O tempo de Marcel Proust e o cinema



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Meu interesse por Proust começou a partir de uma citação do livro de Massaud Moisés,  “A criação Literária’’, onde ele diz que Proust “…desrespeitando a coerência formal do romance tradicional, leva mais fundo a sondagem psicológica de Dostoievski, graças a descoberta da memória como faculdade que apreende e fixa o fluxo vital, e do tempo bergsoniano, como ‘’duração” existente fora dos limites do relógio ou do encadeamento sucessivo dos fatos. Instala-se o caos narrativo, propõe-se uma harmonia nova, estranha, feita dum tecido variegado de circunstâncias que a memória involuntária surpreende e tranca ao sabor do subconsciente ou dos imponderáveis cotidianos. … Tempo como duração existente fora dos limites do relógio….”

Na língua e no pensamento gregos havia duas formas de se encarar e vivenciar o tempo. O que eles chamavam de Chronos, gerou a palavra cronológico, e carregava o sentido de passagem do tempo, sequencial e quantitativo. O outro termo era Kairós, o tempo qualitativo, que não pode ser medido e que nos faz sentir um século passar em um instante.

Qualquer narrativa, em qualquer arte, tem que trabalhar com a questão do tempo e, no limite, criar o seu próprio tempo. Há aquelas que primam pelo uso adequado do tempo, como a música, o cinema, os quadrinhos e a literatura.

Um romance, por exemplo, construído de forma linear, com começo, meio e fim e com seus fatos e peripécias desenvolvendo-se um após outro, flerta com Chronos em sua tessitura. Mas há aqueles que instauram Kairós em seu tecido ficcional e na fruição que nos possibilitam.

O escritor francês, Marcel Proust, foi um mestre do tempo na perspectiva revelada pelo conceito grego de Kairós. É o escritor que, talvez, melhor tenha conseguido retratar a passagem do tempo vivido e rememorado no romance moderno.

Como seria o casamento de uma obra como a de Proust com o cinema,  a chamada sétima arte, hoje tão pobrezinha de roteiros e de histórias?

O diretor alemão Volker Schlondorff convidou o grande roteirista Jean Claude Carrière e juntos realizaram, em 1984, um filme baseado na obra de Marcel Proust. O filme chama-se Um Amor de Swann e basicamente foca-se no romance No Caminho de Swann ou, mais exatamente, no segundo capítulo do primeiro livro do grande romance de Proust.

Sabemos que o romance de Proust, Em Busca do tempo Perdido, foi elaborada em sete romances que se entrelaçam, formando um todo harmônico e musical como uma sinfonia, ou polifonia, diriam alguns. A metáfora da música é mais do que adequada quando falamos em tecer o tempo com o grau de refinamento e destreza que Proust realizou.

Uma sinfonia, a rigor, é uma composição musical escrita para orquestra, geralmente estruturada em quatro movimentos. No período clássico, era estruturada da mesma maneira que a sonata: o primeiro movimento rápido, com a exposição, desenvolvimento e recapitulação dos temas principais, podendo algumas vezes ter uma introdução lenta; o segundo movimento sempre lento ou moderado, sem uma orientação determinada quanto à forma, e o terceiro movimento mais rápido que o primeiro, geralmente estruturado como um rondó.

Polifonia, em música, é uma técnica compositiva que produz uma textura sonora específica, onde duas ou mais vozes se desenvolvem preservando um caráter melódico e rítmico individualizado,[1] em contraste à monofonia, onde só uma voz existe ou, se há outras, seguem a principal em uníssono ou à distância de oitava(s), ou apenas tecem floreios em torno da principal.

Para a lingüística, polifonia é, segundo Mikhail Bakhtin, a presença de outros textos dentro de um texto, causada pela inserção do autor num contexto que já inclui previamente textos anteriores que lhe inspiram ou influenciam. A polifonia é um fenômeno que não se confunde com heterogeneidade enunciativa, pois este é um fenômeno que diz respeito à possibilidade do desdobramento das vozes no texto, enquanto aquele é a multiplicidade de vozes.

