Os Joões-Ninguém de Machado e Noel


Propomos agora, aos apreciadores de literatura e/ou de música popular (e a quem interessar possa), uma comparação que pode parecer um tanto inusitada. Pretendemos, nestas poucas linhas que se seguem, aproximar o escritor Machado de Assis do compositor de música popular Noel Rosa.

Como todos sabem, Machado e Noel nasceram ambos onde outrora fora a capital do Brasil. Cariocas da gema — Machado nasceu no Morro do Livramento; Noel, em Vila Isabel —, tinham ambos a malandragem que costuma ser atribuída ao povo do Rio de Janeiro. (É certo que Machado disfarçava a sua malandragem “sob a neutralidade aparente das suas histórias ‘que todos podiam ler’” (CANDIDO, 1970, p. 17), como argutamente observou Antonio Candido).

Outro fato que os aproxima é o de serem ambos afligidos por problemas de saúde. Machado era epilético, além de gago quando criança. Noel tinha um problema de malformação no maxilar inferior e, além disso, morreu jovem, aos 27 anos, vítima de tuberculose.

Contudo, não é dessas coincidências entre as duas personalidades que intentamos escrever. Entre os dois, pensamos haver uma proximidade nas intenções estéticas e na maneira de observar a sociedade brasileira — tão bem representada pela sociedade carioca do final do século XIX e dos anos 1930 do século XX.

Noel e Machado colocavam em suas obras um humor todo especial. O primeiro, em suas letras, possuía um humor mais explícito, muitas vezes cômico, apesar de também fazer uso da “ironia fina”, tão típica de Machado. Por sua vez, o autor de Dom Casmurro espeta seus leitores com o que Antonio Candido chamou de “finura”. Afirma ainda o crítico sobre o estilo machadiano: “Ironia fina, estilo refinado, evocando as noções de ponta aguda e penetrante, de delicadeza e força juntamente” (CANDIDO, 1970, p. 18).

Para exemplificar nossa proposta de aproximação entre os dois artistas, escolhemos a letra de uma canção de Noel Rosa[1], intitulada “João Ninguém”, gravada em 1935. Transcreveremos a letra inteira para facilitar o trabalho de comparação[2]:

 

João Ninguém
Que não é velho nem moço
Come bastante no almoço
Pra se esquecer do jantar
Num vão de escada
Fez a sua moradia
Sem pensar na gritaria
Que vem do primeiro andar

João Ninguém
Não trabalha e é dos tais
Que joga sem ter vintém
E fuma Liberty Ovais[3]
Esse João nunca se expôs ao perigo
Nunca teve um inimigo
Nunca teve opinião

João Ninguém
Não tem ideal na vida
Além de casa e comida
Tem seus amores também
E muita gente
Que ostenta luxo e vaidade
Não goza a felicidade
Que goza João Ninguém

João Ninguém
Não trabalha um só minuto
E vive sem ter vintém
E anda a fumar charuto
Esse João nunca se expôs ao perigo
Nunca teve um inimigo
Nunca teve opinião

 

Pensamos que João Ninguém possa ser comparado a Custódio, personagem do conto “O Empréstimo”, publicado em Papéis avulsos. Nesse conto, Machado nos apresenta a história de um homem, Custódio, que vive de pequenos empréstimos e que, um dia, passa em frente ao cartório do tabelião Vaz Nunes e decide pedir-lhe dinheiro para a abertura de um negócio. O tabelião nega o empréstimo, alegando não ter a quantia de que Custódio necessitava. Por fim, depois de muito insistir, Custódio consegue uma pequena quantia com Vaz Nunes e sai pela rua feliz e satisfeito: “Custódio aceitou os cinco mil-réis, não triste, ou de má cara, mas risonho, palpitante, como se viesse a conquistar a Ásia Menor” (ASSIS, 1970, p. 237).

Comecemos, então, com o nosso trabalho de confrontação das obras em estudo.

