O estranhamento na obra de Julio Cortázar
Questionando a realidade: o estranhamento na obra de Julio Cortázar
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Sinta a vertigem: você está lendo Julio Cortázar. Quando se recuperar, já estará implicado num jogo misterioso que vai te impelir a buscar mais, a envolver-se. Tome “Casa tomada” como exemplo. Conto que apareceu pela primeira vez no final da década de 40, publicado em uma revista argentina, dirigida por Jorge Luis Borges, o qual foi entregue pelas mãos do próprio Cortázar. Nele, uma estranha e invisível presença invade, pouco a pouco, os cômodos de uma casa em Buenos Aires, onde vivem solitários Irene e o narrador, “num simples e silencioso matrimônio de irmãos”, até expulsá-los em definitivo. O conto é considerado a inauguração do universo ficcional de Cortázar, incluído no livro Bestiário, em 1951, embora antes o autor já tivesse publicado, em 1938, um livro de poemas chamado Presencia, onde assinava como ‘Julio Denis’, e também Los Reyes, um poema dramático sobre o tema do Minotauro, publicado em uma edição privada feita por um amigo, em 1949.
Se na literatura das Américas o conto é um gênero especialmente favorecido — podemos citar alguns mestres absolutos do terreno como Juan Carlos Onetti, Juan Rulfo, Guimarães Rosa, contistas magistrais, bem como aqueles que jamais se aventuraram pelo romance, como Jorge Luis Borges, Dalton Trevisan ou João Antônio —, Julio Cortázar, contista por excelência e extremamente fecundo, presenteou-nos com mais de uma centena deles, além de análises e reflexões sobre o próprio fazer literário. Duas, pelo menos, essenciais para se compreender o conto: “Alguns aspectos do conto”, feito a partir de uma conferência realizada em Havana em 1962, e “Do conto breve e seus arredores”, que apareceu em Último round, em 1969. Os dois fazem parte da antologia de ensaios Valise de Cronópios, publicados aqui pela Editora Perspectiva. Assim, contamos com a generosidade do próprio Cortázar ao discutir sua obra, nestas análises ou em entrevistas, entre tantos outros textos, para tentar compreender um pouco mais sobre o universo deste genial escritor.
Em Bestiário já é evidente a extrema habilidade do contista: a sutileza com que o mundo cotidiano sobre a intrusão do fantástico vem disfarçada de prosa corriqueira, displicente, mas determinante em cada definição, econômica e precisa com cabe a um grande contista. Somente o indispensável se encontra em cada linha e você tem absoluta certeza da imutabilidade de cada palavra. Assim, e sem ceder a truques e clichês, o fantástico se instala em sua narrativa: é o sentimento de estranhamento que, aos encontrões, vai se ajeitando onde menos se espera e surgem, então, os encontros fora de hora ou de lugar, as brechas e os interstícios mais insuspeitos no cotidiano mais banal.
A dificuldade de definição do fantástico e ao mesmo tempo, a facilidade de agregar elementos e características que tentam resumi-lo, juntando-se à necessidade de rotulação, talvez sejam os motivos que, em primeira instância, levam a classificar os contos e até alguns romances de Julio Cortázar de tal maneira. Como a própria declaração do autor, no livro Conversas com Cortázar (Jorge Zahar Editor, 2002), de Ernesto Gonzáles Bermejo, definir o fantástico encobre em si uma gama demasiada de possibilidades e, no momento em que escrituras como as de Cortázar surgem, apresentando situações em que, sobre o sólito irrompe o inesperado e temais quetais, ligados ao metafísico, como as estruturas espaço-temporais (temas que são focos de tensão dominante nos contos de Cortázar), a primeira intenção é de aplicar-lhe tal denominação: fantástico. E sob tal permanece.
No entanto, embora seja inevitável que entremos aqui no estudo das tentativas de classificação sobre o fantástico, melhor definição, se assim podemos dizer, à obra de Julio Cortázar, provavelmente seja a de narrativas de estranhamento. Afinal, em um primeiro momento, vejamos o que o próprio autor diz sobre o fantástico, em entrevista no livro Conversas com Cortázar: “Para mim, o fantástico é, simplesmente, a indicação súbita de que, à margem das leis aristotélicas e da nossa mente racional, existem mecanismos perfeitamente válidos, vigentes, que nosso cérebro lógico não capta, mas que em certos momentos irrompem e se fazem sentir.”
Como se vê, sempre é mais fácil caracterizar o fantástico do que tentar defini-lo de forma acabada. Se ele compreende enigmas, absurdos, incoerências, escândalos, rupturas, estes somente existem em contrapartida a uma idéia estabelecida de mundo sólito, congruente, irretocável, coerente, ortodoxo.
