O delírio de Brás Cubas


…….A VOLUBILIDADE E “O DELÍRIO” DE BRÁS CUBAS

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1. Pandora, o hipopótamo e a volubilidade

“O Delírio”, sétimo capítulo das Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, é certamente uma das passagens mais enigmáticas da história das letras brasileiras.

Nesse capítulo, vemos Brás Cubas em seu leito de morte, cercado de algumas poucas pessoas, sofrendo um delírio. Durante a alucinação, o protagonista primeiramente se vê transformado em “barbeiro chinês” e depois na “Suma Teológica de Santo Tomás”. Quando Brás Cubas retorna à forma humana, avista um hipopótamo que acaba servindo-lhe de “cavalgadura”. Depois de seguirem ambos em direção à “origem dos séculos”, Brás Cubas acaba encontrando-se com Pandora-Natureza e, em seguida, desperta do delírio e vê o hipopótamo transformar-se em seu gato Sultão.

Além do seu caráter enigmático, o capítulo em tela também representa exemplarmente a volubilidade narrativa machadiana, conforme a conceituação de Roberto Schwarz. Segundo o crítico, a volubilidade pode ser caracterizada como segue:

Enfim, buscando generalizar, digamos que o narrador não permanece igual a si mesmo por mais de um curto parágrafo, ou melhor, muda de assunto, opinião ou estilo quase a cada frase. (Schwarz, 1990, p. 29)

A mudança inopinada e repetida no caráter do narrador forma a célula elementar do dispositivo literário — a volubilidade — que estamos estudando. (Schwarz, 1990, p. 47)

Esse narrador volúvel, inconstante, que muda de “opinião ou estilo quase a cada frase”, criou para o capítulo em estudo dois “personagens” que são, a nosso ver, ambivalentes e paradoxais: Pandora e o hipopótamo.

 

2. O hipopótamo

Comecemos nossa análise pelo personagem que serve de transporte ao nosso herói: o hipopótamo.

Ultimamente, restituído à forma humana, vi chegar um hipopótamo, que me arrebatou. Deixei-me ir, calado, não sei se por medo ou confiança; mas, dentro em pouco, a carreira de tal modo se tornou vertiginosa, que me atrevi a interrogá-lo, e com alguma arte lhe disse que a viagem me parecia sem destino. (Assis, 1971, p. 23)

Primeiramente, observemos que o narrador, um “campeão da volubilidade” (Schwarz, 1990, p. 149), tem um sentimento ambivalente quanto à situação por que passa, posto que não sabe se sente “medo ou confiança”. Devemos ressaltar igualmente que o animal, a “cavalgadura” do delirante Brás Cubas, tem na etimologia do seu nome o sentido de “cavalo de rio” (do grego hippopótamos). Ou seja, nosso herói não cavalga apenas um animal, ele “cavalga” uma etimologia. O absurdo representado por um hipopótamo servindo de montaria (e que também fala!) ganha uma lógica própria não apenas dentro do absurdo motivado pelo delírio psicótico da personagem, mas também pela justificação etimológica.

Segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, a etimologia de hipopótamo é “cavalo de rio, esp. do Nilo”. Esse detalhe da etimologia — “esp. do Nilo” — nos chamou a atenção para o trecho a seguir, em que Brás Cubas narra sua aventura montado no animal:

Pela minha parte fechei os olhos e deixei-me ir à ventura. Já agora não se me dá de confessar que sentia umas tais ou quais cócegas de curiosidade, por saber onde ficava a origem dos séculos, se era tão misteriosa como a origem do Nilo (…) (Assis, 1971, p. 23)

Quando Machado escreve “origem do Nilo” estaria ele jocosamente se referindo à etimologia do nome do animal, etimologia essa que teria sua origem (seu étimo) no mesmo rio famoso?

Não podemos jamais duvidar da capacidade machadiana de inventar inter-relações onde aparentemente não seria razoável que elas fossem engendradas.

E, como afirma Alfredo Bosi:

Nem utópica nem conformista, a razão machadiana escapa das propostas cortantes do não e do sim: alumia e sombreia a um só tempo, espelha esfumando, e arquiteta fingidas teorias que mal encobrem fraturas reais.

A perspectiva de Machado é a da contradição que se despista, o terrorista que se finge diplomata. É preciso olhar para a máscara e para o fundo dos olhos que o corte da máscara permite às vezes entrever. Esse jogo tem um nome bem conhecido: chama-se humor. (Bosi, 1982, p. 457)

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3. A natureza paradoxal de Pandora

E quem é Pandora? Segundo o narrador do delírio, ela é o contrário do que ela mesma afirma ser, ou seja, ela é a volubilidade em pessoa: “— Chama-me Natureza ou Pandora; sou tua mãe e tua inimiga.” (Assis, 1971, p. 24)

Antes de iniciarmos a análise dessa afirmação de Pandora-Natureza, recuperemos o mito grego de Pandora:

PANDORA – Foi a primeira mulher que existiu, criada por Hefesto e Atena, auxiliados por todos os deuses e sob as ordens de Zeus. Cada um lhe deu uma qualidade. Recebeu de um a graça, de outro a beleza, de outros a persuasão, a inteligência, a paciência, a meiguice, a habilidade na dança e nos trabalhos manuais. Hermes, porém, pôs no seu coração a traição e a mentira. (Guimarães, 1999, p. 244)

Pandora, como se pode ver, não tem nada de “natural”, pelo contrário, ela é um produto do trabalho dos deuses. Uma espécie de Frankstein. E, como Frankstein, ela é um tipo de monstro.