Bakhtin usa o conceito de polifonia para definir a forma de um tipo de romance que se contrapõe ao romance monológico. Os textos que serviram de base às suas reflexões acerca desta temática são os de Fiodor Dostoiévski. Romance polifônico é aquele em que cada personagem funciona como um ser autônomo com visão de mundo, voz e posição própria no mundo.

Isso posto, sabemos que o romance de Proust é composto pelos volumes No Caminho de Swann , A Sombra das Raparigas em Flor; O Caminho de Guermantes; Sodoma e Gomorra; A Prisioneira; A Fugitiva; e O Tempo Redescoberto.

Sabemos também, que o último capítulo do último volume, foi escrito imediatamente após o primeiro capítulo do primeiro volume, o que por si só, demonstra que o romance não foi concebido linearmente, pois a matéria central entre os dois foi escrita depois.

Proust quis representar por intermédio do narrador, indiferente à cronologia e à organização lógica, as suas próprias questões existenciais. O Narrador, que é o personagem principal, coloca o problema de uma vocação que se debate até tomar consciência de si mesma no último livro do romance.

Em uma brilhante tese sobre Proust (e que eu saiba ainda não editada em livro) a pesquisadora Maria Arminda levantou várias questões que nos interessam, por exemplo:

se o romance tivesse, um caráter puramente cronológico e contasse apenas a estória de um herói em conflito com o mundo, para lembrar a fórmula de Lukacs, duas divisões se ordenariam simplesmente como episódios da aventura global. Tal não ocorre, porém, na narrativa de Proust porque ela não conta só a estória do protagonista, mas também a estória do seu duplo, o narrador em busca de assunto para o livro que deseja escrever1.

No Caminho de Swann conta-nos a estória de Swann e sua paixão por Odette de Crécy, tendo como pano de fundo o clã dos Verdurin, burgueses enriquecidos, de origem obscura, que, com um séquito de fiéis e suas relações de aparência e dependência mútua, revelam-nos em seu microcosmo, a visão crítica que Proust tinha da sociedade de sua época.

Embora o narrador do romance esteja ainda distanciado do mundo que narra, o mundo narrado não é algo objetivo, como nos romances realistas, e sim uma vivência subjetiva.

Poderemos identificar seu foco narrativo, como sendo uma visão por trás, ou acima dos acontecimentos, de acordo com a tipologia que o crítico Norman Friedman2 define como autor onisciente intruso (Esse tipo de narrador tem a liberdade de narrar à vontade, de colocar-se acima, ou por trás, adotando um ponto de vista divino, como diria Sartre, para além dos limites de tempo e espaço. Pode também narrar da periferia dos acontecimentos, ou do centro deles, ou ainda limitar-se e narrar como se estivesse de fora, ou de frente, podendo, ainda, mudar e adotar sucessivamente várias posições).

Para Álvaro Lins, outro grande crítico literário da antiga (sem nenhum sentido pejorativo no termo, muito pelo contrário),

(…) ainda que discreta na aparência e objetivamente numa posição modesta, como é o caso do Narrador em A la recherche du temps perdu, ela é sempre a personagem principal visível ou invisível, sempre está presente de fato, ou subjetivamente, no desenvolvimento da narração, excetuando o intermezzo que é Un amour de Swann3.

Eu diria que até neste intermezzo, o narrador que, aparentemente, está por trás da cortina se insinua, como no trecho a seguir:

(…) Meu avô justamente conhecera, coisa que não se poderia dizer de nenhum de seus amigos atuais, a família desses Verdurin. Mas perdera todo contato com aquele a quem chamava “o jovem verdurin” e que considerava, generalizando um pouco, como decaído entre os boêmios e a gentalha, embora conservasse muitos milhões. Um dia recebeu uma carta em que Swann pedia uma apresentação para os Verdurin. “Alerta! Alerta”, exclamara meu avô. – Isso não me espanta, era mesmo por aí que Swann devia acabar. Bonito meio! Mas não posso fazer o que me pede porque não conheço mais esse cavalheiro. E depois, deve andar aí A algum rabo de saia, e eu não me meto nessas coisas. Ah! Vai ser divertido se Swann se engraçar com os Verdurin!
E ante a resposta negativa de meu avô, foi a própria Odette quem levou Swann à casa dos Verdurin.

