Para que serve um capítulo
por Braulio Tavares
A divisão de um romance em capítulos vem da comodidade prática de lidar com uma narrativa em unidades separadas. E existe uma função dramatúrgica em interromper a narrativa e depois recomeçá-la; por um lado, isso permite criar um efeito de suspense que herdamos do tempo em que os romances apareciam em folhetins, e os capítulos, publicados de um em um, eram lidos com um dia ou uma semana de intervalo. Esse recurso, no século 20, foi transportado para o cinema, nos velhos seriados de aventuras, e depois para a novela de televisão.
Qualquer leitor acha-se em sua “zona de conforto” quando abre um livro e encontra o título “Capítulo 1”, ou suas variantes: “Capítulo Um”, ou simplesmente “Um”, ou a simples numeração em algarismos arábicos ou romanos.
Flann O’Brien, em seu irreverente At Swim-Two-Birds (1939) inicia o texto com “Capítulo 1” e prossegue até o fim do romance sem que apareça um “capítulo 2”.
Títulos descritivos e um índice geral são usados para permitir ao leitor a consulta rápida ao trecho da narrativa que lhe interessa. O leitor precisa saber com rapidez o que acontece em cada uma daquelas unidades? É só ir ao índice.
Em Feira das Vaidades (1847-48), William Thackeray usa títulos como “Capítulo XXVII – No qual Amélia se reúne ao seu regimento”, “Capítulo XXVIII – No qual Amélia invade os Países Baixos”. Este “no qual”, referindo-se ao capítulo, é o resíduo de um estágio do romance em que o título de um capítulo servia apenas para dar uma breve indicação do seu conteúdo.
Baudolino (2000) de Umberto Eco tem, nesse aspecto, o mais prático e sintético dos índices:
1 – Baudolino aprende a escrever
2 – Baudolino encontra Niketas Choniates
3 – Baudolino explica a Niketas o que escrevia quando garoto
4 – Baudolino conversa com o imperador e se apaixona pela imperatriz
5 – Baudolino dá alguns conselhos sábios a Frederico…
…e por aí vai. É o tipo do índice que serve muito ao leitor e talvez tenha servido ao autor, que simplesmente enfileirou as coisas que queria contar e depois foi contando, de uma em uma.
No Dom Quixote (1605-15) de Cervantes encontramos títulos descritivos como “Capítulo XXIII (Parte I) – Do que aconteceu ao famoso Dom Quixote em Serra Morena e que foi uma das mais raras aventuras contadas nesta verdadeira história” ou o espirituoso comentário de “Capítulo XXIII (Parte II) – Das admiráveis coisas que o extremado Dom Quixote contou haver visto na profunda cova de Montesinos, e cuja impossibilidade e grandeza levam a ter-se por apócrifa esta aventura”.
Em casos assim, o nome do capítulo deixa de ser uma mera indicação técnica para facilitar a procura; é um efeito literário por si só. Sem revelar muita coisa, no entanto – seria uma tremenda decepção para o leitor de um romance policial folhear o índice e descobrir que o último capítulo se intitula “Sir Henry Confessa o Crime” ou coisa parecida.
Romances modernos que de alguma forma comentam o romance antigo intitulam seus capítulos de uma forma indireta, que parece dizer muito sem dizer nada. Em O Nome da Rosa (1980), Umberto Eco intitula seus capítulos (ordenados de acordo com os horários das preces medievais) com descrições como “Completas – Onde se entra no Edifício, se descobre um visitante misterioso, se encontra uma mensagem secreta com signos de nicromante, e desaparece, mal encontrado, um livro que será procurado, em seguida, por muitos outros capítulos, nem será a última vicissitude o furto das preciosas lentes de Guilherme”.
Não é demais notar que o penúltimo capítulo, onde os mistérios do romance são revelados, inclusive a identidade do assassino, intitula-se: “Noite. Onde, para resumir as revelações prodigiosas de que se fala aqui, o título deveria ser longo como o capítulo, o que é contrário aos costumes”.
E não custa nada lembrar o imprevisível Campos de Carvalho, que assim intitula, sucessivamente, os capítulos do seu A Lua vem da Ásia (1958): “Capítulo Primeiro” – “Capítulo 18o.” – “Capítulo Doze” – “(Sem capítulo)” – “Capítulo sem sexo” – “Capítulo 99” – “Capítulo Vinte” – “Capítulo I (novamente)” – “Capítulo” – “Capítulo CLXXXIV”… e assim por diante. Sinal de uma época em que a ficção ficou livre para interferir em qualquer elemento estrutural de um romance.
