Revistas definem o panorama literário



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Qual será o papel da poesia num mundo unipolar, regido pelo império da tecnologia, do mercado e da mídia, que exilou o sentido utópico, presente nas vanguardas do início do século passado? Acredito que há, no mínimo, três atitudes que os poetas podem tomar, respondendo ao desafio da esfinge: a) aceitar a nova visão de mundo, ingressando no coro dos contentes, já bem afinado por tantas vozes que buscam o sucesso antes mesmo de terem realizado uma obra literária válida (para estes, o que importa é o marketing, não a estética ou a mudança do mundo); b) conformar-se à criação poética pura, fazendo do exercício rigoroso da linguagem a sua ética pessoal, sem concessões à facilidade nem retrocesso a formas gastas; e c) manter a atitude inconformista, de denúncia e rebelião solitária, unindo a experiência da linguagem à consciência crítica. A terceira atitude é a mais arriscada, numa época em que a revolução comportamental iniciada nos anos 60 foi consolidada, e transformada em objeto de consumo, e os projetos alternativos para a mudança social foram arquivados, pelo consenso relativo em torno da democracia liberal e da economia de mercado. A própria ideia de vanguarda foi colocada em xeque pelos formuladores do conceito de pós-modernidade. Essa aparente apatia é questionada, no entanto, pela própria realidade, que em Chiapas, Oaxaca, La Paz e outras localidades, não só na América Latina, aponta os resultados nocivos da globalização econômica, como a redução dos direitos sociais para favorecer a acumulação de capital. Ainda é cedo para sabermos se os novos movimentos aglutinados no Fórum Social Mundial apontarão uma saída viável. O fato concreto é que surgem vozes dissonantes, inclusive na intelectualidade norte-americana, denunciando a agressão imperial a outros países, a limitação da liberdade individual e de imprensa, a pretexto de combater o terrorismo (medidas autorizadas pelo Ato Patriota) e a agiotagem financeira internacional. Nesse contexto, o poeta pode assumir uma posição de consciência crítica: assumir sua cidadania, seu inconformismo intelectual, sua participação num processo, ainda incipiente, de mudança de valores, aceitando pagar o preço pela dissidência.

A revista Sibila, editada por Alcir Pécora e Régis Bonvicino, busca referências literárias diferentes daquelas presentes no cânone literário recente (que vai de Bandeira e Drummond a Cabral e à Poesia Concreta). Essa jornada parte de uma reflexão crítica sobre a vanguarda e avança no sentido de ampliar o repertório, por meio da atividade crítica e da tradução de autores estrangeiros contemporâneos como Robert Creeley, Michael Palmer, Charles Bernstein e Claude-Royet Journaud (escolhas mais inteligentes do que as realizadas pela revista carioca Inimigo Rumor, que se contentou com autores de dicção tradicional, como Adília Lopes, Nicanor Parra e Antônio Cisneros, que em nada contribuíram para a renovação das formas poéticas). O diálogo brasileiro com a poesia norte-americana divulgada por Sibila (e antes dela, pela extinta revista Monturo), no entanto, merece um comentário mais atento. A tradição minimalista, prenunciada talvez por Emily Dickinson, no final do século XIX, teve o seu momento de expansão na década de 1920, com a obra seminal de poetas como William Carlos Williams, Louis Zukofski, cummings e outros, em geral ligados ao Objetivismo. Esta é uma poesia concentrada, de imagens rápidas, fragmentárias, que exploram ao mesmo tempo a sonoridade e o pensamento, pela maneira como articula o discurso. Gertrude Stein adotou estratégia diversa, transformando palavras e fonemas em matéria plástica e sonora, sem um sentido preciso (os “tender buttons”, aliás uma gíria para designar o clitóris). A influência combinada dos objetivistas e da autora da Autobiografia de Alice B. Toklas foi decisiva para a chamada Language Poetry, surgida nos Estados Unidos na década de 1970, que podemos considerar uma síntese da tradição da vanguarda norte-americana. O trabalho tradutório de Bonvicino foi importante para a divulgação desses autores entre nós, e influenciou a fase inicial de poetas como Tarso de Melo e Kleber Mantovani. Com o passar do tempo, no entanto, essa abordagem do minimalismo criou um novo beco sem saída, pela excessiva repetição de processos. O uso exclusivo de minúsculas, em espaço duplo, com abundância de substantivos e poucos verbos (sempre no infinitivo) tornaram-se cacoetes, assim como a descrição de cenas e situações em linguagem fragmentária e elíptica e o uso não-gramatical da pontuação, bem como o uso de palavras imprecisas como alguém, ninguém, algo, talvez, outro, quando. A reverberação das técnicas mais evidentes da Language Poetry, que não pode ser reduzida a esses recursos, acabou estabelecendo um padrão que não causa mais surpresas.

