Os Diários de Lúcio Cardoso
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Neste ano de 2012, quando se comemora o centenário de Lúcio Cardoso (Curvelo, MG, 14/08/1912 – Rio de Janeiro, RJ, 24/09/1968), será publicada ― finalmente! ― pela Editora Civilização Brasileira, sob o título de Diários, a coleção de textos desse gênero legada a nós por ele.
Nestes Diários que ora organizo, procuro reunir a totalidade dos éditos e inéditos de Lúcio, diários em que ele discorre diretamente sobre si próprio ou revela, umas vezes direta e outras indiretamente, aspectos íntimos da sua personalidade, além de efetuar leituras de, entre outros, a Bíblia, Dostoievski, Nietzsche, Baudelaire, Guimarães Rosa, Clarice Lispector e Freud; e uma entrevista. Além do Diário I, de 1960, e do Diário completo, de 1970, também colijo o inédito “Diário 0” e os dispersos que circularam em periódicos, tais como “Diário proibido”, “Diário de terror”, “Pontuação e prece”, “Confissões de um homem fora do tempo”, “Livro de bordo”, “Diário não íntimo” ― coluna do jornal A Noite, em que ele tratava de literatura, teatro, música, artes plásticas, boêmia, bem como de assuntos comezinhos ― e os que permaneceram inéditos, preservados na Fundação Casa de Rui Barbosa (RJ), e, ainda, a entrevista “Lúcio Cardoso (patético): ‘Ergo meu livro como um punhal contra Minas’”.
O “Diário 0”, que abre o volume, texto anterior ao publicado em 1960, que abrange os anos de 1942 a 1947, destoa do conjunto, pelo fato de nele Lúcio falar mais de leituras do que da vida pessoal. Mas julguei conveniente divulgá-lo, pois através de sua leitura compreenderemos melhor as influências sofridas pelo autor e como elas aparecem e/ou desaparecem em sua obra. Mais do que isto, nos ajudará a entender a literatura que Lúcio produziu entre 1934 (Maleita) e 1959 (Crônica da casa assassinada). Poderemos também perceber naquelas anotações o crítico latente no leitor voraz que ele foi. Depois, um hiato entre o ano de 1947 e 1949, o “Diário I”, de 1949 a 1951 e o “Diário II” de 1952 a 1962, totalizando vinte anos da vida de Lúcio.
Podemos vislumbrar em seus diários a crítica mordaz que ele faz a certos escritores e personalidades de sua época, algumas das quais apenas referidas por iniciais, numa tentativa de velar o nome da pessoa.
Lúcio Cardoso não media palavras para falar de seus sentimentos e visões de mundo, entregando ao leitor, de forma aberta, o seu pensamento e sua leitura do mundo, nesses diários que são as páginas de um filósofo brilhante.
Esse resgate revelará, seguramente, a excelência desses textos, cujos assuntos transgridem a forma do diário comum, vislumbrando não só o documento do relato dos acontecimentos cotidianos do autor, bem como de sua visão da literatura, das artes plásticas, da religião, da ciência, passando pela dor do existir, pelos problemas decorrentes de sua profissão de escritor, sem falar nos que surgiram quando incursionou pelo cinema e teatro, por exemplo, e mesmo das suas relações homossexuais.
Infelizmente, Lúcio não conseguiu completar a série de diários pretendida. Mas o pouco que produziu e nos legou é de uma intensidade e densidade raras vezes vista em tal gênero de texto.
Lúcio apresenta sua relação com o mundo e com o homem e, mais que tudo, consigo mesmo. Os Diários são, portanto, um documento importante de uma época riquíssima da literatura brasileira. Eles não só trazem à tona a vida de um dos mais brilhantes e inventivos escritores da língua portuguesa do Século XX, bem como destacam sua importância como relevante escritor de diários e não somente como o romancista da sua mais conhecida obra, que é, sem dúvida, a Crônica da casa assassinada.
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Trechos dos Diários de Lúcio Cardoso para a revista “Musa Rara”, de Edson Cruz
Seleção de Ésio Macedo Ribeiro
“Não sei se há em mim um vício central da natureza, sei apenas que é nela, nessa paixão voraz e sem remédio, que encontro afinidade para as minhas cordas mais íntimas.”