Philip K. Dick, em A Maze of Death (1970), deu títulos longos e aparentemente explicativos aos dezesseis capítulos do livro: “1 – Em que Ben Tallchief ganha um coelho numa rifa”… “8 – Glen Belsnor ignora as advertências dos seus pais e embarca numa aventura marítima”… “12 – A tia solteirona de Roberta Rockingham lhe faz uma visita”… Curiosamente, nada disso acontece nos capítulos, que descrevem acontecimentos totalmente opostos. Os “dickheads” discutem até hoje qual o propósito desses títulos despistadores.
Nos exemplos citados acima, Umberto Eco se identifica com o espírito lúdico com que, no fim do século 19, Machado de Assis, em Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881) se divertia desconstruindo a estrutura de capítulos do romance. Ele alterna capítulos longos e curtíssimos, alguns com meia-dúzia de linhas, além do que poderíamos chamar de anticapítulos: “Cap. LV – O velho diálogo de Adão e Eva”, sem texto, contendo apenas os nomes dos personagens e sinais de pontuação; “Cap. CXXX – “Para intercalar no capítulo CXXIX”; “Cap. CXXXVI – Inutilidade”, com apenas uma frase; além de brincar com os títulos, como em “Cap. XXIII – Triste, mas curto” e “Cap. XXIV – Curto, mas alegre”. Machado exprime uma época em que a estrutura de capítulos deixa de ser um recurso puramente técnico e passa a ser um recurso literário, que o autor pode moldar ao seu espírito e temperamento.
A divisão em capítulos serve também para “clarear” o romance, criando espaços em branco entre as unidades e evitando o cansaço visual de um texto cerrado. Se bem que tal cansaço não impediu Guimarães Rosa (Grande Sertão: Veredas, 1956) ou Paulo Leminski (Catatau, 1975) de produzirem textos que vão do começo ao fim sem interrupções gráficas.
Note-se, também, que um recurso muito comum é o de evitar o uso da palavra “capítulo” ou mesmo de números, mas dar um “respiro” gráfico de algumas linhas em branco para dividir o texto em unidades distintas que funcionam como pausas, ou como os escurecimentos e clareamentos que pontuam a narrativo de um filme. Um exemplo disto é a estrutura de Cem anos de solidão (1967) de Garcia Márquez.
A quantidade de capítulos de um livro fica a cargo do ritmo de leitura que o autor quer criar.
Brás Cubas tem 160 capítulos comprimidos em 144 páginas (na edição que possuo). O Código da Vinci (2003) de Dan Brown, em 475 páginas, tem um prólogo, 105 capítulos e um epílogo; The ground beneath her feet (2000), de Salman Rushdie, em 595 páginas tem 18 capítulos.
Galvez, Imperador do Acre (1976), de Márcio Souza, em sua primeira edição (formato de bolso) tem 418 capítulos distribuídos por 300 páginas. Chamá-los de capítulos é força de expressão, pois não são numerados e na verdade muitos deles têm apenas uma ou duas linhas. Trata-se de intertítulos que surgem, às vezes, à razão de dois ou três por página. Em todo caso, são segmentos da narrativa maior, têm títulos, e podem ser considerados como capítulos.
É o espírito machadiano, ou talvez oswaldiano, porque Oswald de Andrade distribui por 91 páginas os 163 capítulos (numerados e titulados, felizmente) de suas Memórias Sentimentais de João Miramar (1924; fiz o cálculo pela edição da Civilização Brasileira, 1980).
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Braulio Tavares é escritor e compositor. Estudou cinema na Escola Superior de Cinema da Universidade Católica de Minas Gerais, é Pesquisador de literatura fantástica, compilou a primeira bibliografia do gênero na literatura brasileira, o Fantastic, Fantasy and Science Fiction Literature Catalog (Fundação Biblioteca Nacional, Rio, 1992). Publicou A máquina voadora, em 1994 e A espinha dorsal da memória, em 1996, entre outros. Escreve artigos diários no Jornal da Paraíba: http://jornaldaparaiba.globo.com/ Blog: http://mundofantasmo.blogspot.com/ E-mail: btavares13@terra.com.br
16 novembro, 2020 as 17:27