A Poesia Concreta, diga-se aqui, desde a década de 1950 já realizou uma síntese radical da herança das vanguardas, ainda não plenamente assimilada por nossos poetas e críticos literários. Se alguns aspectos do Plano-piloto envelheceram, permanece o desafio de buscar uma solução para a crise histórica do verso, sem o retorno acrítico a fórmulas exauridas. O próprio Haroldo de Campos, em obras como Galáxias, Crisantempo e nos ensaios sobre o pós-utópico buscou uma outra vereda, que podemos situar na tendência chamada neobarroca, que se desenvolveu, sobretudo, nos países de língua espanhola da América Latina, a partir de 1970, tendo como expoentes autores como o cubano José Kozer, o argentino Nestor Perlongher e o uruguaio Roberto Echavarren (e poderíamos acrescentar a essa lista os brasileiros Wilson Bueno, Horácio Costa, Josely Vianna Baptista e o Leminski do Catatau, além do próprio Haroldo). O neobarroco não é uma escola; não tem princípios normativos como o verso livre ou as “palavras em liberdade”. Podemos caracterizá-lo, em termos gerais, como uma estética da miscigenação, da quebra de fronteiras entre repertórios culturais, mesclando o erudito ao popular, o neologismo ao arcaísmo, o ocidental ao oriental, o poético ao prosaico, num deliberado hibridismo, que incorpora ainda a tradição do Século de Ouro (com sua rica imagética e proliferação de metáforas) e da vanguarda internacional. Divulgado no Brasil por Josely Vianna Baptista (Caribe Transplatino) e por mim (Jardim de Camaleões), e ainda por revistas como Coyote, Oroboro e Et Cetera (todas editadas no Paraná), o neobarroco teve presença discreta em nossas letras, mas é visível sua influência em autores mais jovens, como a paulista Adriana Zapparoli e o cearense Eduardo Jorge.  Se a dicção neobarroca ou hermética é uma das respostas possíveis à crise do verso, outro caminho, pouco explorado entre nós, é o da poesia eletrônica, que permite a interação entre som, imagem, ideia e movimento, em suportes digitais (que facilitam ainda a permutação de signos, a mobilidade e a interatividade, multiplicando as rotas de leitura e a geração de significados). Esse campo de experimentação, que não abole o livro ou a escrita, mas amplia as potencialidades da palavra, com certeza nos surpreenderá, em futuro breve. Na internet, podemos acessar algumas experiências nesse sentido nas revistas Artéria, de Omar Khoury, Errática, de André Vallias, e Popbox, de Elson Fróes.

A revista Inimigo Rumor, editada no Rio de Janeiro por Augusto Massi e Carlito Azevedo, realizou em seus primeiros números (que contaram com a colaboração editorial de Júlio Castañon Guimarães) um mapeamento criterioso da poesia brasileira contemporânea, publicando autores como Augusto de Campos, Duda Machado, Régis Bonvicino, Claudia Roquette-Pinto, Antônio Risério e Arnaldo Antunes, entre outros nomes estabelecidos, além de poetas jovens, com pouca oscilação de qualidade. Num segundo momento, a revista assumiu contornos mais ecléticos e tornou-se porta-voz de uma dicção coloquial e cotidiana, que reivindica a herança do Modernismo de Bandeira e Drummond e de autores da década de 1970, como Cacaso e Francisco Alvim. Os elementos centrais dessa vertente são o lirismo, a subjetividade, a temática prosaica, inspirada na crônica de jornal, e o humor (por vezes opaco ou ingênuo, sem a contundência de Glauco Mattoso e Sebastião Nunes). É uma poesia que não investe na renovação léxica ou sintática, respeita o discurso e a lógica linear e não busca novos processos de criação. A defesa do lirismo contra a vanguarda, feita por poetas desse grupo, causa certa surpresa, e merece breve comentário. Lirismo e subjetividade estão presentes, em maior ou menor grau, em toda a poesia moderna, inclusive na vanguarda (lembremos aqui o Poetamenos, de Augusto de Campos, ciclo de poemas coloridos de temática amorosa, inspirados na “melodia de timbres” do músico austríaco Anton Webern). A revolta da modernidade, desde seus primórdios, foi contra o eu lírico narcísico, de efusão sentimental, dominante na época romântica e ainda na simbolista. Ao reduzir a presença do eu, focando a atenção no mundo objetivo e na linguagem, a modernidade deu um novo sentido ao lirismo, que foi reinserido na dimensão social e histórica (lembremos aqui de Paul Celan, autor de rigoroso artesanato lingüístico e não menos intenso do ponto de vista emocional, e ainda o Rilke dos Novos Poemas).

