Prêmios, Crítica e Campo Literário


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Bernard Pivot, há muito um dos meus ídolos do jornalismo literário, foi recentemente escolhido como presidente da Académie Goncourt, que outorga anualmente um dos prêmios literários mais prestigiosos da França, o Prix Goncourt.

Ser membro da Académie Goncourt é uma manifestação de enorme prestígio. Já houve época em que os acadêmicos recebiam um estipêndio derivado dos juros da herança dos fundadores. Hoje, formalmente, só ganham o jantar mensal, mas certamente desfrutam de um prestígio e de um poder literário – e à vezes político – consideráveis. Fundada pelos irmãos Edmond e Jules Goncourt no final do Século XIX, reúne dez membros, os titulares dos respectivos “couverts”: as reuniões formais da Académie acontecem sempre em um restaurante de Paris, o Drouant, no qual uma refeição custa mais que no tal Eleven de Lisboa, objeto da polêmica do jantar da presidente Dilma. Assim que, quem quiser desfrutar o “dîner des académiciens” , o jantar mensal, que se prepare.

Prix Goncourt, outorgado anualmente no começo de novembro, é financeiramente insignificante: são apenas € 10. Mas ser premiado é garantia de edições de altas tiragens e grandes vendas na França. Seus detentores passam a desfrutar de imenso prestígio literário, e a ser considerados como “exemplares” da “saison litéraire”.

A outorga do prêmio sempre é objeto de polêmica. Durante anos circularam insinuações e acusações de que as grandes editoras francesas manipulavam o prêmio. De fato, o próprio Pivot já declarou que Jean Giono, que o antecedeu como titular do “couvert”, “aparentemente nunca lia qualquer um dos livros da lista do Goncourt e na manhã do prêmio telefonava para o editor Gaston Gallimard para lhe perguntar em quem votar”.

Pivot reconhece que agora há menos palhaçadas como essa.

Eu mesmo, quando trabalhava na CBL e coordenava o Jabuti, soube de um editor, da comissão do prêmio, que telefonou a um jurado fazendo pressão (o jurado, que me conhecia, me telefonou espantado). Respondi que ignorasse a conversa e votasse como quisesse.

Mas os problemas dos prêmios literários, na verdade, passam longe dessas situações. Acredito, sinceramente, que a grande maioria dos jurados, em todos eles e em todos os níveis, procura cumprir seu papel conscienciosamente e com honestidade. Pode manobrar – dentro das regras do jogo – para favorecer suas próprias posições estético-literárias. Isso aconteceu no Jabuti (o caso das notas “zero” na segunda etapa), mas a questão aí foi da própria formulação das regras.

Quais, então, os problemas?

Em alguns casos, a quantidade de candidatos ao prêmio é tão grande que o manejo disso se torna quase impossível. A primeira versão da Bienal Nestlé de Literatura, que recebia inéditos, teve que terminar o formato em 1993, quando a quantidade de originais foi tão grande que foi necessário alugar um galpão e contratar turmas de alunos de letras para fazer a primeira “peneira” dos originais. Era fisicamente impossível continuar recebendo tamanha quantidade de textos.

Mesmo quando o escopo do prêmio é limitado, como quase todos os casos de hoje (livros publicados no ano anterior, por exemplo, em várias categorias), a quantidade de originais geralmente supera – em muito – o que qualquer jurado pode ler no período determinado, especialmente nas principais categorias (romances, contos, poesia).

Há, portanto, que encontrar a maneira de diminuir a quantidade de candidatos submetidos ao julgamento final. Ou, dizendo de outro modo, entender como os jurados acabam focando sua atenção em um número mais restrito de candidatos, que são realmente os objetos de consideração.

Uma das soluções mais inteligentes é a do Prêmio Portugal Telecom, no qual a primeira seleção é feita por votação de um número muito significativo de convidados, entre críticos, jornalistas, escritores, pesquisadores, etc., cujos votos resultam na lista da primeira seleção.

Não é surpresa, entretanto, que mesmo essa primeira lista tenha uma presença muito importante de autores conhecidos e editados por casas editoriais já estabelecidas. Mas nessa lista ainda entram títulos e autores e editoras relativamente menos conhecidas.

Na medida em que o processo avança, entretanto, em todos os prêmios, os finalistas sempre são autores relativamente bem conhecidos, publicados por editoras idem. Tomemos mesmo o exemplo do Bernardo Kucinsky, que foi finalista do Portugal Telecom ano retrasado, que é conhecido como jornalista, não como romancista. E a Editora Expressão Popular, um braço do MST, não frequenta a lista das mais prestigiadas. Mas Bernardo é um nome reconhecido.

