Raduan Nassar
………..Raduan Nassar: o homenageado da Balada Literária 2012
(Raduan Nassar na Balada Literária de 2012 – Foto by Felipe Rousselet / SPressoSP)
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Raduan Nassar, filho de imigrantes libaneses, é paulista da cidade de Pindorama.[1] Na adolescência, vem com a família para São Paulo em busca de melhores oportunidades de estudo. Ingressa na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco e no curso de Letras Clássicas, ambos na Universidade de São Paulo. Abandona, em seguida, o curso de Letras e começa a cursar Filosofia – única faculdade que, entre idas e vindas, viria a concluir anos mais tarde.
Nos anos 60, decidido a se dedicar à literatura, Raduan se divide entre a produção rural – chega a presidir a Associação Brasileira de Criadores de Coelho – e as atividades no Jornal do Bairro, semanário fundado pelos irmãos Nassar, do qual foi redator-chefe.
Deixa em 1974 a direção do Jornal do Bairro e leva a cabo o projeto cujas primeiras anotações datavam de alguns anos: em poucos meses, trabalhando dez horas por dia, conclui o romance Lavoura arcaica – sua obra de estréia –, publicado (com ajuda financeira do autor) em 1975.
“Quando fiz minha estréia com o Lavoura”, diz o escritor, “já tinha escrito minha obra completa”. É que a primeira versão de Um copo de cólera, novela publicada em 1978, fora escrita no início da década de 70; os contos que compõem o livro Menina a caminho e outros textos, publicado em 1997, datam dos anos 60 – exceção feita a “Mãozinhas de seda” (produzido na década de 90). E foi só.
Poucos anos após ter estreado, mais precisamente em 1984, ele anuncia o abandono da literatura para se dedicar exclusivamente à produção rural. Ora, já estava tudo escrito – antes mesmo da estréia.
Apesar de pouco extensa, entretanto, sua produção é bastante farta. Poucas vezes na literatura das últimas décadas o rigor formal e o engajamento político encontraram o simples em um universo tão poético. A obra de Raduan Nassar confirma a máxima de que um escritor escreve para morrer: não há outro destino às suas palavras senão o retorno à terra da qual brotaram.
Em Lavoura arcaica, André rememora (reconstrói) a tragédia que assolou sua família. Sufocado entre as leis rígidas do pai e o excesso de afeto da mãe, ele reivindica os seus direitos no incesto consumado com a irmã, Ana. E, depois disso, não vislumbra outra alternativa a não ser deixar a casa.
O romance, cuja estrutura é parabólica, divide-se em duas partes: “A partida” e “O retorno”. Na primeira, Pedro, o primogênito, cumpre sua missão e resgata o irmão mais novo do exílio (um quarto de pensão interiorana). Contudo, “a fuga de André mudara tudo, na aparência de nada mudar”. Mudanças irreversíveis abalaram a estrutura familiar. “O retorno”, então, é mais curto e arrebatador: marca a dissolução da família.
Consumada a tragédia, André, que assiste a tudo na condição de protagonista, não consegue se desvencilhar daquela estrutura. E, assim, transforma-se em narrador-personagem do texto que ele mesmo costura a partir dos estilhaços de memória dispersados pelo tempo irremediavelmente trágico.
Já na novela Um copo de cólera, há o embate entre as personagens “ele” e “ela”. Um acontecimento corriqueiro dispara a discussão acalorada entre o casal – um chacareiro e uma jovem jornalista. Diferentemente do romance, no qual a temática mítica confere ao texto uma temporalidade arcaica, na novela o tempo é curto, decisivo.
Enquanto Lavoura arcaica empreende um mergulho nas profundezas daquela família, desde as rememorações mais arcaicas até as (im)possibilidades para que ocorram mudanças, Um copo de cólera é um instantâneo. A linguagem colérica e teatralizada engolfa as personagens, chegando ao extremo de, numa espécie de nascimento às avessas, abrir-se “inteira e prematura pra receber de volta aquele enorme feto”.