Propor uma antinomia radical entre o lírico e o lingüístico parece-nos uma desculpa para justificar poéticas frágeis, assim como a tática diversionista de apelar a um suposto “conteúdo” ou “urgência de dizer” que não raro se limita à descrição banal da frase escrita numa camiseta. Outro ponto que carece de discussão é o relativo ao enfoque crítico da realidade. Talvez pela excessiva influência do método sociológico de Antonio Candido na universidade, esse debate ainda está atrasado entre nós. O retrato ácido, caricatural do mundo urbano e fabril está presente em Baudelaire, Cesário Verde, Ezra Pound, Drummond, Décio Pignatari. Não há conflito entre consciência social e consciência da forma (discussão já travada na Rússia na década de 1930 entre os cubo-futuristas e os adeptos do realismo socialista), ao contrário: a denúncia é ainda mais expressiva quando apoiada num texto poético forte e eficaz.  No poema Nós, de Cesário Verde, para ficarmos num único exemplo, podemos ver a antecipação do futurismo pela temática urbana, concisão e estilo telegráfico de certas passagens: “cidades fabris, industriais,/ De nevoeiros, poeiradas de hulha” / (…) “condados mineiros! Extensões/ Carboníferas! Fundas galerias!/ Fábricas a vapor! Cutelarias!/ E mecânicas, tristes fiações! / (…) Mas isso tudo é falso, é maquinal, / Sem vida, como um círculo ou um quadrado, / Com essa perfeição do fabricado, / Sem o ritmo do vivo e do real”. Não encontramos essa fúria rebelionária, social e semântica, na poesia defendida pelo grupo da Inimigo Rumor, que se limita, muitas vezes, ao registro de pequenas cenas corriqueiras, com palavras singelas, às vezes pueris, como os diminutivos, sem a força de impacto de Cesário Verde, Brecht, Maiakovski ou Drummond (aquele das peças mais consistentes, como Nosso Tempo: “Os lírios não nascem / da lei. Meu nome é tumulto, e escreve-se / na pedra. (…) / Tenho palavras em mim buscando canal, / são roucas e duras, / irritadas, enérgicas, / comprimidas há tanto tempo, / perderam o sentido, apenas querem explodir”).

O uso da ironia e da sátira na poesia de temática urbana é uma conquista que remonta ao século XIX, especialmente a Jules Laforgue e Tristan Corbière, autores valorizados por Ezra Pound, que via no humor uma forma de crítica não apenas social, mas também da linguagem.  O humor é subversivo, corrói as fórmulas gastas do discurso, as pérolas da retórica, as metáforas vazias, e acrescenta ao vocabulário poético termos considerados chulos, obscenos ou de mau gosto, pour épater le bourgeois. Recordemos aqui alguns versos de Corbière, em tradução de Augusto de Campos: “Não nasceu por nenhum lado / e foi criado como mudo,/ tornou-se um arlequim-guisado, / mistura adúltera de tudo. / Tinha um não-sei-que, — sem saber onde; / Ouro, — sem trocado para o bonde; / Nervos, — sem nervo; vigor sem ‘garra’; / Alma, — faltava uma guitarra; / Amor, — mas sem bastante fome. / — Muitos nomes para ter um nome. / Idealista, — sem ideia. Rima / Rica, — sem matéria-prima; / De volta, — sem nunca ter ido; / Se achando sempre perdido.” Comparemos essa peça com o poema-piada Parque, de Francisco Alvim, que o crítico Manuel da Costa Pinto incluiu em sua Antologia Comentada da Poesia Brasileira do Século XXI: “é bom / mas / é muito misturado”. Enquanto o texto de Corbiere, a cada releitura, permite a investigação de novos sentidos, o texto de Alvim esgota-se na primeira leitura, pela banalidade. Esse estilo ingênuo de humor, que deriva dos versos de circunstância de Manuel Bandeira, não pode competir com os mestres do sarcasmo e da irreverência de nosso idioma, como Gregório de Matos, Bocage, Álvares de Azevedo, Bernardo Guimarães, Glauco Mattoso; é um humor bem-comportado, tímido, funcionário público, de óculos e gravata, incapaz de atingir a força expressiva dos clowns de que falava o próprio Bandeira (“O lirismo difícil e pungentes dos bêbedos / O lirismo dos clowns de Shakespeare”). Acredito que nossa literatura só teria a ganhar com uma poesia, ou antipoesia, coloquial-cotidiana de alta elaboração formal, mas este não é o caso de muitos poetas valorizados pela revista Inimigo Rumor, cuja qualidade literária não está no mesmo nível de sua divulgação publicitária, não apresentando nenhuma aventura intelectual.