Para entender a questão temos que ir mais fundo, e usar as ferramentas de quem foi além das aparências para estudar essas movimentações na área cultural. Pierre Bourdieu, e sua teoria dos campos, oferece instrumentos melhores para entender esse processo.

Olhem só.

Publica-se no Brasil mais de vinte mil títulos novos, em primeira edição, por ano. Evidentemente, literatura é só uma parte disso (e possivelmente pequena). Mas é, sem dúvida a área de maior prestígio. Como se chega ao reconhecimento e prestígio dentro dessa pletora de títulos?

Reconhecimento e prestígio no campo literário são um dos campos fascinantes da análise de Bourdieu. Entre os elementos dominantes do campo, seus controladores, estão efetivamente as grandes editoras e os críticos, especialmente os da chamada “grande imprensa”. Ser publicado por uma editora de “prestígio” é realmente meio caminho andado. Essa qualificação das editoras já é o resultado de uma cuidadosa construção feita a partir de relacionamentos, acúmulo progressivo do próprio prestígio através do apoio da imprensa. Nos casos bem sucedidos, isso tudo provoca um efeito de realimentação, como um mecanismo de transmissão que precisa cada vez de menos energia para aumentar a velocidade já alcançada pela inércia.

Na literatura, os títulos publicados pelas grandes editoras, que já acumularam prestígio, tendem a ser resenhados nos cadernos literários. Estes, por sua vez, estão cada vez mais reduzidos, o que aumenta sua importância relativa. Conseguir espaço significativo para um livro é mais fácil para uma grande editora, para um nome já conhecido, e o resultado é sempre um aumento do reconhecimento.

E caminho para os prêmios. Que aumentam ainda mais essa velocidade.

Evidentemente isso deve ser e é matizado por muitos outros fatores intervenientes, como os modismos, as inserções “transmídias” (ator de TV que vira escritor e fatura pelo seu reconhecimento extraliterário, por exemplo), as sutis e continuadas modificações no ambiente econômico, social e político no qual flutuam todos os campos das artes, inclusive o literário.

Esses diferentes componentes do campo deixam todos nele imersos de certa forma inconscientemente sujeitos a suas influências. Assim se formam paradigmas de apreciação de formas literárias (e o mesmo acontece nas outras expressões artísticas), até o momento em que passem a ser contestadas, dentro do campo, por alguns de seus elementos. Críticos que são reconhecidamente importantes e que passam a formular novos métodos de apreciação e valorização das obras, e começam a construir outros paradigmas (geralmente contribuindo também para a destruição dos anteriores). Essas novas manifestações, ou critérios de apreciação, inicialmente convivem, em ambiente de disputa, com as anteriormente prevalecentes. Algumas sucumbem e se transformam em meras citações efêmeras na história do campo literário. Outras se fortalecem e disputam seu lugar ao sol. E então viram movimentos ou escolas literárias (ou pictóricas, ou musicais, etc.).

Entender a dinâmica dos prêmios passa por aí. Não se trata de desonestidade, nem de conspirações maquinadas pelas grandes editoras. Mas premiações são, sim, um reflexo dessas imensas e continuadas disputas dentro do campo literário, e tendem a ganhá-las aqueles mais bem colocados, momentaneamente que seja, nesse universo.

 

[Artigo publicado inicialmente em seu site]

 

 

 

 

 

 

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Felipe Lindoso é jornalista, tradutor, editor e consultor de políticas públicas para o livro e leitura. Foi sócio da Editora Marco Zero, Diretor da Câmara Brasileira do Livro e consultor do CERLALC – Centro Regional para o Livro na América Latina e Caribe, órgão da UNESCO. Publicou, em 2004, O Brasil Pode Ser um País de Leitores? Política para a Cultura, Política para o Livro, pela Summus Editorial. Site: http://oxisdoproblema.com.br/ E- mail: felipe.jose.lindoso@gmail.com

 




Comentários (7 comentários)