“Não é perder que me aflige – porque perdemos tudo, e seria inútil lutar. É perder dessa maneira, sem uma palavra, como uma flor viva que atirássemos ao fundo de uma sepultura. Ai, como eu me enganava, como eu me engano a meu próprio respeito! Julgo-me muito mais frio do que sou, e na verdade a ausência das pessoas me causa uma profunda perturbação. (Sei que despisto, que não me refiro exatamente ao que devo – porque ao certo, era de X, era da sua ausência que devia falar…)”
“O demônio é pequeno, magro e fala quase sem cansar. Está, como eu, estirado nu numa das tábuas da prateleira da sauna, e não parece estonteado com os vapores, tal como me acontece. De vez em quando comunica-me que o meu banho está errado e que não sigo exatamente as regras finlandesas: tenho de descer do canto sufocante onde me abrigo e deixar-me vergastar furiosamente com um chicote de folhas de eucaliptos. Em seguida sentar-me numa tina cheia d’água fria – e logo após subir de novo para a minha prateleira, onde quase sufoco, mal divisando o meu interlocutor através de espessas ondas de vapor. Não há dúvida de que era precisamente aqui que eu devia encontrá-lo. Revela-se logo um velho amigo da minha família, enquanto eu tremo interiormente, pensando em tudo o que poderá suceder. Possui um sítio não sei onde, uma máquina fotográfica com que apanhará instantâneos nossos, mil e uma pequenas utilidades. Recuso-me ao ridículo de sair da sauna correndo nu para me atirar ao rio; prefiro vestir-me calmamente, e só assim consigo livrar-me do importuno mestre de banhos a vapor.”
“Um problema existe, sim, e grave, mas há vinte anos que eu me debato dentro dele, e é possível que, ultrapassando-o, nada mais me afaste desses sacramentos que são a base de toda a vida eterna.”
“Ontem, num bar com Vito Pentagna, conversamos longamente sobre X. talvez eu tenha exagerado os meus sentimentos, mas hoje, procurando examinar com atenção o que se passa comigo, sinto que não tenho muito o que discordar do que disse: mais ou menos os meus sentimentos permanecem os mesmos. Não sei o que mais lamentar – mas nesta fidelidade, apesar de tudo, encontro uma garantia contra as minhas tendências à desordem e à dispersão. É pelo menos o que recolho de melhor nesta pesada prova que já tem a duração de dois anos.”
“Rompendo ontem com X, atingi o final de um movimento que vem caminhando há muito tempo. Pensando hoje nos detalhes, imagino que talvez tenha sido injusto mas, ainda assim, não é mais tempo para recuar, já que no futuro a única coisa que me espera é o longo trabalho que tenho a fazer. Pensando em certos detalhes da vida de X, sua pobreza, suas dificuldades, o escuro porão em que mora, sua timidez feita de orgulho e em geral suas dificuldades na vida prática, sinto uma enorme pena. É uma coisa triste não poder auxiliar as pessoas como seria necessário; mas também não posso me sacrificar mais e, tudo o que foi vivido, vai para este poço fundo onde guardamos as lembranças, algumas delas, como esta, das melhores de nossa vida.”
“Num carro, a caminho do Alto da Boa Vista, sigo com alguns jovens – alguns extremamente jovens – que se embriagam e rompem ampolas de Kelene, em cujo rótulo leio anestesiante. Sim, é fértil em recursos essa mocidade, mas do que precisamente procura ela se anestesiar? Nenhum deles sofre de algum mal profundo – e no entanto, esse mal pior de não sofrer de mal nenhum… – e são hábeis e versados nessas coisas de éter e entorpecentes, pronunciando esse nome – Kelene – com familiaridade, nome sem dúvida mais que usual nos hospitais, mas que ouço pela primeira vez e onde julgo distinguir inquietas ressonâncias, sombrias previsões e não sei que tom amputado e doloroso, que reflete salas de hospitais, asilos de alienados e antros escuros de vícios – todos os lugares enfim onde a alma impaciente pode passear sem arroubos finais seus gritos destruidores. Kelene, mesmo inocente, tem no frio do seu jato efêmero e cristalino, toda uma melodia secreta de delírios fúnebres, alvorecer em êxtase e desabrochamento de deliquescências reprimidas. E o que me espanta é que esses jovens moderados, de atitudes e costumes mais que burgueses, a isto se atirem com gritos de prazer e estremecimentos animais: como que da sombra alguma coisa mais primitiva e mais antiga do que o próprio homem, acorda em suas faces necrosadas o gosto do imundo.”