(No Caminho de Swann, p. 197-198)

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Mas a maior parte desse intermezzo centra-se no ponto de vista de Swann, tornando-o a personagem principal. Podemos dizer que, na criação do narrador, Proust aproveitou de si mesmo a estrutura psicológica, moral e artística, emprestando-lhe, ao contrário, episódios biográficos inventados ou observados em outros.

Para Maria Arminda, Proust opera uma verdadeira revolução

no gênero narrativo pelo simples fato de inverter duas posições habituais: o narrador não está mais voltado para o mundo, mas o mundo é que passa a existir em função do narrador4.

Alguns problemas técnicos, dentro da coerência do enredo, são resolvidos com o narrador transformando-se em voyeur da vida privada de alguns de seus personagens ou mesmo tornando-se onisciente. Assim o leitor tem acesso direto aos sentimentos de Swann por Odette. Entretanto, como diz Maria Arminda,

para conservar aparentemente a focalização no herói-narrador, Proust semeia o seu relato de locuções modalizantes (talvez, como, parece, provavelmente)… e recorre à referência ao informante vago para justificar um conhecimento preciso de dados que o protagonista dificilmente poderia obter5.

Assim, sobre a vida de Swann, já no capítulo 1 podemos encontrar:

E assim ficava eu muitas vezes até de madrugada, pensando nos tempos de Combray, em minhas tristes noites de insônia, e em tantos dias também, cuja imagem me fora mais recentemente evocada pelo sabor – “o perfume”, como diriam em Combray – de uma taça de chá e pela ligação estabelecida entre recordações minhas e certas coisas relativas a um amor que tivera Swann antes de meu nascimento e que só vim a saber muitos anos depois de deixar a cidade, e isto com essa precisão de detalhes mais fácil de obter às vezes quando à vida de pessoas mortas há séculos do que com referência a nossos melhores amigos, e que parece impossível, como parecia impossível conversar de uma cidade para outra – enquanto se ignora o modo como foi contornada essa impossibilidade.

(No Caminho de Swann, p. 182-183)
Para ampliar um pouco mais a relação entre o que está sendo narrado e o narrador, vale ressaltar que, paralelamente, tanto Swann como o narrador, farão através das relações com o círculo dos Verdurin, suas experiências fundamentais. As do narrador serão explicitadas nos livros subsequentes.

No filme de Schlondorff, a identificação do narrador com Proust é totalmente abolida. O narrador é o protagonista Charles Swann que utilizando basicamente de um monólogo interior, aliado à rememoração feita pela técnica de “flashbacks” nos conta suas venturas e desventuras com Odettte de Crécy e o círculo dos Verdurin.

Tanto a literatura como o cinema, de maneira geral, estão intimamente ligados pela conotação. A denotação, por sua vez, já se encontra presente antes do empreendimento artístico. Como diz Metz, [METZ, Christian, A Significação no Cinema.] o grande crítico francês de cinema,

o filme, como a linguagem verbal, é suscetível de ser usado apenas como veículo, sem qualquer preocupação artística, reinando sozinha a designação (=denotação). Por isso, a arte do cinema, bem como a arte do verbo, será elevada de um grau: é, em última análise, pela riqueza de suas conotações que o romance de Proust se diferencia – do ponto de vista semiológico – de um livro de cozinha, o filme de Visconti de um documentário cirúrgico6.

[Além do sentido referencial, literal, cada palavra, ou imagem/fotograma, remete a inúmeros outros sentidos, virtuais, conotativos, que são apenas sugeridos, evocando outras idéias associadas, de ordem abstrata, subjetiva.]

Nesse sentido, apesar de ligados na busca desta expressividade artística, cinema e literatura desenvolveram seus próprios recursos de expressão. Parece óbvio, mas é bom ressaltar, que filmar um grande romance, ou parte dele, como o de Proust, não é garantia de se conseguir um grande filme.

Um filme é suscetível de oferecer vários modos de interpretação, de admitir vários níveis de leitura. Seus procedimentos narrativos vão desde o uso da Imagem e do som, até os usos e movimentos da câmera, chegando por fim a montagem.

