Três caminhos para o cordel-II
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Os quatro do cordel
O cordel brasileiro, como hoje é, não tem qualquer raiz ibérica, mesmo com alguns pesquisadores insistindo nesse tese. A literatura de cordel ibérica ou francesa ou italiana, as folhas soltas, o corrido, nada têm em comum com o nosso cordel, forma poética. Há um sistema no cordel brasileiro: um autor, um editor, um leitor, um crítico. A literatura de cordel ibérica nunca teve, nem terá, porque morta, esse sistema. Os pais do cordel brasileiro são esses quatro cavalheiros enfatiotados aí.
São eles, no sentido horário: Leandro Gomes de Barros, o autor-editor-vendedor, criador da forma e do folheto; Silvino Pirauá, o poeta enciclopédico, criador do romance em versos; Francisco das Chagas Batista, fundador da Popular Editora, editor de Leandro, autor de antologias de poetas do povo; João Martins de Athayde, controverso editor e poeta, visionário do mercado do cordel, empreendedor ousado:
Observe-se em cada um o ar imponente de escritor e empresário, imagem distante daquela que alguns estudiosos nutrem chamá-los de analfabetos, autores de pouca ou nenhuma valia:
1. O ar bonachão de Leandro, com seu bigode de aço a furar os estudiosos da literatura brasileira, desafiando-os a encontrar um lugar para o cordel.
2. O ar intelectual de Pirauá como que a rir desses mesmos estudiosos, admirando-lhes a ignorância.
3. O ar desafiador de Chagas Batista chamando-os para a briga do punhal cordelístico contra a espada fumegante da crítica viciada.
4. O ar misterioso e despretensioso de Athayde como quem está se lixando para tudo isso.
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João José dos Santos, o Azulão
Deveria ter publicado mais cedo, mas hoje é domingo, tem café da manhã mais demorado, tem a feira, tem o almoço familiar e assim vamos construindo a vida familiar e deixando a vida virtual um pouquinho para mais tarde. Acontece que hoje é o dia do aniversário de José João dos Santos… quem é!!??? É o mestre Azulão, último grande poeta de cordel, pioneiro da divulgação da poesia nordestina no Rio de Janeiro, fundador da Feira de São Cristóvão, autor de incontáveis títulos, folheteiro, violeiro e cantador. São 80 anos e mais de 500 folhetos decorados na cabeça branca. Criador de “pinicados” na viola, viu o Cego Aderaldo tocar no Rio, cantou com João Paulo Jr. Azulão é mais que um pássaro. É nosso voo e nosso pouso seguro.
Conheci Azulão em 1986 quando cheguei no Rio, vindo de Sergipe. Naquele dia ele declamava O Trem da Meia-Noite no Largo da Carioca no centro de uma roda de ouvintes paralisados. Falava de tudo que acontecia no trem da Central. Versos numa métrica impecável, rimas perfeitas e interpretação magistral. Também eu, que já pensava em tornar-me poeta, paralisei-me e resolvi rever minhas preferências. Depois encontrei-o várias vezes fazendo a mesma coisa: poesia. Hoje, somos amigos e me emociono em todas as vezes quando vou a sua casa. Sempre tem uma novidade, no cordel, na viola, numa observação sobre poetas com quem conviveu. Azulão escreve como quem sonha e canta como quem acabou de acordar. Outro título dele: Os sofrimentos da fera da Penha no presídio de Bangu.
Pouca gente saberá quem foi Caryl Chessman. Foi morto no dia 2 de maio de 1960 na Câmara de Gás, na Califórnia, depois de 12 anos preso no Corredor da Morte. Recolhido à Penitenciária de San Quentin, Chessman alegava inocência, acusado de ser o Bandido da Luz Vermelha americano, responsável por uma série de roubos e estupros nos arredores de Hollywood. Durante a década de 1950 o caso tomaria repercussão internacional e ilustraria as páginas dos jornais brasileiros, semelhante a Saco e Vanzetti. Pois bem, é de Azulão a versão da história para o cordel. Lembremos de mais este título de sua autoria: Caryl Chessman, o mártir de San Quentin.
Vou fechar minhas homenagens a Azulão citando mais uma vez o seu lado de cronista. Quando escreve Os Sofrimentos da Fera da Penha refere-se ao caso comovente da menina Tânia Maria, barbaramente assassinada por Neide Maria Rocha, de 22 anos, motivado o assassínio por ciúme e vingança, segundo os autos do processo. Seguido ao crime deram-se os supostos milagres que a criança morta estaria promovendo. Com Os Novos Milagres de Tânia finalizo minha lembrança e a felicidade de poder ter conhecido Azulão no melhor de sua forma.
De Aldy Carvalho
O cordel brasileiro registrou em sua formação a presença de personagens decisivos, ora representando um tipo geral do povo, ora promovendo a reflexão sobre uma particularidade desse mesmo povo. Dessa forma desfilaram: João Grilo, o astuto, vivo e sabido; Chicó, um mentiroso inveterado, mas sensível; Vicente, o ladrão superior; Chicuca e Tubiba, troncos da valentia sem propósito; o próprio Lampião, simbolizando o mito emancipatório; e outros que o tempo não sepultou.
A presença do preguiçoso é outro traço do cordel extraído do meio do todo poético brasileiro. Devidamente registrado e catalogado em histórias de trancoso e contos circulantes no seio dos povos de todos os continentes, ele, o preguiçoso, desembarca em um poema de Aldy Carvalho, A ganância de um preguiçoso, carregado com um traço distintivo diferenciado: a ambição. Sendo esse traço apenas o pretexto, a ferramenta utilizada pelo poeta para fazer desfilar pelas suas sextilhas elementos ancestrais significativos do interior nordestino.
O conselheiro a que todos recorrem para acalentar suas dores e observar saídas; os ciganos em grupo, mestres na arte do jogo e da divinação; as velhas e conhecidas botijas carregadas de ouro e maldição; os sonhos misteriosos reveladores da vida e suas armadilhas; a anciã malévola, herdeira dos males dos contos de fadas; os animais fantásticos, detentores de razão e vontades; os grupos de romeiros em busca de paz e devoção. E como em todos os contos de ensinamento: o arrependimento e o recomeçar.
Aldy retira de sua vivência e experiência, como músico consagrado e competente, os arquivos para a composição do seu poema sem máculas. Como anunciava em seu disco Redemoinho, de mais de 20 anos passados: é preciso preparar o chão para a colheita… os nossos destinos se encontram nas veredas. O cordel encontrou Aldy: ganha Aldy com o cordel, ganhamos nós com Aldy. A colheita é de todos.
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Aderaldo Luciano é paraibano, nascido em Areia, poeta, professor de Teoria da Literatura e cozinheiro amador. E-mail: luizcangaceiro@gmail.com
7 agosto, 2012 as 13:36
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