Verificamos, logo nos primeiros versos de “João Ninguém”, a apresentação da pobreza da personagem: “João Niguém/ Que não é velho nem moço/ Come bastante no almoço/ Pra se esquecer do jantar”. E, mais adiante, lemos: “Não trabalha um só minuto/ E vive sem ter vintém”. Essa pobreza pode ser comparada à de Custódio que, como o narrador de “O Empréstimo” nos informa, andava “sem almoço e sem vintém”, “não tinha dinheiro; nem dinheiro, nem aptidão ou pachorra de o ganhar” (ASSIS, 1970, p. 228).

Na estrofe seguinte da letra, lemos: “João Ninguém/ Não trabalha e é dos tais/ Que joga sem ter vintém/ E fuma Liberty Ovais/ Esse João nunca se expôs ao perigo/ Nunca teve um inimigo/ Nunca teve opinião”. João Ninguém, assim como Custódio, não cultiva o gosto pelo trabalho. Lemos em “O Empréstimo”: “Esse Custódio nascera com a vocação da riqueza, sem a vocação do trabalho” (ASSIS, 1970, p. 228). Essa aversão ao trabalho pode ser explicada por aquilo que Roberto Schwarz afirma em seu Um mestre na periferia do capitalismo: “Segundo uma queixa corrente, a vizinhança da escravidão desmoralizava o trabalho livre. Em consequência, a ética do trabalho – um dos pilares da ideologia burguesa contemporânea – encontrava pouco crédito entre nós” (SCHWARZ, 1990, p. 99-100).

Além dessa pouca afeição pelo trabalho, João Ninguém assemelha-se a Custódio no “amor pelo supérfluo” (“E fuma Liberty Ovais”): “Custódio tinha o instinto das elegâncias, o amor do supérfluo, da boa chira, das belas damas, dos tapetes finos, dos móveis raros, um voluptuoso […]” (ASSIS, 1970, p. 228). Essa “pose” descabida, posto que não amparada por uma renda compatível, sugere-nos que João Ninguém e Custódio poderiam representar um tipo carioca – ou brasileiro – muito comum às épocas de ambos os autores aqui estudados.

No final da segunda estrofe, verificamos que João Ninguém também pode ser comparado ao Jacobina, outro personagem machadiano, do famoso conto “O Espelho”. Jacobina é um desenvolvimento do que Machado denominou de “medalhão”, em outro conto muito conhecido, o “Teoria do Medalhão” o qual, assim como “O Espelho”, também foi publicado em Papéis avulsos. Voltemos, então, à segunda estrofe da letra, onde se lê “Nunca teve um inimigo/ Nunca teve opinião”, o que nos remete ao conto “O Espelho”, no qual Jacobina explica sua indisposição para a controvérsia: “— Nem conjetura, nem opinião, redarguiu ele; uma ou outra pode dar lugar a dissentimento, e, como sabem, eu não discuto” (ASSIS, 1970, p 258). Fica clara, portanto, a similaridade entre as duas personagens. Jacobina e João Ninguém, para não se arriscarem a ter “um inimigo”, evitam ter qualquer “opinião” para fugir da “conjetura” e do “dissentimento”.

A aversão de João Ninguém ao embate certamente tem a ver com sua necessidade de viver do favor das pessoas, posto que ele não conta com recursos próprios para a sobrevivência, assim como acontece com Custódio, que vive à custa de pequenos empréstimos.

As duas estrofes finais confirmam as afirmações feitas até agora a respeito da semelhança entre Custódio e João Ninguém. Por exemplo, na última estrofe: “João Ninguém/ Não trabalha um só minuto/ E vive sem ter vintém/ E anda a fumar charuto”. A pouca aptidão ao trabalho e a necessidade de manter a aparência de um “status” elevado (“E anda a fumar charuto”), revelam-nos, mais uma vez, a semelhança entre as personagens de Machado e Noel.

Porém, o que haveria em comum entre aquele Rio de Janeiro de Machado de Assis e o dos anos 1930, em que viveu Noel Rosa, para estimular a criação de dois personagens com tais semelhanças? O que as circunstâncias sócio-históricas daqueles dois períodos tinham em comum para produzir aqueles joões-ninguém?

Os contos de Papéis avulsos foram publicados em 1882, portanto, quase 60 anos antes de a canção de Noel ser gravada. Haveria algo em comum entre o Rio de Janeiro machadiano, ainda escravista e imperial, e aquele de Noel Rosa, sob o regime de Getúlio Vargas, com seus problemas sociais e seus “malandros”, todos descendentes, de uma forma ou de outra, do regime escravocrata que perdurou por mais de 300 anos no Brasil?