As imagens podem ser a materialização objetiva de um conteúdo mental preciso; a presença de um objeto que possui valor simbólico; a presença de um jogo de cena com valor dramático; resultado da iluminação; combinações ou ausência de cores; distorções da imagem, fusões, aparições e desaparecimentos; superposição de personagem, objeto, cena, inscrição; panorâmica rápida; desenho animado, etc.

O som como procedimento narrativo e expressivo é utilizado de várias formas: as falas; a música (como contraponto simbólico em relação à situação ou às falas); os ruídos; o silêncio (como símbolos de angústia, solidão, morte); os sons em off (que abrangem as falas, a música e os ruídos).

Para a câmera e seus usos, podemos notar: o tamanho dos planos (geral, primeiro plano, detalhe, inserção); os ângulos de filmagem; enquadramentos; os movimentos da câmera para trás, para frente, vertical; panorâmicas; trajetória; modificação do movimento, imagem acelerada, câmera lenta, congelamento, inversão.

Na montagem a narrativa se explicita: ela pode ser rápida; lenta; por paralelismo; plano intercalado; a elipse (supressão de planos importantes por seu conteúdo dramático); a passagem de um plano de realidade a um outro; flashbacks.

Segundo o grande teórico de cinema Marcel Martin, no complexo espaço-tempo que modela o universo do filme, é o tempo que estrutura fundamentalmente a narrativa cinematográfica, sendo o espaço uma referência secundária.

“É, portanto, em relação à sua maneira de tratar o tempo que deve ser analisada a construção de um filme”7.

Ele sugere os seguintes tratamentos (em relação ao tempo): o tempo condensado (supressão dos tempos fracos da ação); o tempo respeitado (duração da ação idêntica à do próprio filme); o tempo abolido (fusão de temporalidades diferentes num espaço fílmico único); e tempo revertido (retorno ao passado ou flashbacks).

O filme de Scholondorff  usa o tratamento do tempo revertido em abundância. Momentos marcantes para a paixão de Swann são todos rememorados em flashbacks: a primeira visita de Odette; a orquídea nos seios de Odette; o crisântemo nas primeiras despedidas; um jantar com os Verdurin. Fica-nos a impressão retrospectiva da narrativa, um tempo que se prende ao já vivenciado.

Em Proust a narrativa é vivenciada no presente. O seu tempo não é apenas retrospectivo, mas também prospectivo. No livro, até o momento do aparecimento das orquídeas (onde as catléias ‘precisam ser arranjadas’) são quarenta e duas páginas de tessitura, onde o clã dos Verdurin é apresentado; Swann conhece Odette: começa a freqüentar o clã e finalmente vê-se envolvido na teia de Odette e dos Verdurin.

A questão do tempo em Proust está ligada, intimamente, com a memória involuntária, que é o afloramento à consciência de determinada lembrança a partir de uma sensação análoga à outra experimentada anteriormente. No filme, com o procedimento do tempo revertido, o diretor consegue, em alguns momentos, se aproximar deste funcionamento da memória involuntária.

No livro, por exemplo, Swann ao ouvir a sonata de Vinteuil, quando Odette já o despreza, sente voltar o tempo em que era amado por ela. No filme, ao se despedir de Odette – que vai à ópera sem ele – ao receber um crisântemo, lembra-se (em flashback) de ter recebido um crisântemo quando Odette ainda o desejava.

Ou quando saboreia uma madeleine (um biscoito fino) molhada no chá e sente uma profunda alegria ao relembrar da cidadezinha onde passava férias e de toda a infância, da atmosfera de todo o período de seu passado aflorado na consciência, neste exato instante, pelo gosto do biscoito em sua boca.

A questão do tempo, no cinema e no romance, não é apenas uma questão de se estabelecer a proporção entre a importância do evento e o tempo destinado ao seu tratamento.

No romance, a duração percebida está relacionada à sintaxe. Os vôos estilísticos e as digressões retardam, por exemplo, o fluxo da narrativa. E neste aspecto, o romance de Proust é um verdadeiro marco narrativo. Proust cria e recria o tempo com maestria, gerando um ritmo extremamente lento, que parece dissolver a ação.

