O lugar do poeta e da poesia hoje


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O texto que nos foi proposto como ponto de partida para nossas reflexões a respeito da poesia, “Poesia em tempo de guerra e banalidade”, vê o legado do século XX como “um desastre contínuo e aparentemente irreparável”. Após apontar uma série de mazelas que caracterizariam o século, o autor ressalta as conseqüências de tudo isso sobre a poesia, destacando a postura cética em relação à possibilidade de transformações, e conclui que “já não há qualquer motivo para que o poeta seja expulso da cidade”.

Ninguém em sã consciência será capaz de negar que o século XX foi marcado por uma série de catástrofes. As duas guerras mundiais causaram mais mortes do que quaisquer conflitos anteriores. Por outro lado, é bom lembrar que a população do mundo tem crescido exponencialmente. Feito o devido desconto, terá o século XX de fato sido mais terrível que os outros? O que dizer do século XIX? Pensemos nos horrores das guerras napoleônicas, da colonização do Congo Belga, do jugo inglês na Índia, das guerras do ópio na China, das condições de vida impostas aos operários pela revolução industrial. Se prolongarmos esse exercício, andando para trás, século por século, encontraremos uma sucessão de escravizações, massacres, guerras, extermínios — enfim, tudo aquilo que caracterizou o século XX e que, muito provavelmente, virá a caracterizar o recém-iniciado século XXI. Os horrores do século XX são apenas uma ampliação, dada a maior escala, daquilo que caracteriza a história humana desde sempre. Mas temos uma natural tendência a achar que o nosso tempo é excepcional sob todos os aspectos, porque é apenas dele que temos vivência direta; as atrocidades do passado nos assustam bem menos do que as que enfrentamos em nossa própria carne ou vemos de perto. Quando Adorno afirma que não há poesia possível após Auschwitz, ele esquece que, pelo mesmo motivo, um armênio poderia afirmar a impossibilidade de se escrever poesia depois que os turcos massacraram a sua gente. O mesmo raciocínio poderia se aplicar à escravização dos africanos pelos europeus, ou à destruição das civilizações pré-colombianas pelos espanhóis, ou ao extermínio dos albigenses pelos católicos do norte da França: cada um desses horrores seria motivo suficiente para impossibilitar a poesia e todas as outras artes, do ponto de vista das vítimas de cada caso. Sob esse aspecto, o século XX nada teve de excepcional.

Quanto à situação da arte e da poesia em particular, o diagnóstico apresentado parte de um fato incontestável: a partir do final da Segunda Guerra Mundial, aproximadamente, ocorreu uma mudança de paradigma na esfera da arte. Como já observaram diversos autores, entre eles Octavio Paz e Matei Calinescu, alguns conceitos que ocupavam posição central na arte ocidental desde a segunda metade do século XIX — conceitos tais como vanguarda, revolução estética, experimentalismo, progresso ou evolução no âmbito artístico — perderam a credibilidade. Podemos dizer que caiu em descrédito o paradigma científico-militar da transformação artística: experimentação como na ciência, vanguarda como num exército. No caso da poesia brasileira, desde o início dos anos setenta não se tem notícia de um movimento com propostas, manifestos, programas e aparato teórico sustentando uma produção poética que se pretenda radicalmente inovadora. Porém o autor do texto parece indicar, com sua pergunta retórica: “Mas que criação real pode renunciar à transformação?”, que o fim do paradigma vanguardista implica o fim das transformações em arte, a estagnação completa. Ora, transformação em arte sempre houve, muito antes do surgimento do paradigma vanguardista, e continuará a existir muito depois de ter ele caducado. Dante transformou a poesia ao inventar uma forma poética nova, a terza rima, e um gênero novo, a epopéia teológica. No entanto, não faria sentido caracterizar Dante como poeta de vanguarda, pois o conceito de vanguarda está ligado a concepções específicas que só surgiriam muitos séculos depois: a idéia de experimentação artística não poderia aparecer antes que se formulassem os modernos conceitos de ciência e de progresso histórico. Podemos ter certeza de que a poesia que se produzirá no final do atual século será bem diferente da que está sendo escrita agora; a poesia, tal como as outras artes, continuará em constante mudança. A diferença é que, a partir de um certo momento, deixou de ter validade uma determinada maneira de conceber a transformação artística: o conceito de revolução, desencadeada por movimentos autoconscientes, com manifestos, programas comuns, palavras de ordem, dissidências e eventuais excomunhões. Não damos mais crédito à figura messiânica do artista que julga romper com todo o passado por um ato de vontade e lançar as bases do que deverá ser a arte do futuro. A imagem hipertrofiada do artista como demiurgo, um ser capaz de revolucionar a humanidade com o poder de sua arte, é uma idéia de origem romântica que não é mais levada a sério pela maioria das pessoas que encara a arte com seriedade — ainda que no senso comum os velhos estereótipos do gênio artístico continuem em voga.