  1. Chico Lopes, Correto. É o que acontece: bá uma inércia natural e os prêmios vão para autores e editoras mais conhecidos. Muita gente inclusive fica desanimada com concursos por causa disso, achando que não há caminho pra si, que a coisa funciona num automatismo excludente desalentador. Mas sempre há brechas, pois não há medalhões ou medalhinhas que imperem indefinidamente. No entanto, embora os prêmios sejam desejáveis e estimulantes, acho que é preciso uma certa frieza diante disso, uma consciência de que é preciso escrever sempre, evoluir sempre no fazer literário, sem que a exclusão abale as convicções literárias dos que permanecem fora de premiações. A Literatura pode existir (e existe) perfeitamente fora delas.
    18 março, 2014 as 13:31
  2. admin, Bacana o artigo do Felipe José Lindoso, que sabe das coisas e as diz com propriedade. Devo discordar (embora reconheça a complexidade e imbróglio da coisa) em relação ao exemplo (inteligente) do prêmio Portugal Telecom. Para mim, é inadmissível que um prêmio de tamanha importância não se dê ao trabalho de ler todos os inscritos. Já fui convidado pra fazer parte do primeiro Júri por duas vezes: não receberia os livros inscritos (de 400 a 500 livros, em média), teria menos de um mês pra indicar em torno de 10 da lista enviada por e-mail. Ou seja, acabaria escolhendo os que eventualmente tivesse lido, ou aqueles autores que já conhecesse, ou aqueles que quisesse inflar, ou, ou… A meu ver, o processo já começa viciado. O que fazer, então? Não sei. Eu continuo recusando a participar de tal processo. [Edson Cruz]
    18 março, 2014 as 13:49
  3. Ivone Benedetti, Eu já tinha lido esse bom artigo no site de Felipe Lindoso e agora tenho o prazer de reencontrá-lo aqui. Felipe, mesmo achando que você foi bastante generoso em sua apreciação dos mecanismos dos prêmios, foi muito bom você ter compartilhado sua experiência. No entanto, se eu quisesse resumir suas ponderações, acho que chegaria a uma conclusão melancólica: o que norteia esse sistema todo passa bem longe do valor intrínseco da obra. Juntando-se o que você diz aí ao recente artigo de Luciana Villas Boas na Folha, não é difícil concluir que só resta ao escritor a tarefa de aprender a se autopromover, ou seja, a obter prestígio como premissa para ser reconhecido como escritor. E isso é coisa que a maioria dos bons escritores não sabe fazer, nem se deveria esperar que soubesse. Para mim, um forte sinal de decadência. Mas isso é opinião pessoal. Também não sei se alguma vez foi diferente: por exemplo, antes que o mercado capitalista substituísse o mecenato aristocrático. Mas já estou indo muito longe. E, por falar em Goncourt, neste ano recebeu o prêmio um livro que trata da 1a. Guerra Mundial. Houve quem dissesse que foi meio oportunístico. Fiquei curiosa. Estou pensando em comprar. Você leu ou conhece quem tenha lido? Chama-se Au revoir là-haut. Abraço Ivone
    18 março, 2014 as 13:58
  4. LUIS SERGUILHA, INSTIGANTE TEXTO DO FELIPE LINDOSO…abre rede de conversações urgentíssimas, estimula o olhar-olhante como experiência CRÍTICA nesse embrenhamento do salve-se-quem-puder e cleptocrático do livro-mercado.A arte, os textos poéticos, a literatura etc não suportam, admitem classificações, emparedamentos, standartizações…a arte literária nada tem a ver com esses ditos prémios …só a imbecilização, a estupidificação vive disso e se aproveita desse neonarcisismo patético para se intitular como ” escritor-poeta-artista etc”…a mediocridade ainda é mais relevante quando os prémios são a base decoradora das bibliografias…miséria espiritual gritante______ nunca acreditei nos prémios literários, sempre os vi como correnteza de favores e de desfavores, energias negocistas-calculistas, ciranda de cumplicidades “entre amigos”, ardis manhosos discutidos nas jantaradas editoriais…possivelmente veja nos ditos prémios algo útil: serve para pagar contas…mas insisto, redigo estão completamente fora das ambiências da ética e da estética…queria também reforçar que nada aprendemos com a história, cometemos sempre os mesmos erros há séculos…a barbárie é contínua, os monopólios financeiros controlam tudo…e a palavra mercantilizou-se, fragilizou-se tremendamente…o jogo é muito baixo( alguns “poetas-romancistas” que se intitulam marginais e transgressivos vivem como jurados nas costas dos monopólios económicos-financeiros: estes agradecem porque os usam como forma de exorcismo…e quando leio e ouço essa coisa nojenta e aparvalhada de ” dar oportunidades aos jovens” ” aos escritores desconhecidos”..a paródia não tem fim aliada à bajulação…aliás Noam Chomsky, PASCAL, BENJAMIN, EDGAR