Há quem identifique no estilo de escrita de Proust, cheio de idas e vindas, com avanços e recuos alternados e simétricos, frases e períodos longuíssimos, uma correspondência aos impulsos de uma respiração que luta para vencer a falta de ar, pelo fato dele ser asmático desde criança. Até já nomearam esse estilo de “rosácea de Proust”.

No cinema, a questão está relacionada às questões de estilo e montagem. É a narrativa depurada na montagem que cria o tempo. Para citar outro teórico do cinema, Robert Stam: “A narrativa envolve uma temporalidade tríplice: o tempo da história, o tempo do discurso e o tempo de produção do discurso”8.

O tempo da história pode abranger uma vida toda. O tempo do discurso compreende o tempo necessário para se ler o romance, ou assistir ao filme. O tempo de produção do discurso é como esta história é contada no tempo, ou seja, esta vida toda pode ser contada em um dia.

A história de Swann, no romance, é diluída nos três capítulos de forma não linear. No intermezzo que nos interessa é narrado seu amor por Odette até o desvanecer deste por completo.

No filme, a história de Swann abrange até quase o final de sua vida, casado com Odette, com uma filha e doente. O diretor usa os recursos de tempo condensado, tempo abolido e tempo revertido dando-nos a impressão que o tempo do discurso cinematográfico é quase inexistente. Busca, também informações dos outros capítulos do romance — e até dos outros livros — para compor os personagens de forma precisa, e arrematar sinteticamente a história.

A relação do romance de Proust e o cinema, se justifica também, ao lembrarmos a colocação de T.W. Adorno sobre a “posição do narrador”, dizendo que  “…Quando em Proust o comentário está de tal modo entrelaçado na ação que a distinção entre ambos desaparece, então isso quer dizer que o narrador ataca um elemento fundamental na sua relação com o leitor: a distância estética. Esta era inamovível no romance tradicional. Agora ela varia como as posições da câmera no cinema: ora o leitor é deixado fora, ora guiado, através do comentário, até o palco, para trás dos bastidores, para a casa das máquinas.”

Não se pode negar em Proust, a influência bergsoniana na apreensão do tempo como “duração” fora do encadeamento sucessivo dos fatos. Mas, não seria totalmente verdadeiro conceituar o romance proustiniano como uma adequação literária da filosofia de Henri Bergson, como muitos o fazem.

Ainda segundo Maria Arminda

só mais tarde, e assim mesmo superficialmente, veio Proust a conhecer a filosofia de Bergson, tendo sempre negado a existência de uma relação direta entre a sua obra e as teorias do filósofo, conforme se verifica na entrevista concedida ao periódico Le Temps de 13 de novembro de 1943 e se depreende de sua correspondência. … De qualquer forma, a análise detalhada dos temas comuns à obra do filósofo e à do romancista revela antes oposição que identificação de tratamento, o que nos leva a ver, em ambos, os representantes mais significativos da reação às barreiras colocadas pelo positivismo contra o livre exercício do pensamento criador, e a considerar a coincidência das questões tratadas antes como resultado do fato de estarem ambos envolvidos pelo fluxo dessa reação do que de uma influência direta.9

Quanto à memória, o denominador comum entre Bergson e Proust está na crítica de ambos às limitações da memória ligada à inteligência. Bergson considera que a totalidade do passado é conservada, desde o despertar da consciência. Para Proust, a memória aparece como um abismo, de onde só um pequeno número de lembranças é resgatado.

Mas a julgar pelo caudal de sua obra, o que para ele é pequeno, em nós é quase afogamento.

Em suma, o filme de Schlondorff resolveu bem algumas questões do romance. Especialmente a configuração das personagens e da época. Ao restringir seu foco, ao segundo capítulo, o diretor teve facilitado sua tarefa de contar a história de Swann e Odette.

Mas o primeiro livro do romance de Proust ainda continua caudaloso, gerando muitos afluentes, a espera de sua redescoberta. O que dizer, então, do conjunto da obra Em Busca do Tempo Perdido? Ela ainda aguarda o seu tempo.