Para tentarmos entender nossos dois joões-ninguém, recorreremos ao que Roberto Schwarz, em seu famoso texto “As ideias fora do lugar”, chamou de favor. Tanto Custódio quanto João Ninguém são homens livres, mas dependentes: “Nem proprietários nem proletários, seu acesso à vida social e a seus bens depende materialmente do favor, indireto ou direto, de um grande” (SCHWARZ, 1977, p. 16). Como esclarece Schwarz neste trecho, esse tipo social, o homem livre/dependente, vive na dependência de um benfeitor, o qual possui as condições materiais para exercer seu domínio sobre o favorecido.

No caso de Custódio, não há uma relação de dependência direta entre ele e Vaz Nunes, pessoa que ele mal conhecia, porém, a forma como Custódio vive em sociedade (pedindo empréstimos, sem renda e sem trabalho) o obriga a se comportar, diante daqueles que possuem bens, como alguém dependente do favor, sujeitando-se sempre aos arbítrios do outro e à consequente humilhação.

A relação de Custódio e Vaz Nunes não é a de agregado e benfeitor, ele, Custódio, pode escolher a quem se humilhar, um agregado não tem direito a essa escolha. Custódio, como vemos num trecho do conto, pode até demonstrar uma “pontazinha de despeito”, após Vaz Nunes negar-lhe o empréstimo: “— Bem, disse ele, com uma pontazinha de despeito, há de perdoar o incômodo…” (ASSIS, 1970, p. 231). Porém, como poderemos verificar, logo após esse súbito ato de sinceridade emocional, Custódio torna ao seu “estado natural” e novamente volta a humilhar-se com um novo pedido de empréstimo, agora bem mais modesto, mas que, ainda assim, será mais uma vez negado por Vaz Nunes.

Custódio ainda externará seu incômodo com as palavras de Vaz Nunes uma outra vez, quando este sugere arranjar-lhe um emprego: “— Olhe; dou-lhe coisa melhor do que quinhentos mil réis; falarei ao ministro da justiça, tenho relações com ele, e…/ Custódio interrompeu-o, batendo uma palmada no joelho” (ASSIS, 1970, p. 233). Percebe-se que a possibilidade do emprego o incomodara a ponto de o dependente “interromper” o benfeitor, coisa bastante arriscada para quem precisa o tempo todo demonstrar humildade e subserviência. Contudo, novamente, Custódio rebaixa-se e volta a pedir uma nova quantia, agora ainda menor que a anterior, duzentos mil réis, a qual, por sua vez, é igualmente negada.

Esse movimento de pedido humilhante seguido de negação do empréstimo se desenrola até o final do conto, quando, finalmente, Vaz Nunes empresta a Custódio cinco mil-réis, que ele, ao final da narrativa, “apertava amorosamente” no bolso: “Com a mão esquerda no bolso das calças, ele apertava amorosamente os cinco mil-réis, resíduo de uma grande ambição, que ainda há pouco saíra contra o sol, num ímpeto de águia, e ora habita modestamente as asas de frango rasteiro” (ASSIS, 1970, p. 237).

Por sua vez, João Ninguém, também pode ser classificado como esse homem livre/dependente, posto que é igualmente desprovido de renda e de trabalho e, como caracterizado na letra da canção, ele “Nunca teve um inimigo/ Nunca teve opinião”. Ou seja, João Ninguém, para conseguir viver sem dinheiro numa sociedade capitalista, é obrigado a não entrar em conflito com ninguém, especialmente com aqueles que o podem ajudar, seja de que maneira for. Resumindo: João Ninguém, para sobreviver, depende do favor daqueles que têm mais recursos financeiros do que ele.

Quando lemos/ouvimos: “Num vão de escada/ Fez a sua moradia/ Sem pensar na gritaria/ Que vem do primeiro andar”. O que João Ninguém poderia fazer? Reclamar da gritaria com o senhorio? Bater na porta dos barulhentos? É claro que não. Tudo indica que ele vive “de favor”. Provavelmente se trata de uma espécie de cortiço ou de algum tipo de moradia onde vive gente muito pobre. E João Ninguém é aquele que não pode sequer arcar com o baixo valor do aluguel pago por aquela pobre gente.