Existe, obviamente, a tentação de definir o fantático tão-somente como o terreno onde surge o sobrenatural, o mistério, o terror. Todorov, em Introduction a la Littérature Fantastique (Seuil, 1970), considera que o fantástico é a hesitação experimentada por um ser que só conhece as leis naturais, diante de um conhecimento aparentemente sobrenatural. Seu conceito de fantástico se estabelece, então, entre a dicotomia Real/Imaginário, Natural/Sobrenatural. Já Ana Maria Barrenechea em La Literatura Fantástica em Argentina, (Imprensa Universitária), estabelece como base do fantástico, a existência implícita ou explícita de fatos a-normais, a-naturais ou irreais junto a seus contrários. Considera fantástico quando ocorre o contraste do a-normal, como problema. Para H.P. Lovecraft, o critério do fantástico situa-se não na obra, mas na experiência particular do leitor — um conto é fantástico se o leitor experimenta profundamente um sentimento de temor e de terror, a presença de mundos e poderes insólitos.
Cortázar diverge muito desta definição de Lovecraft, considerando o fantástico “uma coisa muito simples, que pode acontecer em plena realidade cotidiana” e criticando os estratagemas utilizados por Lovecraft para alcançar seus intentos artísticos: “(…) Embora muita gente admire os contos fantásticos de Lovecraft — este público ficará horrorizado com o que vou dizer — eu, pessoalmente, não me interesse nem um pouco por eles, pois me soam inteiramente fabricados e artificiais. Lovecraft começa criando um ambiente que já é fantástico, mas anacrônico. Parece coisa dos séculos XVIII ou XIX. Tudo acontece em casas velhas, em mesetas açoitadas pelo vento, ou em pântanos com vapores que invadem o horizonte. Assim que ele consegue aterrorizar os leitores ingênuos, começa a despejar no texto bichos peludos e maldições de deuses misteriosos. Isso podia ficar muito bem há dois séculos, quando coisas deste tipo eram capazes de assustar qualquer um, mas atualmente, pelo menos para mim, são desprovidas de qualquer interesse.”, diz, em Entrevistas com Cortázar.
Por que, então, pode-se dizer que na obra de Cortázar o fantástico vai além destas caracterizações superficiais? Principalmente, porque no seu universo, isso a que chamam de fantástico, não se constrói apartir de situações-clichês. O estranhamento surge no cotidiano, o absurdo irrompe em meio às atividades do dia-a-dia, e por vezes, é tão sutil, que não se cogita que seja pertencente a outra esfera que não a da nossa própria realidade. Freqüentemente, é fruto de uma ótica distorcida, de um não entender bem, de uma difusão que fica entre o efeito que o narrador deseja e a recepção que, do leitor, obtém. Por isso alcança a maestria de contos que são verdadeiras obras “vivas”, como “As babas do diabo”, pertencentes ao livro As armas secretas. Inspiração para Antonioni em Blow up, só pode ser resolvido pelo leitor — possibilitando, portanto, definições sempre únicas, individuais. Nele, o jogo, recurso muito utilizado pelo autor para provocar este estranhamento, já se estabelece na própria dificuldade proposta pelo narrador desde o início sobre qual pessoa usar para contar o que se passou: “Nunca se saberá como isto deve ser contado, se na primeira ou na segunda pessoa, usando a terceira do plural ou inventado constantemente formas que não servirão para nada. Se fosse possível dizer: eu viram subir a lua, ou: em mim dói o fundo dos olhos, e principalmente assim: tu mulher loura eram as nuvens que continuam correndo diante de meus teus seus nossos vossos seus rostos. Que diabo.”
Ao brincar com a própria dificuldade da construção da literatura, Cortázar vai revelando as camadas significantes por debaixo de sua obra — para mostrar ao leitor, de uma forma mais densa do que uma literatura escapista ou de entretenimento poderia ser capaz, suas impressões sobre o que chama de “testemunho de estranhamento”. O estranho para Cortázar, é o cotidiano, é ele que é questionado, o sólito é que inquirido, a modorra cotidiana é que fruto de indagação. A dita normalidade não é “tranqüila” como se supõe. Por que, segundo o próprio Cortázar afirma no ensaio “Do sentimento de não estar de todo”, presente em Valise de Cronópios, “nada é sólito desde que submetido a um escrutínio secreto e contínuo.”
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Alessandro Garcia é escritor. Autor de A sordidez das pequenas coisas (Não Editora, 2010), finalista do Prêmio Jabuti e segundo colocado no Prêmio Fundação Biblioteca Nacional. Mais em www.alessandrogarcia.com.
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