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Notas:

1 SOUSA-AGUIAR, Maria Arminda de, Introdução à Proust. Rio de Janeiro: Univ. Fed. do R. de Janeiro, Div. de Documentação, 1979 pags. 11-12.
2 LEITE, L.C.M., O Foco Narrativo, São Paulo, Ática, 1993 pags. 26-27.
3 LINS, Álvaro, A Técnica do Romance em M. Proust. Rio de Janeiro, José Olynpio, 1956 pag. 67.
4 SOUSA-AGUIAR, Maria Arminda de, Introdução à Proust, Rio de Janeiro: Univ. Fed. Do R. de Janeiro, Divisão de Documentação, 1979 pags. 135,136 e 141.
5 Idem
6 METZ, Christian, A Significação no Cinema. São Paulo: Perspectiva, 1972 pags. 94-95.
7 MARTIN, Marcel, A Linguagem Cinematográfica. São Paulo: Brasiliense, 1990 pag. 257.
8 Idem, pág. 221.
9 SOUSA-AGUIAR, Maria Arminda de, Introdução à Proust. Rio de Janeiro: Univ. Fed. Do R. de Janeiro, Divisão de Documentação, 1979 pags. 199-200.

 

Bibliografia consultada (além das indicadas nas notas):

PROUST, Marcel. No Caminho de Swann. Tradução: Mario Quintana. São Paulo: Globo, 1990.
PROUST, M., GALLIMARD, Gaston. Correspondência. São Paulo: Ars Poética: Edusp, 1993.
MAUROIS, André. Em Busca de Marcel Proust. São Paulo: Siciliano, 1995.
MOISES, Massaud. A Criação Literária. São Paulo: Melhoramentes, 6ª ed., 1973.
ADORNO, T.W. Textos Escolhidos (Adorno, Benjamim, Horkheimer). Col. Pensadores. São Paulo: Ed. Abril, 1983.
SILVEIRA, Alcântara. Compreensão de Proust. Rio de Janeiro: José Olympio, 1959.
BERGSON, Henri, Cartas, Conferências e outros escritos. São Paulo: Abril Cultural, Coleção “Os Pensadores”, 1979.
STAM, Robert. O Espetáculo Interrompido: literatura e cinema de desmistificação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.
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Filme: Um Amor de Swann.
Diretor: Volker Schlondorff.
Produção: Alemanha/França.
Roteiro: Jean Claude Carrière, 1984.

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Site:
http://www.tempsperdu.com/

 

 

 

 

 

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Edson Cruz (Ilhéus, BA) é poeta, editor e revisor. Desgraduou-se em muitas coisas: Psicologia, Música e Letras. Foi fundador e editor do site de literatura Cronópios (até meados de 2009) e da revista literária Mnemozine. É professor no Curso de Criação Literária, da UnicSul/Terracota Editora, no módulo Poema. Lançou em 2007, Sortilégio (poesia), pelo selo Demônio Negro/Annablume e, como organizador, O que é poesia?, pela Confraria do Vento/Calibán. Lançou, também, uma adaptação do épico indiano, Mahâbhârata, pela Paulinas Editora. Em 2011, lançou Sambaqui, livro contemplado pela Bolsa de Criação da Petrobras Cultural. Em janeiro de 2012, finalmente colocou no ar seu novo projeto: MUSA RARA. Escreve com frequência no blog: http://sambaquis.blogspot.com E-mail: sonartes@gmail.com




Comentários (6 comentários)

