Petit-Fours na Cracolândia


 

PREFÁCIO

Ignácio de Loyola Brandão

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Se você acha que todos odeiam dentistas, não conhece Marina. Veja o que ela diz: “Passada no dentista. Motorzinho bom, fecho os olhos”. Se pensa que uma mulher não pode ser conquistada no Jardim da Luz, entre aqui. Se acredita que não existe um homem feliz em São Paulo, se engana. Marina descobriu um. Minha gente, tudo depende do olho e da mente e da alma. Aqui está uma nova cronista a fazer recortes de uma cidade, uma sociedade. Ela segue e colhe, captura, conquista, agarra pessoas, situações, momentos inusitados.

Descobre, sim, vejam só, uma camélia fúcsia a gargalhar flores.

Descobre sorrisos numa cidade sisuda.

Porque procura sempre poesia, alegria. Eu tinha certeza de que o lirismo desaparecera até me deparar com Marina, que revitalizou a palavra, os gestos, movimentos, ações. Ela recolhe personagens entre os anônimos, os humildes, os desgraçados, os tarados, os infelizes, solitários, humilhados, fodidos, esquecidos, miseráveis, esfomeados. Com compaixão.

Marina conhece a cidade, o mundo, ouve, conversa, fala, recolhe, engole, cala, consente, perturba-se, critica, ama, admira, detesta, sorri, chora, grita, peripatética.

São Paulo ganha com este livro uma nova cronista, uma observadora de lupa, binóculo, câmera na mente, no estômago, no coração, no sexo. Ligada, focada, numa panorâmica de 360 graus.

Marina, observadora, apaixonada, tarada, alucinada. Ela é da cidade, a cidade é dela, e, de repente, vemos tudo com outro jeito de olhar, enlouquecer, desatinar e amar.

Faltava um minuto para entregar o texto, recebi um e-mail de Marina:

Ontem, fui a Tatuí, onde recebi o Primeiro lugar na categoria Crônicas, com a crônica que dá nome ao livro “Petit-Fours na Cracolândia”. Foi o 10º Prêmio Paulo Setúbal de Contos e Crônicas, organizado pela Prefeitura de Tatuí, onde Paulo nasceu. Fiquei muito feliz. Agora é com os leitores.

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VENTRÍLOQUA POLIGLOTA

In “Petit-Fours na Cracolândia” , Editora Patuá, Marina Bueno Cardoso

 

Ela se comunicava em qualquer idioma, até nos sonhos. É isto mesmo, uma ventríloqua dessa babel que é São Paulo. Quando menos pensava, tranchan t—: estava imitando o japonês da quitanda. Viajava para o Rio de Janeiro e voltava cheia de essix, errix e xiix na língua trançada; e quando foi para o sul, no Paraná, era a própria “leite quente”.

Era advogada, e isso de pegar o jeito dos clientes falarem a atormentava. Agora imagine, numa cidade como São Paulo, que tem uma população enorme de imigrantes de todo tipo. Suas defesas no tribunal eram risíveis, não por culpa dela, mas de seu hábito de assimilar o ritmo da língua no ar.

Noite dessas, sonhou que estava na mostra do pernambucano Francisco Brennand, que traz inspirações do falo, na pinacoteca. Rodeou, rodeou, achando tudo lindo, até perceber que o artista estava lá, junto das peças, dando uma entrevista. Catálogo nas mãos, esperou-o terminar para ir pedir um autógrafo. Muito elegante e solícito – até no sonho -, estava escrevendo a dedicatória quando ela soltou um “pernambucanês”. Perguntou-lhe sobre sua estada na França, com Léger e outros papas da arte. Ele, um autêntico sedutor,soltou algo como c’est formidable votre ville madame. Ela desembestou a conversar em francês com o charmoso escultor, que ficou encantado com aquela pernambucana que falava francês e sem sotaque. Uma mulher especial, une personne très agréable. Uma madame especial, charmosa, com cabelos longos e negros, contrastando com a alvura do rosto jovial.

Foram para um café, numa mesa embaixo das árvores do Jardim da Luz. Cada vez mais encantada com o artista, soltou a franga com expressões inglesas, francesas, italianas… Uma poliglota nata, expunha seu vocabulário cosmopolita com naturalidade, seu jeito de se comunicar. Tudo muito natural, brotava com espontaneidade. Tal foi a surpresa, quando afinal, ela assumiu que era natural de São Paulo e apaixonada por idiomas, por aqueles que os dominavam e pelos sotaques. Ele encerrou a conversa abestalhado com a tal data venia de saias, que lhe proporcionou momentos simpáticos naquela tarde antes do vernissage.

Convidou-a para visitar seu museu e atelier quando fosse a Pernambuco e, contrariando a todos que a consideravam pernóstica, com sua “paulistaneidade” convicta, disse-lhe: “Foi o que eu imaginava. Alguém neste melting pot que é São Paulo, tem que passar por essas e por outras. Aqui, em alguns instantes, ao contrário de minha terra no Nordeste, já vi japonês de mãos dadas com mulata, judeu com coreana, italiano que come o tal virado à paulista no PF e português dono de pastelaria. Não se apoquente não, madame data venia. Você está dentro do contexto do planeta SP, que faz desta cidade algo que contagia e surpreende… Seus sotaques, minha senhora, fazem de você uma ventríloqua do mundo. É bem assim que tem que ser para habitar sua cidade.”

Nisto, tocou o despertador. Um sonho tão próximo do real… Merde! Levantou-se e pensou: hoje vou à pinacoteca, só pra ver, sonhar, falar e falar… Com Brennand.

 

 

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Editora Patuá

Livro: Petit-fours na cracolândia
Autor: Marina Bueno Cardoso
Gênero: Crônicas
Número de Páginas: 140

 

 

 

 

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Marina Bueno Cardoso nasceu em São Paulo. Graduada em Comunicação Social pela PUC/SP, iniciou carreira como colaboradora das revistas Nova, Cláudia, Playboy e 4 Rodas, sendo indicada como finalista do Prêmio Abril para conjunto de matérias para Nova. Trabalhou no jornal Folha de S.Paulo, no suplemento Casa & Cia. Entre 1993 e 1995, colaborou com crônicas sobre São Paulo para o Jornal da Tarde. Na área de Voluntariado fez trabalho de recreação com literatura para crianças vítimas de violência doméstica (2000), no Abrigo Pinheiros. Foi monitora de Língua Portuguesa para Educação de Jovens e Adultos, no Projeto Ilha de Vera Cruz, do Colégio Vera Cruz. Em 2012 criou a Oficina “Ler é Viver”, multimídia e temática, onde através da leitura de mundo e debates, propicia fundamentos para criação literária de alunos da Educação de Jovens e Adultos da Escola Lourenço Castanho, onde até hoje ministra tal curso. E-mail: marinacardoso@uol.com.br




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