“A arte só serve para alguma coisa se é irreverente, atormentada, cheia de pesadelos e desespero. Só uma arte irritada, indecente, violenta, grosseira, pode nos mostrar a outra face do mundo, a que nunca vemos ou nunca queremos ver, para evitar incômodos à nossa consciência.” Este pensamento de Pedro Juan Gutiérrez, que serve de editorial ao n. 14 da revista Coyote, define de maneira lapidar a linha seguida pela publicação, dirigida pelos poetas Ademir Assunção, Marcos Losnak e Rodrigo Garcia Lopes. Não se trata aqui de um grupo articulado em torno de uma proposta exclusivamente literária, já que a literatura não é concebida como mera representação do mundo, mas como algo que nos permite pensar e modificar o mundo. Coyote investe na atitude crítica para manifestar o seu desconforto perante uma sociedade cada vez mais acéfala, construída à imagem e semelhança da indústria de consumo, cujos ícones, na realidade brasileira, são programas de televisão como Big Brother ou os shows de auditório de Gugu Liberato, Faustão e assemelhados. Como antídoto à lavagem cerebral, a revista ataca em várias frentes, publicando desde textos experimentais de alta elaboração formal, como a prosa poética do escritor João Filho, até a tradução de autores estrangeiros pouco conhecidos no Brasil, de diversas épocas e países, como o coreano Yi Sáng, o sírio Adonis, o chinês Po Chu I, o escocês Edwin Morgan ou o dominicano León Félix Batista. Em seus dossiês, a publicação privilegia autores que além da invenção verbal têm uma visada crítica de repúdio à massificação e à banalidade, como a chilena Cecília Vicuña, o mexicano Heriberto Yépez, o brasileiro Roberto Piva.  Coyote também publica obras de fotógrafos e artistas visuais, incentivando o diálogo entre a poesia e outras artes. É uma publicação bem-informada, que tem aberto espaço a poetas e prosadores da novíssima geração, com critério na escolha de autores e textos — e cabe aqui destacar o trabalho de Simone Homem de Mello, autora que reside hoje na Alemanha, que publicou em 2005 o importante livro Périplos, pela Ateliê.

Não poderíamos concluir este ensaio sem mencionarmos a produção de autores jovens que vêm publicando poemas e traduções de qualidade em blogues e revistas virtuais, com destaque para o Papel de Rascunho, de Virna Teixeira (autora dos livros de poesia Visita e Distância), Caderno V, de Daniela Ramos, Folhas de Girapemba, de Ana Maria Ramiro e Uri Geller, de Leonardo Gandolfi, além das revistas Mnemozine, Germina, Confraria e Zunái. A internet hoje é o veículo mais atualizado para quem deseja conhecer o que se faz de mais qualitativo na poesia contemporânea, furando o boicote dos cadernos culturais da imprensa diária, cada vez mais reduzidos à condição de folhetos publicitários. A questão básica, hoje, não é discutir onde está a poesia, mas onde está a crítica.

 

 

 

 

 

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Claudio Daniel, poeta, tradutor e ensaísta, publicou, entre outros títulos, os livros de poesia A Sombra do Leopardo (2011), Figuras Metálicas (2004), Fera Bifronte (2010) e Letra Negra (2010). É curador de Literatura e Poesia no Centro Cultural São Paulo e editor da revista Zunái. Mantém o blog Cantar a Pele de Lontra, http://cantarapeledelontra.blogspot.com E-mail: claudio.dan@gmail.com

 

 




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