leonardo.davino@gmail.com




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