O som da cor da letra
Quercus pedunculata
Por Edson Cruz
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Eu também gosto de ler aqueles que aplicam um grande repertório em coisas aparentemente pequenas. Meu anseio nas Letras é poder com a escrita entoar uma melopeia inesquecível e pegajosa. De mero José / a impossível João – meu esmero. Contrariar Platão. Apropriar-se das coisas belas como se elas não fossem difíceis. Ao final das contas, ao final do livro, ao final da noite, ao final da vida, tudo é uma questão de repertório. Ter ou não tê-lo. Eis a canção.
O livro do Carvalho (seu nome em Latim, no título acima) é coisa de craque. Dribles e bola na rede da linguagem o tempo todo. Um diálogo com a nata de nossa canção popular, nossos poetas da canção – talvez, o nosso maior bem cultural de exportação. E já disse o bardo de Curitiba: Num país pobre, / não se pode desprezar / nenhum repertório.
A viseira de nossa pretensa erudição, normalmente, deixa passar versos como estes, que soam como ultimatos: se você não me nota / meu amor /a dor me brota da pauta / como a última nota / do último cantor. Parece simplório, sem um padrão métrico definido. Com uma rima sem surpresa entre amor e cantor. Mas, entre o amor e o cantor, se intromete a dor. Não é a rima gasta do amor com dor. É a dor como o último motor do último cantor. A nota que brota da pauta. O ponto final de um amor não correspondido. Uma semibreve escrita entre as linhas paralelas de duas vidas que não se encontram. A antiarte do desencontro gerando arte na voz do cantautor.
E o que dizer dessa rima rica, mais que perfeita: nota (verbo) transformando-se em nota (substantivo feminino, e só poderia ser feminino). A indiferença transformando-se em som e sentido. A transformação semântica dando-se no horizonte da canção. Sem a hesitação entrevista por Paul Valéry quando tenta definir o que é poesia.
A poesia de Carvalho não hesita. Vai na fonte, direto ao ponto. Quem hesita somos nós que queremos sair cantando-a do início ao fim. Pensamos que é um bolero, mas o lance se transforma em blues. Em anhangablues.
Há bandidos que sabem Latim. Há linguistas que sabem cantar. Que os deuses os protejam.
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galatéia
para ceumar & céu
vou me reinventar
pra poder te criar
vou te inventar
pra poder conversar
vou ventar
pra poder te balançar
vou me esticar
pra poder te alcançar
vou te desenhar
pra poder te olhar
vou te musicar
pra poder te cantar
vou te embaralhar
pra poder jogar
vou me jogar
pra poder te ganhar
vou te encantar
pra poder te atacar
vou ensaiar
pra poder te tocar
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a chave da minha nave
para tulipa ruiz & alzira espíndola
me chame
& me desarme
com seu charme
me ame
sem alarme
só você cabe
sem nada
que falte
ou que sobre
me dobre
me cave
só você sabe
só seu sabre
me abre
só sua clave
faz a pedra
virar ave
só você tem
a chave da minha nave
só você tem
a chave da minha nave
só você tem
a chave da minha nave
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ultrapassalém
para josé miguel wisnik & celso sim
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não marco
passo
disparo
o arco
varo
o aro
& passo
o marco
num traço
raro
no espaço
ultrapasso
o pássaro
& passo
a ultrapássaro
Lançamento: https://www.facebook.com/events/548791228658423/
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Paulo César de Carvalho é bacharel em Direito e mestre em Lingüística pela USP, professor de Gramática, Interpretação de Texto e Redação do curso Anglo Vestibulares, do Marcato, co-autor do material de Língua Portuguesa do Sistema Anglo de Ensino, autor dos livros Tópicos de Gramática e Tópicos de Interpretação de Texto e Redação (Editora CPC – www.cpc.adv.br ou livraria@cpc.adv.br). Foi colaborador da revista Discutindo Língua Portuguesa. Foi editor do boletim Texto & Cultura, colaborador das revistas Arte & Informação, Livro Aberto e Libertárias e consultor da TV FUTURA no programa Tá Ligado? Sua dissertação de mestrado intitula-se Fragmentos epistolares de um discurso amoroso: elementos para uma análise semiótica do estatuto do gênero “carta de amor”.

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