Portanto, a despeito da distância histórica que separa a criação dos dois personagens, Custódio e João Ninguém parecem ser resultado de determinadas condições sócio-históricas brasileiras que produziram esse homem livre, dependente do favor alheio, sem trabalho e sem renda, mas – como chamou a atenção Roberto Schwarz – a quem, ao menos, é garantida a certeza de que não é escravo: “[…] no contexto brasileiro, o favor assegurava às duas partes [ao benfeitor e ao favorecido], em especial à mais fraca, de que nenhuma é escrava” (SCHWARZ, 1977, p. 18).

A diferença entre o joão-ninguém (agrilhoado ao favor) e o escravo é que o primeiro é livre para escolher como será (e sempre será) explorado e humilhado.

 

 

 

 

[1] Afirmam Lilia Schwarcz e Heloisa Starling: “Noel consumou o processo de modelagem da forma da canção que hoje conhecemos: linguagem própria fundada nas entoações e expressões da fala cotidiana, relação entre melodia e letra, inventividade poética e tratamento musical flexível – ora acelerando na direção da marchinha, ora valorizando o percurso melódico de modo a conservar as inflexões sonoras originárias das serestas e das modinhas. Fazer canção, para Noel, significava compor samba. Com a linguagem atrelada ao dia a dia do país, seus sambas revelam os signos do projeto de modernização então em marcha – o telefone, o cinema falado, o apito da fábrica, a fotografia e a baratinha, um carro esporte conversível com lugar para duas pessoas” (SCHWARCZ, 2015, p. 376).

[2] Extraímos a letra de “João Ninguém” do CD Songbook Noel Rosa, lançado em 1991 pela gravadora Lumiar Discos. No encarte do CD, escreve Tom Jobim, intérprete de “João Ninguém” e também de “Três apitos”: “Ninguém cantou o Rio melhor que ele [Noel Rosa]. Não o Rio geográfico, de beleza sem par, mas a alma do Rio, a fala do Rio, os costumes, a malandragem, a graça, a delegacia policial, o revólver, o xadrez, o Tarzan, os bairros, o Estácio, Copacabana, Penha, Salgueiro, Mangueira, a Gamboa, o Mangue, a Favela, e a sua querida Vila Isabel.”

[3] Segundo um artigo de Carlos Heitor Cony, publicado na Folha de S. Paulo, Liberty Ovais seria a marca de cigarro que Noel fumava: https://www.academia.org.br/artigos/polemicas.

 

 

 

 

Referências bibliográficas:

ASSIS, Machado. Papéis avulsos. RJ/SP/Porto Alegre: W. M. Jackson Editores, 1970.
CANDIDO, Antonio. Vários escritos. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1970.
SCHWARCZ, Lilian Moritz; STARLING, Heloisa Murgel. Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas. São Paulo: Duas Cidades, 1977.
SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis. São Paulo: Duas Cidades, 1990.

 

 

 

 

 

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Paulo de Toledo é mestre e doutor em Literatura Brasileira pela FFLCH-USP. Poeta, publicou os seguintes livros: Torrão e outros poemas (Ed. Patuá, 2018), Concreróticos e Outros Versos (Dulcinéia Catadora, 2012), A Rubrica do Inventor (Ed. Multifoco, RJ, 2011), Hi-Kretos e Outras Abstrações (Sereia Ca(n)tadora, 2011) e 51 Mendicantos (Ed. Éblis, 2007; Ed. Amotape, 2013). Participou também dos livros Musa fugidia (Ed. Moinhos, 2017), VAIEVEM (Binóculo Editora, 2011) e LulaLivre*LulaLivro (Fundação Perseu Abramo, 2018). Colaborou com poemas, traduções, contos e ensaios para: Revista Babel, Meteöro, Cult, Revista Ciência & Cultura – SBPC, Coyote, Artéria, Revista Opiniães, Musa Rara, InComunidade, Correio das Artes, Suplemento Cultural de Santa Catarina, entre outros. E-mail: paulodtoledo@uol.com.br




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