O fluxo ininterrupto de Noll
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É preciso prender o fôlego para ler o livro. Não dá descanso ao leitor, não há espaços para respirar. Sua prosa é um caudal que troca de fluxo (de assunto) sem deixar o leitor emergir. Ao desavisado, o romance é uma grande orgia gay. Onde o personagem principal estaria sempre à busca do próximo gozo, sem afeto e sem amor. Mas na verdade, o que ele procura no gozo interminável é a confirmação do amor. Amor que sente por uma cabra, diz ele que seria capaz de virar bicho para preservar o desejo mútuo entre ele e o animal, e, sobretudo, o amor que sente pelo engenheiro. O engenheiro é seu grande amor, faria tudo por ele, e faz. Aos comandos do engenheiro, vira mulher. Ao longo da história seu falo se transmuta em vagina, numa magistração (mesmo que imperceptiva) gradual do engenheiro: “Como engenheiro mesmo, ele me proporcionara um novo plano para o corpo.”.
Percebemos a busca do amor também nas transferências que o personagem faz ao transar, ou se imaginar transando, com um, imaginando ser outro. Em algumas relações, a cama evoca três ou quatro pessoas ausentes. Indicando que o amor é uma busca longe do alcance das mãos.
Na prosa desenfreada de Noll há amostragens do fantástico – entre algumas, o submarino com uma tripulação de alemãs gays, espalhando verdadeiras surubas no fundo dos mares. Mas o humor impera. O humor acima do poético (quase não vejo o poético no romance) e do nonsense. A história que o livro conta traz muito do que eu chamaria de “humor filosófico”. Ridiculariza o amor conjugal, a cama do marido e da esposa. É ele, até ganhar uma vulva, a mulher de pau. Vive maritalmente com o engenheiro, mas é ele, a mulher, o ativo que penetra o homem, o engenheiro.
Engraçado também é uma campanha misteriosa de doação à causa nacional, que perpassa ao longo de toda a história: “Era uma espécie de recibo, dando conta de uma contribuição para a causa brasileira. Ele me mostrava o recibo antes de pedir a doação. Quem sabe esse homem, com sua aparente inocência, me informasse algo sobre a campanha que fizesse toda a diferença? Talvez um tipo um tanto demencial pudesse me esclarecer para além da lógica. Mesmo que desvendasse o espírito desses donativos só com gestos ou sons animais. Bastava isso. Passei o dinheiro. Já era sina. Até aqui, longe das cidades, irrompe novamente a turva campanha que por mim não pede.”.
O personagem-narrador é casado e tem um filho. Na selva de Mato Grosso, em pleno processo de mutação sexual, vê o filho na pele de um enorme cão selvagem. Os elos familiares se dissolvem, mesmo com a imagem constante do filho, da mulher e de um porto, Porto Alegre.
O final do romance é cheio de evasivas sexuais cansativas: “Os fluidos se desenvolveram em um território livre, sem sombra de teologia. Mas a foda, depois de concluída, fede. O alívio de depois da ejaculação geralmente não durava muito, só o tempo de você sair da alcova e se enxergar no espelho. No espelho, você se vê como realmente é: um ser avulso, que precisa urgentemente se ligar a outro, mesmo que esse amante tenha só a duração exata de uma trepada. Aquele que vencera a distância até o gozo, agora se mirava e descobria mais uma vez o pouco caso que a vida lhe fazia.”. E segue adiante.
Mas, enfadonho mesmo é a morte do personagem central no desfecho da história, que termina com um velho paradigma cristão: o começar a viver após a morte.
Uma frase parece resumir a história: “Se eu pudesse usar a cueca dele e ele a minha, a vida estaria parcialmente resolvida”. “Acenos e afagos” é irremediavelmente bem escrito. Tchau!
ACENOS E AFAGOS / JOÃO GILBERTO NOLL / RECORD / 208 PÁGS
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Cláudio Portella é escritor, poeta, crítico literário e jornalista cultural. Colabora nas mais importantes publicações do Brasil e do exterior. E-mail: clautella@ig.com.br
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