  1. CHICO LOPES, Li todo o Proust que pude e também um tanto do que se escreveu sobre ele (assunto inesgotável). Infelizmente, o filme “Um amor de Swann” é digno, uma adaptação com certos achados, mas não ficou um filme à altura de todas as nuances extraordinárias que o livro tem (e é difícil imaginar que diretor de cinema poderia fazer um equivalente satisfatório da tremenda arte de Marcel). Acho que o principal problema é Jeremy Irons como Swan. Ele é murcho, inexpressivo. Alain Delon tem certo toque perverso preciso como o Barão de Charlus, mas Ornella Muti, embora linda, é fraca como Odette de Crécy. Restam a fotografia, muito bonita, e a direção respeitosa de Scholendorff. Mas o livro de Proust é um pouco um daqueles que resistem, como objeto altamente literário em sua especificidade, a uma adaptação verdadeiramente fiel do cinema. Luchino Visconti planejava filmar o septeto “Em busca do tempo perdido”, mas morreu antes disso. Chegou até a pensar em convidar Greta Garbo, já retirada do cinema, para fazer a Rainha de Nápoles.
    4 abril, 2012 as 21:54
  2. Daniel Lopes, Ainda não consegui penetrar no universo de Proust, talvez, com o tempo. Comecei a ler no Caminho de Swann duas vezes, mas não cheguei a terminar. Não tinha muito a ver com o meu momento, aquela coisa de esperar… De não conseguir dormir sem um beijo da mamãe. Eu sei, já se está preparando aí o tecido do ciúme mais tarde, mas acabei desistindo. Eu sei tem tb a coisa da memória que Bergson define como correlato de Alma. Tudo muda, mas o que nos mantém o mesmo, ainda que sejamos outro, é a memória. Acho que, na verdade, meu Proust é Céline. A matéria de Céline também é a memória. Ele tb busca cristalizar pela narrativa um tempo morto. Mas tudo o que em Proust é orquestral, harmônico, de bom gosto, em Céline é grosseria, truculência, violência, cinismo, mas há tb, sempre, muita ternura. Tem mais a ver com o meu mundo. Sempre fui mais atraído pelos marginais. Gostaria de ver Viagem ao fim da noite, ou Morte a crédito nas telas. Quem sabe o que dará? Em breve teremos aí a estreia de um clássico da marginália nas telas, o On the road, não nutro grandes esperanças, mas vamos ver no que vai dar. Hiroshima mon amour, ali a questão da memória foi tratada de maneira sublime na telona. Abraço.
    5 abril, 2012 as 10:48
  3. CHICO LOPES, Daniel: Gosto muito de Céline e ele, como Genet e outros autores bem marginalizados, leu Proust com proveito. Proust é um manancial de contradições e arte, não tem nada de curtição acadêmica, a não ser pra quem prefere vê-lo pelo ângulo aristocrático e pedante (e, infelizmente, há muitos proustianos rançosos, que não entenderam a arte ambígua de Marcel). A tendência, pra quem não conhece Proust, é vê-lo como um “burguês decadente” e outras bobagens daquelas leituras ideológicas da esquerda luckácksiana. Proust é um tremendo revolucionário da forma do romance e “A busca…” é, sem dúvida alguma, o maior (e melhor, não é apenas extensão) dos livros já escritos, tornando todos os outros escritores quase pífios à sombra dele. Adoro Céline, “Viagem ao fim da noite” é genial, mas temo que também não chegue ao cinema da maneira certa. O cinema produz gênios específicos, Welles, Hitchcock, Kubrick, Fellini, Lynch e outros. Mas, se formos analisar com cuidado, não é uma arte tão grande quanto a Literatura, porque não há no cinema nada que, em grandeza, se equivalha a Proust. A literatura tem uma plenitude, contemplando a imaginação, que o cinema infelizmente não tem. Claro que é só uma opinião, talvez só uma impressão, mas fica o registro.
    5 abril, 2012 as 12:07
  4. Daniel Lopes, Entendo Chico Lopes. O que eu quis dizer tb foi o seguinte. Acho que, quando tentei ler Proust, eu é que não estava preparado, entende? Acho que Em Busca… é um romance que exige mais maturidade do leitor. Aquele não era o meu momento. Reconheço o valor da obra, é incontestável. Também tem o seguinte. Fico guardando uma leitura como essa, para quando tiver tempo, sabe? O diacho é que estamos o tempo todo correndo. Abração, amigo.
    5 abril, 2012 as 12:27
  5. edson cruz, opa, amigos. nenhum comentário sobre meu texto? rs..
    5 abril, 2012 as 13:26
  6. Marcia Barbieri, Uma grande aula sobre Proust, memória e tempo qualitativo. Não dá para pensar em Proust e não divagar sobre o Kairós. Aliás, a Arte sempre ganha quando o Kairós toma o lugar do Chronos. Um belo texto!
    5 abril, 2012 as 13:37

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