Outras supostas conseqüências do legado catastrófico do século XX apontadas no texto também me parecem discutíveis. Uma delas seria “a conformidade da poesia com uma dimensão mediana de produção”, com a conseqüência perda do que haveria de essencialmente “perigoso, desarrazoado ou arrebatador” nela. Em primeiro lugar, o que significa dizer que a poesia se conforma com a mediania? Se o autor quer dizer que a maioria dos poetas se conforma com a mediania, não há como discordar da afirmação: é precisamente essa a definição de “mediano”. Só que isso não é uma característica exclusiva do nosso tempo. Em qualquer época, a maioria esmagadora dos praticantes de uma arte se limita a diluir as propostas novas dos momentos anteriores, enquanto apenas uns poucos lançam as sementes do que virá a ser arte do momento subseqüente. Mas se o que se quer dizer é que no nosso tempo, ao contrário do que ocorria no passado, todos os poetas, sem exceção, são medianos, é impossível concordar. Ainda que nos falte perspectiva histórica suficiente para emitir juízos definitivos sobre o tempo em que vivemos, tudo indica que na nossa época, como em todas as outras, alguns poetas se destacarão da média, e suas realizações serão imitadas e diluídas pelos poetas medianos que virão depois. Jamais houve uma era em que o artista médio fosse outra coisa que não mediano, como também jamais houve uma época em que todos os artistas fossem igualmente medianos. Não vejo por quê o nosso tempo há de ser diferente de todos os outros. Mais uma vez, está em jogo aqui a falácia da aparente excepcionalidade do tempo presente: como é só dele que temos vivência direta, ele nos parece radicalmente diferente de tudo que veio antes.

Examinemos agora a afirmação de que a poesia teria perdido o que nela há de “perigoso, desarrazoado ou arrebatador”. Quanto ao poder de desarrazoar ou arrebatar, ao longo da história alternam-se momentos em que o lado dionisíaco da arte é exaltado e momentos em que se dá mais ênfase ao aspecto apolíneo. Para exemplificar com a poesia inglesa, e simplificando bastante uma situação que na verdade é bem mais complexa, o momento dionisíaco dos metafísicos foi seguido pelo apolíneo de Pope, que por sua vez deu lugar ao momento dionisíaco de Blake. Embora pessoalmente eu prefira Donne e Blake a Pope, não vejo o chamado “período augustano” da poesia inglesa como uma época de estagnação e decadência; considero Pope um grande poeta, como também considero grandes outros nomes nem um pouco dionisíacos, como Wallace Stevens e João Cabral. Não há nada de desarrazoado, e muito pouco de arrebatador, em Stevens ou Cabral, mas essa observação não diminui nem um pouco a grandeza deles. Quanto ao momento atual brasileiro, eu diria que temos um quadro de muita diversidade, em que convivem poetas com uma postura mais apolínea e clássica, que concebem a poesia acima de tudo como artesanato verbal e intelectual, e poetas que ainda insistem na articulação entre poesia e vida proposta pelos românticos e reafirmada por algumas vanguardas. Basta lembrar os nomes de poetas tão diferentes entre si quanto Roberto Piva, Afonso Henriques Neto, Alexei Bueno e Chacal para que fique claro que não temos motivo para chorar a morte do elemento desarrazoado e arrebatador na poesia brasileira. E com relação à idéia de que a poesia atual teria deixado de ser “perigosa”, em que momentos a poesia foi de fato perigosa? Creio que seria superestimar o modesto papel representado pela poesia na vida da grande maioria das pessoas dizer que o poeta sempre correu o risco de ser expulso da cidade. Na verdade, isso só se deu em momentos muito específicos, no contexto de regimes totalitários como a Alemanha nazista ou a União Soviética. Não custa lembrar que Platão, a quem o autor do texto sem dúvida alude quando fala no poeta expulso da cidade, tinha em mente uma república de caráter francamente totalitário. Na medida em que temos hoje menos regimes totalitários, o poeta corre menos risco de ser expulso da cidade, e isso é bom para todas as partes envolvidas. A meu ver, a expulsão do poeta depõe mais contra a cidade que o expulsa do que em favor da poesia que ocasionou a expulsão.