MORIN etc…já potencializarem esse pensamento singularmente… haja sim…jogos de forças estéticas, entrecruzamentos de sensações____a arte recupera a visão do invisível-devir_____planos-infinitos-dos-circuitos-de-forças: planos de imanência onde o determinismo classificatório é destruído… “não há cores puras” disse-nos GOETHE ( longa conversa…)…temos que resistir sempre e interromper os circuitos do mundo,colocar a linguagem em situação de crítica permanente. Combater sempre a NORMALIZAÇÃO, A NORMOSE IMUNIZADORA DA VIDA, O PODER SOBRE A VIDA. Resistir a qualquer tipo de poder e deslizar em abdução no pensamento da diferença…será possivelmente esta força estética que destruirá a fixidade, a significabilidade dos críticos-colunistas-oficiais do monoteísmo….,…
    18 março, 2014 as 16:49
  5. Felipe Lindoso, Prezados, Obrigado pelos comentários. É importante lembrar que eu faço os posts a partir da experiência do mercado literário. Nesse sentido, talvez o mais ambíguo seja chamar todas as premiações de “prêmios literários”. Na verdade, todas, sem exceção, são premiações voltadas para o mercado editorial. Os autores não buscam um reconhecimento literário em abstrato, e sim colocar-se no campo de um modo mais favorável. É um fato. Quando eu penso em prêmio, o que me vem sempre à memória é o Les Illusions Perdues, do nosso venerado Honoré de Balzac. Acho que os mecanismos de premiação sempre podem ser melhorados, mas estão e estarão sempre vinculados à dinâmica do campo literário. Que eu saiba, não existiam prêmios literários antes da invenção da tipografia móvel. E a grande obra do Gutemberg, paradoxal e ambígua como tudo, foi tirar os livros do gueto dos mosteiros e jogá-los no mercado capitalista nascente. Mercado que inclui não apenas as transações monetárias. Há uma discussão bem interessante no livro The Book in the Renaisssance, de Andrew Pettegree (tem no Kindle), e também em Merchants of Culture: The Publishing Business in the Twenty First Century, de John B. Thompson (esse eu ainda não li, mas tenho boas referências), além das obras do Bourdieu, é claro. E também os livros do André Schiffrin…
    18 março, 2014 as 19:40
  6. Carlos Emílio C.Lima, Tudo isso é um nojo,nada tem a ver com a literatura.A maioria das grandes obras passa ao largo dos prêmios nada literários, principalmente aqui no Brasil.Já fui membro de comissões julgadoras em mais de cinco prêmios aqui no Ceará e eu era o único que lia todos os livros concorrentes.Juro!Todos meus colegas faziam que não ficavam espantados com esse minha abnegação.Quase todos eles já vinham com uma carta na manga, algum esquema já estava armado e eu diversas vezes consegui desarmar os estratagemas desmascarando as armações em andamento.Uma coisa que verifiquei depois é que fiquei marcado, pois que minhas ações e minha fama de leitor contumaz total passaram a correr de boca em boca pelos grupelhos e máfias que vivem disso,desse circuito de prêmios .Até agora não fui mais convidado a participar de nenhum júri.Algo que aprendi é que ha um padrão recorrente em todos prêmios,se você realmente ler todos os livros concorrendo.É o seguinte: mesmo que haja centenas de livros ,há sempre uma obra, no máximo duas, que saltam à vista como tremendamente diferentes e melhores do que todos as outras ali .Algo que destoa da escrita recorrente ou mesmo daquilo que se considera original na época em que se está imerso. Também umas cinco muito boas produções logo emergem da maçaroca geral ,mas que não são tão boas quanto aquela uma que realmente pesponta e desponta. Em seguida, uns dez por cento de obras boas mas que nada acrescentam de novo ao fluxo literário. Já metade das obras se parecem com originais mais poderosos, imitando desbragadamente matrizes puras. O resultado desse massacre cultural que vicia quase todos os prêmios literários é literalmente este:o melhor da literatura de uma época fica sempre fora do jogo de cartas marcadas.Algum dia a história de nossa literatura (uma literatura literalmente submersa) a partir dos anos noventa do século passado terá que se reescrita .Esses mais recentes trinta anos de vida literária brasileira correspondem a um engodo histórico sem paralelos em nossa cultura…
    19 março, 2014 as 13:39
  7. Tere Tavares, Todos os comentários que li aqui, só confirmam o que eu já conhecia/suspeitava. Passar ao largo desses “crivos” a que nominam de prêmios, requer maturidade do escritor no que tange à sua escrita que, jamais, deve submeter-se à tais ditaduras mercantilistas ou cartas marcadas. Marchemos!
    19 março, 2014 as 18:52

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