Todavia, há diversos pontos de contato entre as duas obras: o refinamento da linguagem, os períodos longos, as metáforas sensíveis, a teatralidade, a circularidade.
Os textos são intensos, as palavras duelam entre si – mantêm uma “camaradagem com o Anjo do Mal”, confessa o escritor. “Impossível deixá-lo de fora quando eu pensava em fazer literatura. Não se pode esquecer que ele é parte do Divino, a parte que justamente promove as mudanças.”
A força do seu verbo, portanto, não mantém pacto exclusivo com o “Anjo do Mal”. Suas narrativas também escoam entre a outra margem: a “luz porosa da infância” de Lavoura arcaica, o gozo da “fantasia de se sentir embalado pelo mundo” do belíssimo conto “Aí pelas três da tarde”, os pés comparados a “dois lírios brancos” em Um copo de cólera. Sagrado e profano encontram-se em “mistura insólita”, para utilizar uma expressão do narrador de Lavoura arcaica.
“Seja como for, talvez a gente concorde nisso: nenhum grupo, familiar ou social, se organiza sem valores; como de resto, não há valores que não gerem excluídos. Na brecha larga desse desajuste é que o capeta deita e rola.” Esse comentário de Raduan sobre Lavoura arcaica é sugestivo, e, ao que parece, estende-se a toda sua obra.
O acontecimento corriqueiro que em Um copo de cólera precipita a discussão entre “ele” e “ela” é o rombo feito por uma comunidade de saúvas na “cerca-viva” – feita de plantas – da chácara. As formigas, “tão ordeiras”, violam a ordem da propriedade. É o suficiente para “o esporro” da personagem “ele”. O chacareiro não é senhor da própria chácara.
Não há cerca que não gere excluídos. “Toda ordem traz uma semente de desordem”, diz ao pai o filho pródigo, em Lavoura arcaica. Com efeito, os contornos de André perdem-se nos (des)contornos dos “corredores confusos” da casa da família. Uma vez mais, há o desajuste de que fala Raduan Nassar. Ora, a imagem do corpo de André coberto de folhas é alusiva de um retorno à natureza, além e aquém da vida. Brecha larga, híbrida, onde continente e conteúdo se confundem.
Retorno que, em Um copo de cólera, se dá ao ventre da personagem “ela” – retorno análogo, aliás, ao do conto “Um ventre seco”, no qual o narrador dispara um discurso violento endereçado à ex-mulher. Diferentemente das camadas de memória acessadas pelo narrador-personagem de Lavoura arcaica, em Um copo de cólera e “Um ventre seco”, a dimensão temporal é da ordem de um instantâneo.
Tendo o copo como continente, a temporalidade contida em Um copo de cólera tende à circularidade. Podemos pensar, nessa direção, o retorno ao ventre da mulher (mãe) – retorno que em Lavoura arcaica está sempre presente como potencialidade, e jamais se realiza. Tendo a lavoura como continente, a temporalidade contida em Lavoura arcaica tende a ser espiralada: o retorno nunca se realiza no mesmo ponto de partida.
Ora mais colérica, ora mais lírica, a poética nassariana fala eminentemente dos contrastes, empreende retornos, questiona as (im)possibilidades para que ocorram mudanças. A linguagem, arduamente trabalhada, dá muitos frutos – às vezes um tanto secos, é verdade. Mas a questão da ressiginifcação daquilo que se vive – daquilo que se é – está sempre presente.
[1] As informações sobre a biografia de Raduan Nassar e trechos do seu depoimento constam dos Cadernos de Literatura Brasileira, n. 2, 1996.
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Renato Tardivo é escritor e psicanalista. Autor dos volumes de contos Do avesso (Com-Arte) e Silente (7Letras), e de Porvir que vem antes de tudo – literatura e cinema em Lavoura arcaica (Ateliê/Fapesp). E-mail: rctardivo@uol.com.br
17 dezembro, 2012 as 0:52