Outro ponto destacado no texto é o de que a produção da poesia está cada vez mais abundante, mais prolixa, e que isso seria algo mau. Novamente, é importante separar os valores absolutos dos relativos. Em termos absolutos, não há dúvida de que a produção poética hoje é muito maior do que em qualquer momento anterior, já que tanto a população do mundo quanto a proporção de pessoas alfabetizadas são muitíssimo maiores do que antes. Mas em termos relativos creio que essa afirmação não se sustenta. O historiador da literatura que resolva efetuar um levantamento de tudo que se publicou em matéria de poesia no século XIX, fazendo os devidos ajustes para o tamanho da população e a proporção de pessoas alfabetizadas, provavelmente concluirá que a produção poética do século XIX foi até maior do que a atual. Muitos escritores oitocentistas que hoje são conhecidos apenas como prosadores publicaram poesia em quantidade: poucos lembram atualmente que Machado de Assis, Herman Melville e George Eliot produziram versos a granel. Hoje, porém, o escritor que produz poesia pertence a uma minoria no mundo das letras. Na atualidade, a poesia é muito menos popular entre os leitores do que era no século XIX, entre outros motivos porque a indústria de música popular absorveu boa parte do mercado de consumo de poesia. Assim, embora haja de fato muitos poetas em atividade hoje, não me parece acertado ver a prolixidade poética como uma característica do nosso tempo. Mas mesmo que o atual momento fosse caracterizado por uma produção de poesia relativamente maior do que antes, seria isso algo pernicioso? Quando uma arte é praticada por um grande número de pessoas, necessariamente a maior parte da produção será medíocre; mas é justamente essa massa de produtores medíocres que vai gerar um solo propício para o aparecimento de artistas destacados. Para que surgisse um Johann Sebastian Bach, foi necessário que uma infinidade de compositores barrocos medianos produzissem antes dele uma infinidade de obras medianas que hoje só interessam ao musicólogo — nomes hoje esquecidos, como Samuel Scheidt, Denis Gaultier e Pietro Cesti. Por outro lado, se uma arte é pouco praticada, diminui a probabilidade de que surjam grandes praticantes. Não admira que o Brasil produza tantos artistas excepcionais no âmbito da música popular e ao mesmo tempo tenha tão poucos dramaturgos de excelência. É da imensa profusão de compositores populares medianos que emergem grandes criadores como Noel Rosa, Cartola, Dorival Caymmi, Tom Jobim, Paulinho da Viola, Edu Lobo, Chico Buarque, Caetano Veloso e tantos outros. Em contraste, nossa produção em dramaturgia é muito parca, e é por isso que temos tão poucos nomes a colocar ao lado do de Nelson Rodrigues.

Assim, tenho uma visão bem menos pessimista da situação atual de poesia do que a exposta no texto que fomos chamados a comentar. Resumindo minha posição: não vejo o século XX como um século particularmente catastrófico. A história da humanidade sempre foi uma sucessão de catástrofes, que naturalmente aumentam em escala à medida que a população do mundo cresce de modo exponencial. Não vejo no passado da poesia, nem no da arte, nem no da humanidade, nenhum período áureo que agora esteja perdido de modo irremediável. O que singulariza o momento atual é o fim do conceito de vanguarda, que vigorou por pouco mais de cinqüenta anos, do final do século XIX a meados do século XX; mas a poesia e as outras artes sempre estiveram em constante transformação, desde muito antes do surgimento do futurismo e do surrealismo, e sem dúvida continuarão a se transformar, apesar do ocaso da idéia de vanguarda. Não há sentido em temer pelo futuro da transformação artística; a arte, desde que viva, necessariamente se transforma. Mas para que uma arte esteja viva, é importante que haja um grande número de praticantes dela. E sob esse aspecto, a proliferação de poetas hoje em dia é algo saudável. É natural que a produção da imensa maioria seja mediana: é este o próprio sentido da palavra “mediano”. Mas é dessa maioria mediana que vão se destacar os poetas que a posteridade verá como os mais representativos do nosso tempo.

