Remédio Forte


…………………………(Coletânea de contos de Gláuber Soares)

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Algumas vezes irreverentes, outras ácidas, as narrativas de Remédio Forte nos levam para um passeio em volta das condições e das precariedades humanas. O autor é um médico que diagnostica os problemas do mundo, apesar de não poder saná-los, mostra o corte, mas sabe que não é sua função suturá-lo.

Quando lemos os contos que integram o livro de Gláuber Soares temos a impressão de estarmos diante de uma porta entreaberta e nos colocamos a contemplar com curiosidade a vida de cada uma das pessoas, sim, pessoas, é difícil chamar de personagens esses seres que o autor evoca, esses seres frágeis que andam, que comem, que riem, que choram, que procriam, antes eles parecem muito mais com os nossos vizinhos e acabamos nos perguntando se o autor não ousou apenas mudar os nomes de alguns conhecidos e colocá-los ali, todos em cena sob seu olhar vigilante e punitivo.

A linguagem concisa, econômica faz com que nos aproximemos ainda mais dos

personagens que estão à margem da vida, procurando a felicidade em lugares improváveis. Em muitos contos, temos a impressão que o autor é um sucessor de João Antonio. No entanto, o mais importante é saber que Gláuber Soares é um escritor contemporâneo que merece atenção, seu texto não só denuncia a violência e a banalidade cotidianas, mas apresenta uma literatura a se acompanhar
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Marcia Barbieri é escritora, formada em Port./Francês pela Unesp e pós-graduada em Prática de Criação Literária.

 

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Leia um conto do livro:

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JABUTICABAS NO ÉDEN
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Aniversário da tia de mamãe. No interior. A comemoração começou no almoço. Galinhada caipira, angu de milho verde, cural, polenta frita, mole… Só faltou o pato ao milho. Eu detestava tudo aquilo.

Era uma casa enorme. Cheia de salas e quartos no térreo. Mais salas e quartos no andar superior. Além do sótão.

Fora o garoto que não largava seu livro, só havia adultos e bebês. Lamentei não ter levado meu ioiô nem o velho peão. Uma garrafa de cachaça – devia ser cachaça – cheia de serpentes sobre a cômoda me segurou por ali. Queria ver a cara de quem fosse beber. A pessoa certamente iria se estrebuchar. Que nem o pato se estrebuchou ao cortarem seu pescoço. Minha mãe disse que ele demorou pra morrer e ficou se debatendo pela cozinha porque eu senti dó. Pobre animal. Senti mesmo muita dó. Tanta que nunca mais quis comer pato.

Ensaiava pedir para mamãe me enfiar num ônibus de volta para casa quando apareceu um cãozinho. Não sentia afeto por cachorros.  Gostava de pássaros, elefantes, jacarés, sapos, hipopótamos…

De tanto se aproximar, depois sair, percebi que o cãozinho queria brincar de pega-pega. Ágil. Não era fácil pegá-lo. Passava sob as cadeiras e mesas. Por baixo das saias. Por cima das malas. A brincadeira, naquela casa enorme, logo se tornou esconde-esconde. O bicho sumiu.

– Trate de se aquietar por aí. Só vão cortar o bolo lá pro final da tarde – minha mãe avisou.

A garrafa de serpentes continuava intacta. A poncheira era sempre reabastecida. Mulheres adoram ponche. Bebem que nem Tubaína e riem alto. Quanto mais bebem mais riem alto. Os bebês resolveram chorar, e feder, tudo em coro. Nada de encontrar o cão.

Aproximei-me do garoto. Ia perguntar qual era o seu time. Desisti. Ele estava imóvel, sendo sugado pelo livro. Igual à cobra engolindo o preá que o meu padrinho me deu. Imaginava improvisar algum passatempo quando o monte de pelos encardidos apareceu na sacada. Quis agarrá-lo. Ninguém me vencia. Não ia perder para um saco de estopas. Mais uma vez o filho da mãe me driblou. Desceu as escadas. Partiu para a cozinha. Entrou na dispensa e foi para o quintal.

No fundo do quintal, próximo ao abacateiro, havia uma edícula. Ele disparou e sentou-se na varanda da edícula. Corri e dei o bote. Segurei firme pelo rabo. Agora sim. Vou te prender no galinheiro seu… Agora não! Após mostrar seus enormes assustadores dentes de lobo, tive de soltá-lo. O cão entrou na edícula e seguiu para o fundo. Estava bem escuro dentro da pequena casa, apenas do chão, onde ele se aproximou, saía uma luz esverdeada. Parei. Ele também parou. Olhou para mim e latiu. Não entendia aquela luz vinda do chão. Outro latido. Tentei me mover. Dei alguns passos. O cão desapareceu na luz verde. Olhei para a porta que entrei: ainda estava aberta.