“É que o prazer não me interessa. Sempre o que me interessou foi o amor, e agora que vejo perder-se a possibilidade dele (ai de mim) sinto que não me interesso por outra coisa, e que o prazer sozinho não vale nada e não tem atrativos para mim.”
“Aproveito todas as aquisições da idade: afasto-me da carne pura e simples, sentindo que nela não há prazer e nem enriquecimento, mas somente melancolia e pobreza. Ah, existe um momento em que ser casto não é difícil — e a ele eu me atiro com todas as forças do ser. Não, não se pode imaginar a necessidade que eu tenho de pureza e de tranquilidade — minha impressão é a de que recomeço a viver.”
“Montherlant diz — e não pode haver testemunho mais insuspeito — que o homossexualismo é “a própria natureza”. No que tem razão, pois no ato de duas pessoas do mesmo sexo se unirem, há um esforço da natureza para se realizar até mesmo sem os meios adequados.”
“Não, a carne não é importante — pelo menos não o é senão em determinada idade. Eu me pergunto se tantas pessoas que eu vejo, exclusivamente dominadas pela carne, pela ânsia do prazer, se não serão assim. exclusivamente por uma questão de vício, de hábito, de covardia ante a necessidade de mudar a forma de vida, de procurar o divertimento em formas mais elevadas e menos deprimentes.”
“Estranho dom: Deus deu-me todos os sexos.”
“Aqui está alguém que eu conheço e cujo retrato encontro estampado em todos os jornais. T. possui dezoito anos, tez pálida, cabelos muito pretos e olhos intensamente azuis. Olhos que vivem nesta face com a melodia agreste dos felinos. Quando o conheci, surpreendeu-me a força que manifestava, calada e secreta. Fugiu de casa, agrediu algumas pessoas, roubou perto de trezentos mil cruzeiros, foi condenado e eu o revi, mais tarde, na penitenciária, numa visita que fiz àquela casa. Não trocamos palavra, ele trabalhava na seção de consertos de rádio e eu o reconheci imediatamente, pela extraordinária particularidade de seus olhos agudos, vigilantes, se bem que tivesse crescido muito e guardasse em todos os gestos um jeito novo de defesa. (Lembrei-me particularmente de um dia de carnaval, quando me levou à casa onde então morava um sórdido barracão, em companhia de um preto que ele espancava continuamente. Embriagou-se nesta noite e quebrou todos os móveis que existiam lá dentro. Eu o contemplava, cheio de admiração.) Agora acaba de fugir pelos esgotos da prisão, onde esteve durante dezoito horas, emergindo rasgado, mordido pelos insetos e coberto de lama, num dos bueiros da cidade. Preso de novo, declarou aos jornais que não suporta a monotonia da vida. E eu me lembro mais uma vez daqueles olhos sem repouso, autoritários, capazes de todos os extremos, que tentei evocar numa peça que nunca saiu da gaveta, intitulada Olhos de Gato. O que ousei pensar, decerto fica muito aquém da realidade. Ó grande Deus, equívoco da paixão e do crime!”
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Ésio Macedo Ribeiro é doutor em Literatura Brasileira pela USP, escritor e bibliófilo. Tem dez livros publicados, dentre eles, O riso escuro ou o pavão de luto: um percurso pela poesia de Lúcio Cardoso (Edusp/Nankin, 2006) e a edição crítica da Poesia completa de Lúcio Cardoso (Edusp, 2011). E-mail: esiomribeiro@gmail.com
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