Por fim, gostaria de comentar o próprio título do texto, “Poesia em tempo de guerra e banalidade”. Terá havido algum período histórico que não fosse marcado pela guerra e pela banalidade? Já vimos que seria ingenuidade supor que houve na história da humanidade um tempo caracterizado pela paz. Não seria igualmente ingênuo imaginar que numa determinada época — o Renascimento, por exemplo — a vida estivesse liberta da banalidade, e todas as pessoas passassem todo o tempo criando e apreciando obras geniais, uma profusão de Miguel Ângelos e Da Vincis? Ora, a banalidade caracteriza a quase totalidade da existência humana. Todos os seres humanos, inclusive os artistas, passam a maior parte de suas vidas ocupados com atividades banais, e a grande maioria das pessoas vive e morre sem jamais sequer conceber outro tipo de existência. Em cada geração, são poucas as pessoas que sentem algum anseio por ir além da esfera da banalidade cotidiana, e mesmo entre essas a grande maioria se contenta com imitações e diluições — arranjos melosos de temas de Chopin e Tchaikóvski, reproduções baratas da “Última ceia”, o kitsch em suas mil e uma formas. Apenas uma minoria muito pequena não se satisfaz com o medíocre e o banal, e se dedica à tarefa de aprender a desfrutar os prazeres difíceis da grande arte. Assim foi no passado, assim é no presente, e muito provavelmente assim continuará sendo no futuro. O predomínio do banal e do medíocre não é uma anomalia da atualidade, um sinal de decadência de nosso tempo, e sim um aspecto básico da condição humana, demasiadamente humana.

 

 

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[Texto publicado, originalmente, na revista Sibila impressa]

 

 

 

 

 

 

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Paulo Henriques Britto nasceu no Rio de Janeiro em 1951. Entre 1962 e 1964, morou com a família em Washington, D.C., EUA, onde descobriu a poesia, lendo Shakespeare, Edgar Allan Poe, Emily Dickinson e Walt Whitman. De volta ao Rio, começou a ler poesia em língua portuguesa, principalmente Fernando Pessoa, Manuel Bandeira e Drummond. Voltou aos EUA para estudar cinema na Califórnia em 1972-3, sem concluir o curso. Em 1975, tornou-se aluno de licenciatura português-inglês na PUC-Rio, e também começou a traduzir profissionalmente. Formando-se em 1978, ainda na PUC-Rio, iniciou o mestrado em língua portuguesa, defendendo a dissertação em 1982; passou então a lecionar na mesma instituição, onde até hoje atua em oficinas de tradução e criação literária na graduação, e supervisiona uma linha de pesquisa sobre tradução de poesia e outra sobre poesia brasileira contemporânea na pós-graduação. Em 2002, a PUC-Rio concedeu-lhe o título de Notório Saber. Traduziu para o português, até o momento, pouco mais de noventa livros, em sua maioria obras de ficção de língua inglesa, de autores clássicos como Jonathan Swift, Charles Dickens e Henry James, e contemporâneos como Philip Roth, Thomas Pynchon, Don DeLillo, V. S. Naipaul e William Faulkner, entre outros; traduziu também a poesia de Byron, Wallace Stevens, Elizabeth Bishop, Allen Ginsberg e Ted Hughes. Traduziu para o inglês dez livros de autores brasileiros de teoria literária e psicanálise, entre outros campos do saber. Publicou seis livros de poesia — Liturgia da matéria (1982), Mínima lírica (1989), Trovar claro (1997), Macau (2003), Tarde (2007) e Formas do nada (2012) — e um volume de contos, Paraísos artificiais (2004). Uma antologia de poemas seus foi lançada nos Estados Unidos, The clean shirt of it, com tradução e introdução de Idra Novey (2007); e Macau teve também uma edição em Portugal (2010). No campo da ensaística, tem publicado regularmente trabalhos sobre poesia e tradução em diversos periódicos acadêmicos, além de três livros: sobre música popular, Eu quero é botar meu bloco na rua, de Sérgio Sampaio (2009); sobre poesia, Claudia Roquette-Pinto (2010); e sobre tradução, A tradução literária (2012). Sua tradução de A mecânica das águas, de E. L. Doctorow, ganhou o Prêmio Paulo Rónai de tradução, concedido pela Fundação Biblioteca Nacional (1995); Trovar claro recebeu o Prêmio Alphonsus de Guimaraens, também da Fundação Biblioteca Nacional (1997); Macau obteve o primeiro lugar do Prêmio Portugal Telecom de Literatura Brasileira e o Prêmio Alceu Amoroso Lima, concedido pelo Centro Alceu Amoroso Lima para a Liberdade e a Universidade Candido Mendes (2004); Paraísos artificiais foi classificado em segundo lugar na categoria contos e crônicas no Prêmio Jabuti (2005); Tarde ganhou o Prêmio Alphonsus de Guimaraens, categoria poesia, concedido pela Fundação Biblioteca Nacional (2007) e ficou em terceiro lugar no Prêmio Jabuti (2008); Formas do nada foi escolhido como melhor livro do ano, recebendo o 8º Prêmio Bravo! Bradesco Prime de Literatura (2012). E-mail: phbritto@hotmail.com




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