Examinei o caminho de volta. Não queria tropeçar nos móveis, caso precisasse voltar correndo. Aos poucos me aproximei da luz. Era um porão. Pude ver os degraus. Escutei outro latido. Comecei a descer. O cãozinho me aguardava no último degrau. Ou seria o primeiro? Nunca soube se onde termina é onde começa. Isto em breve vou desvendar. Quando me agachei o bicho saltou pelo pequeno corredor. Parou de frente para uma porta. Eu fui ao seu encontro. Precisava capturá-lo. Sair rápido dali com o meu troféu felpudo. Nenhuma ovelha fugia assim de John Wayne. Nem se tiver de sentar o pé, vou agarrar o Estopa com bastante forca. Escuto uma melodia. Dessa vez você não me escapa. Voz feminina. Doce e forte. Letra incompreensível. Não consigo parar. Porta semiaberta. Opa!

– Ei, Bil, por que me deixou só por tanto tempo?

O cachorro pareceu responder com o latido. E ela pareceu entender porque olhou para a porta. Paralisado, estremeci com o que vi. Sentada em sua cama, a menina encobriu a cabeça com o cobertor. Pensei em fugir. Bil latiu olhando para mim. Minhas pernas não me obedeciam. Aproximaram-se da cama. Sobre o criado-mudo, a luz do candeeiro iluminava o cobertor no formato de pera. Uma imensa pera ao contrário. Parte grande para cima, pequena para baixo. Bil reclamou. Tá bom. Ela afastou o cobertor. Vi seu corpo frágil. Braços e pernas frágeis. Mas a cabeça, a partir da testa, era muito grande. Pensei novamente em sair. Meus pês continuavam teimosos. Aproximaram-se ainda mais. O ar se tornou rarefeito. Sua voz. Meu medo.

– Oi?

– Oi.

Os cabelos da menina eram crespos e bem curtos. As mãos seguravam cartas de um baralho surrado.

– Sabe jogar burro em pé?

– Sei.

– Jogo todas as noites com o Bil. Quer jogar comigo?

Ela pôs do outro lado seus livros e gibis para que eu sentasse na cama. Acendeu outro candeeiro. O magro pescoço equilibrava a cabeça. Movimento lento. Postura reta. Outra pergunta:

– Quantos anos você tem?

– Sete.

– Eu também.

Embaralhou as cartas. Pediu para eu cortar e distribuiu. Estava numa história da vovó Antonia. Sem ser contada pela vovó Antonia. A garota estudava suas cartas. Eu tentava decifrar o que via. Novidade incalculável. O mundo era mais difícil que tabuada de sete.

Ela jogava como nunca haviam jogado comigo. Mesmo perdendo, juro, nem pensei em trapacear. A sua boca pequena sorria a cada vitória. Pra variar, a menina sugeriu pega-varetas. Peguei uma tábua do guarda-roupa. Sobre as pernas dela, a tábua serviu de mesa. Com habilidade a mãozinha ia catando as varetas. De uma em uma, sem tocar em outra, até sobrar a preta. Novas sovas, mais sorrisos.

Bil dormia sobre o tapete.

Mudamos para o dominó. Quem sabe a sorte não muda? As pecas deviam estar marcadas porque só eu passava. Que riso ousado. Cansado de perder, aceitei brincar de quebra-cabeça. Na verdade, nunca havia me sentido feliz perdendo. Entendi por que vovô errava tantos pênaltis no futebol de botão.

Aos poucos surgiu a Branca de Neve e os Sete Anões. Não encaixei quase nada, mas ela me incluiu em seu sucesso.

– Vamos ao aniversário? Daqui a pouco vão cantar parabéns.

– Sempre quis ir num aniversário, mas…

– O quê?

– Ninguém me leva nas festas da casa grande. Eu escuto o barulho, a música e participo daqui dançando com as minhas bonecas.

– Por que não te levam?

– Tenho dificuldade pra andar. E o vento lá fora faz mal pra mim.

– Quem disse isso? O médico?

– Não. A tia é quem diz. O tio também. A prima.

– Só faz mal se tiver frio e garoando. Hoje tá sol.

Vamos lá?

– E se eu passar mal? Não posso ficar doente.

– A gente volta rápido pra cá. Você anda?

– Ando, mas preciso segurar em alguém pra me apoiar. E não pode ser rápido. Tem de ser bem devagar.

Encostada a mim, ela segurava firme a minha mão direita. Desde esse dia, não lembro de ter me sentido tão útil. Seguidos pelo Bil, subimos as escadas do porão. Atravessamos a edícula, descemos os degraus da varanda, chegamos ao quintal.

A menina começou a fazer careta. Fiquei preocupado. Ela colocou as mãos no rosto. Gemeu, tossiu, espirrou. Eram seus pulmões e olhos estanhando o ar puro e a luz do sol. Mas logo se acostumaram.

– Como aqui fora é lindo!

– Você não brinca no quintal?

– Não. Brinco apenas no meu quarto.

– Eu brinco todos os dias no quintal da minha casa.

– Olha só quantas flores. São lindas! E as árvores… Avião?

– Teco-teco enferrujado. Não voa mais.

