Romance de resistência


.

“Jardim Brasil é muito mais do que um romance sobre a miséria e a violência típicas de uma metrópole. É uma comovente história de camaradagem e esperança, que reforça nossa crença no poder libertador da arte”

Nelson de Oliveira

“Romance de importância literária e sociológica, Jardim Brasil é a narrativa centrada no adolescente Yakecan, jovem suburbano de mãe solteira, como tantos que subsistem e sobrevivem precariamente nas periferias de São Paulo; uma existência que, não obstante regional, sintetiza a questão da juventude como nervo exposto na grande chaga social que flagela o país”

Clayton de Souza.

.

Apresentação
Por Everaldo Ygor

Na perifa da zona norte o tempo anda devagar – diferente, descompassado, torto como deve ser… JB é bairro periférico, misto de operário e comunidade. Antigamente todos e todas se conheciam – foi se transformando, envelhecendo por décadas como qualquer engrenagem, cada vez maior e distante do centro, sofrendo a gentrificação e a segregação social.

Jardim Brasil é romance atual, uma etnografia, mergulho nos corredores da memória coletiva periférica – em nossa existência, literatura. Também é sobrevivência – podem-se ver e ouvir os sons, as percepções de uma juventude, as relações de poder, o erotismo, a vidaloka que segue nas biqueiras e nas ruas citadas por onde passamos na quebrada. A conjuntura

vai fluindo, permeando os personagens. A juventude, família, escola, trabalho, iniciação sexual, política, polícia, Brasil, e o abismo do desgoverno e das fake news. O leitor incauto, no primeiro instante, pode estranhar a linguagem e os saberes locais – mas logo, recém-formado, estará apto a entonar as novas/velhas gírias da perifa.

Sin perder la ternura jamás, o romance é autêntico e pesado – como deve ser…, veloz, carrega o DNA do autor, sua vivência na quebrada, seu repertório. Para quem não vive na área, o JB já foi conhecido como Jardim Bang-Bang – precisa de uma leitura atenta para acompanhar a dança. Encontro-me, reencontrando os que já foram em seu texto. Enfim, somos

humanos, batizados no Jardim Brasil – a tônica do amor e da sobrevivência vem sorrateira nas próximas páginas.

A narrativa aguda do trabalho do “Germânico” na boca de fumo é o destino real de muitos jovens da quebrada – necessidade, ilusão da grana rápida, adrenalina… Vida breve e loka. O rolê no bairro revela o picho –nossos muros também contam histórias. Nos fluxos, o funk, a dança, adolescentes se misturam aos idosos e desempregados na praça descuidada.

E o capítulo 21: roteiro de cinema.

— Vai lá, Yake. É a sua vez.

Se aqui Yake, personagem central, tem o seu nome inspirado num índio do sul da Bahia, em algumas tradições secretas “Yake” é o chacra animal, um centro de energia. Nesta jornada, seus encontros e desencontros forjarão sua existência. Mergulhe fundo no Yake e conhecerás a si mesmo.

Aonde ele chega? – Descubra você, leitor, leitora…

As páginas já estão se abrindo, as vielas e ruas do JB

também.

Jardim Brasil é onde resisto. É obra para os dias… como deve ser.

São Paulo, Brasil

.

.

Confira o primeiro capítulo do romance:

Viela na Benfica. Morávamos num dois-cômodos: quarto e cozinha. A entrada era pela cozinha — onde também ficava o banheiro. Entre os dois cômodos não havia porta. De madrugada, acima da pia, um pouco da obscena iluminação amarelada da viela atravessava o vitrô. Podia levantar e caminhar de boa até o banheiro. Sem acender a luz. Ou visitar a geladeira. Eu já era grandinho. Dividia o quarto com a minha mãe. Não grande o bastante pra entender exatamente o que seria sexo. Sobre o biombo vazado, separando as duas camas, toalhas tentavam me impedir de ver detalhes. Impossível mesmo era não ouvir aqueles sons. Mano, eu odiava, tá ligado? Devia ter uns sete, oito anos. Acordava com o barulho da cama ao lado. Ainda nem sabia bater punheta. Mas o instinto me deixava de pirrola dura e muita raiva. Nunca gostei de nenhum homem que a mãe recebia em casa. Quando perguntava, ela dizia que era seu namorado. Quase todas as noites aparecia um namorado novo. Dona Lurdes discretamente trazia, dizia se estava pago e sumia. Se fosse cedo, eu podia ir pra viela. De lá dava um perdido. Colava na esquina com os manos mais velhos. Ouvia as resenhas. Por aí fiz meus primeiros corres. A noite sempre me excitou. Só voltava de madrugada. Sem a visita em casa. Mas às vezes rolava pernoite. O cara dormia. Seria ótimo se realmente dormissem. No meio do sono, eu acordava. Tossia pra me perceberem. Contava pro teto, em voz alta, que estava morrendo de dor de cabeça. Levantava. Ia tomar água. Por um momento, dois, paravam. Os malditos sons, no entanto, logo retornavam e mais ritmados. Além dos gemidos, me irritava a conversa mole. O barulho de beijos. As risadas. Aquele fedor de cerveja que tomava o quarto. A fumaça do cigarro. Queria ir pra rua, tio, e nunca mais voltar. Aí, se liga, inventei uma parada. Pra compensar. Entreter a mente. Indo na manha. Enquanto o mané se divertia. Dava uma geral na calça do cara. O dindim que encontrasse, mano, catava. Nem moeda perdoava. Na manhã seguinte o trouxa ia embora sem perceber. A primeira vez que a mãe me viu com aquele monte de dinheiro levei o maior esporro. “Nunca mais, menino, faça isso! Se fizer, vai apanhar! Entendeu?” Daí ela pegou a grana e saiu. Pensei ter ido devolver. Voltou com sacolas cheias de bolacha, refri, mistura. Sem esquecer, claro, do mais gostoso: iogurte! E de vários sabores. Nas outras vezes ela não deixou de reclamar. “Já falei, Yake, pra não fazer isso, filho.” E sempre ficava com tudo. Passava no mercado. Mas um dia, truta, a casa caiu. Teve um cara que antes de sair checou a carteira. Eram umas seis horas da manhã. Eu tinha pegado o seu salário. Hora de levantar e ir pro trabalho. O homem enlouqueceu. Se liga. Acordei com os palavrões. Ele segurava a mãe pelo pescoço. Deu um tapão no rosto dela. “Cadê o dinheiro que estava aqui?” Seu nariz começou a sangrar. E ele não largava, mano. “Devolva logo!” Outro tapa. “Hoje vence o meu aluguel, sua ladra!” Ela implorou pra ele parar. Eu também. O sangue descia pelo queixo. A camisola já toda manchada. Chorei alto. O desgraçado parecia endemoniado. “Não paguei o acertado, hein?” Nenhum vizinho veio ajudar. Precisava fazer algo.

“Estou avisando, índia, se não me devolver, ninguém mais vai pagar por uma chupeta desta sua boca gostosa. Não vai sobrar um dente!” Deixando cair algumas moedas, “tá aqui”, entreguei o dinheiro. O animal conferiu nota por nota, os centavos. Exigiu de volta o que pagou. Ainda quis tomar café. Sentou à mesa sem ser convidado. E jogou toda a culpa em mim. “Aí, interna esse pivete na Febem.” Veio pra cima. Levantando a mão, ameaçou me dar um tapa. Nem me movi. Ameaçou novamente. Depois sorriu, exibindo os dentões amarelos. “Então, ladrãozinho, pensou que eu fosse um otário, moleque?” Olhei pro fogão. A água começava a ferver na chaleira. “Na sua escola, pirralho, não sou professor, sou o diretor, tá ligado?” Se esse sujeito tocar em mim. “Olha só o pivete… Cabelo loirinho… Quem é o pai desse moleque, índia?” O homem levantou e, encostando por trás, tentou beijar o pescoço da mãe. A água borbulhando. Ela se encolheu, tentou fugir. “Venha cá, linda. Calma aí. Dá pra rolar uma rapidinha. Posso chegar na firma atrasado.” Aí, truta, não precisei fazer nada. Ela mandou ele se foder. Pegou uma faca. A maior que encontrou. E foi pra cima. “Vaza daqui!” O cara se assustou. Saiu andando de costas. “Calma, índia, cadê o café?” E quase cai após tropeçar no meu skate. “Vá tomar café na puta que te pariu! Vai, vaza!” Ao menos esse nunca mais voltou. O leite também fervia. Tive certeza, mano, hoje vou apanhar. Era cedo pra fugir pro colégio. Fui arrumar a mochila. Exibindo o caderno, mostrei a lição de casa. “Mãe, olha só, fiz tudo.” Com o nariz sujo de sangue e os lábios estourados, ela perguntou se eu queria café ou chocolate. O pão dormido esquentou na chapa. Senti falta do iogurte. Ainda tinha um na geladeira. Lembrei. Mas achei melhor nem comentar.

.



.

Glauber Soares é baiano. Formado em Jornalismo. Mora em São Paulo. Nos finais de semana podem encontrá-lo no litoral sul, ao pé da serra do Mar, numa casinha verde, próxima do rio Negro, procurando os tons que não enxerga. Blogue: www.glaubti.wordpress.com . E-mail: glaubti@gmail.com




Comente o texto


*

Comente tambm via Facebook