– Queria entrar nele. Ver como é lá dentro.

Improvisei uma escada com algumas madeiras. Abri as portas do teco-teco. Depois desci. Reforcei a escada. Ela subiu. Entrou e foi pro lado do carona. Eu entrei. Decolamos. Enquanto mexia nos botões e alavancas, comecei narrar o nosso voo. Notei que a minha tripulante se divertia. Segurando o manche, imitei o barulho de motor. Ela ria e me alertou para a montanha à frente. Passamos por dentro das nuvens. Os Kamikazes, da Segunda Guerra, queriam nos pegar. Mas o nosso teco-teco era mais rápido. Inimigos ou aliados, ninguém nos alcançava. Depois de passarmos próximos da Torre Eiffel e de Pisa, deixamos para ir à Lua outro dia. Pousei de volta ao quintal.

– Aquilo é um balanço, não é?

– É, sim.

– Quero balangar. Tenho uma boneca que me esnoba só por que tem balanço.

Não a empurrei como costumava empurrar meu primo num trezentos e sessenta graus. Às vezes me faltava forca, ficava nos cento e oitenta e ele desabava de cabeça para baixo. Com a garotinha balancei bem devagar, ainda assim ela gostou.

Enquanto balançava, movendo mais os olhos que a cabeça, ela percorria o quintal.

– O que são aquelas bolinhas pretas grudadas na árvore? Ela tá doente, é? Parece eu de catapora.

– São jabuticabas. Vou pegar algumas pra você. Enchi minhas mãos e levei pra ela.

– Humm, que frutinha gostosa. Quero mais!

Começaram a cantar parabéns.

– Depois eu cato mais. Vamos pro aniversário senão comem todo o bolo.

– Você vai mesmo catar um montão assim de jabuticabas?

– Na volta vou catar dois montões: um pra você e outro pra mim.

– O vento aqui fora não me fez mal. Estou me sentindo bem.

– Só faz mal quando tá frio e garoando.

Bil nos acompanhava balançando o rabo.

– Acho que ele também quer bolo.

– Não. O Bil não gosta de bolo.

Na caminhada pela trilha que levava à casa grande, ela me contou que era um anjo e que logo, logo retornaria ao céu. Olhei para as suas costas, não encontrei protuberância que indicasse asas. Talvez por isso ainda não tivesse partido. Nada comentei. Não quis atrapalhar. Eu só queria ouvir suas historias.

Chegamos à sala onde abraçavam a tia de mamãe. Pararam os cumprimentos. Pararam de tomar ponche. Ninguém havia tocado na garrafa de serpentes. Pararam de comer o bolo de fubá. Deveriam proibir bolo de aniversário que não fosse de chocolate – mesmo que o aniversário seja de gente grande. Olhavam para nós. Uma mulher se aproximou. Separou-me de minha amiga. Ainda lembro da menina, calada, indo embora com um olhar apertado. Eu não. Eu reclamei. Gritei que ela queria bolo. Responderam que depois levariam. Disse que ela queria guaraná, pato, polenta. Nada adiantou. A festa acabou.

Na manha seguinte, antes de partir, enchi uma lata de jabuticabas. Deixei as mais maduras por cima. Bati bastante, mas a porta da edícula não abriu. Voltei à casa grande e pedi que entregassem à menina.

Eu e minha mãe jamais trocamos uma palavra sobre… Nunca soube o seu nome. Chamo-a dentro de mim de Abigail. Às vezes Abi. Nem sei de quem era filha. Mamãe sempre fingiu que não me viu entrar na sala com Abi. Nunca mais voltamos à casa dessa tia.

Quando me casei e do altar saí de mãos dadas com minha esposa, lembrei de Abigail. Andando de mãos dadas com ela pelo quintal. Revi todas as árvores e flores. O balanço. O teco-teco. Ao reencontrar Bil um sorriso incontrolável invadiu meu rosto. O fotógrafo deteve aquele instante. Do álbum, todos disseram que era minha melhor foto. Acertaram. Foi o sorriso mais sincero e feliz de toda a minha vida.

Aos sessenta e três anos, ando muito doente, farto dos dias. Sinto que está chegando o momento de reencontrar Abi. Como estou ansioso por isto! De voltar a jogar burro em pé, pega-varetas. Apanhar no dominó. Eu e Abi teremos as tardes da eternidade para montar quebra-cabeças gigantes. Espero outra vez segurar a sua mão. Ouvir suas histórias. E, bem devagar, caminharmos pelos jardins do Éden. Será que no Paraíso tem jabuticabas?

 

 

 

 

A Terracota Editora convida para o lançamento de Remédio Forte

 

Data: 22 de fevereiro de 2014 – sábado

Horário: das 15h30 às 18h30

Local: livraria Martins Fontes, av Paulista, 509 (próximo do metrô Brigadeiro)

Estacionamentos na R. Manoel da Nóbrega, 95 e R. Manoel da Nóbrega, 88 – primeira hora gratuita.

 

 

 

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