Se recordarmos a própria etimologia da palavra “monstro”, encontrar-lhe-emos dois significados de fundo. Primeiro: a espetacularidade, proveniente do facto de que o monstro se mostra para além de uma norma (“monstrum”). Segundo: o mistério, causado pelo facto de a sua existência nos fazer pensar numa advertência oculta da natureza e que poderemos adivinhar (“monitum”). Todos os grandes protótipos de monstro, os da mitologia clássica, como o minotauro ou a esfinge, são ao mesmo tempo maravilhas e princípios enigmáticos. (Calabrese, 1987, p. 106)

A Pandora machadiana “se mostra” não para esclarecer o enigma, mas para estabelecer o “mistério”. Aqui, a volubilidade narrativa machadiana, com seus paradoxos e ambiguidades, nos leva a um beco sem saída em que só nos resta o maravilhamento.

Então, sendo Pandora um monstro criado pelos deuses, por que ela se apresentaria como Natureza?

Nesse aspecto está, em nosso entender, o primeiro paradoxo de Pandora. Ela, fruto da mente doente e volúvel de Brás Cubas, afirma-se como duas coisas totalmente opostas: Engenho e Natureza.

 

4. Pandora: mãe e inimiga

Outro paradoxo é a afirmação de Pandora, citada anteriormente, de que ela seria “mãe” e “inimiga”. Segundo a lógica, digamos, aristotélica, essa afirmação seria totalmente descabida. Afinal, mãe é aquela que dá a vida e inimiga é supostamente quem põe em risco a vida de outrem. Esse paradoxo é reforçado e reafirmado pelos seguintes trechos:

— Não te assustes — disse ela —, minha inimizade não mata; é sobretudo pela vida que se afirma. Vives: não quero outro flagelo. (Assis, 1971, p. 24)

— Creio; eu não sou somente a vida; sou também a morte, e tu estás prestes a devolver-me o que emprestei. Grande lascivo, espera-te a voluptuosidade do nada. (Assis, 1971, p. 25)

Primeiramente, Pandora afirma a vida, dizendo desejar que Brás Cubas continue vivo. Depois, ela afirma que também é a morte e que o “grande lascivo” deve morrer.

Como explicar esses paradoxos?

Interessante também observar que Pandora, segundo Guimarães (1999), leva no coração “a traição e a mentira”. Desse modo, quando ela se identifica como sendo vida e morte ao mesmo tempo, essa ambiguidade parece ser justificada pelas características ofertadas por Hermes.

O próprio Brás Cubas também começa implorando pela sua vida e depois pede para que Pandora o mate:

— Viver somente, não te peço mais nada. Quem me pôs no coração este amor da vida, senão tu? e, se eu amo a vida, por que te hás de golpear a ti mesma, matando-me? (Assis, 1971, p.25)

(…) Vamos lá, Pandora, abre o ventre, e digere-me; a coisa é divertida, mas digere-me. (Assis, 1971, p. 26)

Considerando os trechos acima citados, novamente lembramos de Schwarz e sua definição de volubilidade que “consiste em desdizer e descumprir a todo instante as regras que ele próprio [o narrador] acaba de estipular” (Schwarz, 1990, p. 209).

Parece-nos significativo e curioso pensar nessa fala de Brás Cubas em que ele pede para ser digerido: “abre o ventre, e digere-me”. Este trecho nos remete ao segundo capítulo do romance, em que o narrador expõe sua ideia sobre o emplasto:

Eu deixei estar a contemplá-la [a ideia]. Súbito, deu um grande salto, estendeu os braços e as pernas, até tomar a forma de um X: decifra-me ou devoro-te. (Assis, 1971, p. 17)

Lembremos também que, no final do Capítulo I – Óbito do autor, lê-se:

Morri de uma pneumonia; mas se lhe disser que foi menos a pneumonia, do que uma idéia grandiosa e útil, a causa da minha morte, é possível que o leitor me não creia, e todavia é verdade. (Assis, 1971, p. 16)

Ou seja, a “ideia grandiosa” do emplasto, que era uma espécie de remédio, isto é, algo para conservar a vida, acabara por ser a “causa” da morte de Brás Cubas. Portanto, o emplasto-ideia fixa representa, ao mesmo tempo, a vida e a morte: assim como Pandora. E o emplasto-ideia fixa representa também a Esfinge que propõe o enigma.

Conforme afirmamos anteriormente, Pandora é um tipo de monstro, como também é a Esfinge, a qual, segundo Guimarães (1999, p. 130), era metade leão, metade mulher. Donde poderíamos propor a seguinte equação: Pandora = Esfinge = Enigma = Emplasto = Ideia Fixa = Vida = Morte. Considerando essa equação, Pandora seria a materialização delirante da volubilidade de Brás Cubas.

No fim da sua existência, Brás Cubas não consegue criar o emplasto, não foi ministro, não foi califa, não se casou e o que lhe restou foi apenas render-se ao Enigma e ser “digerido” por ele.

Derrotado pelo Enigma-Esfinge, Brás Cubas, “filho” de Pandora, seria um Édipo devorado pela própria mãe? E ser devorado pela própria mãe seria uma forma de retorno ao ventre materno? Uma forma de retorno à “origem dos séculos” e à “Mãe Natureza”?

Se a resposta a essas questões for afirmativa, esse retorno à origem (vida) que também é fim (morte) reafirmaria também a volubilidade da narrativa machadiana.

 

5. Pandora e Deus: um parêntese

Como sabemos, Brás Cubas segue com sua cavalgadura até a “origem dos séculos”, onde só encontra neve e alguma parca vegetação. Lá, um lugar que se encontra antes do Paraíso, é onde ele vislumbra Pandora.

— Onde estamos?

— Já passamos o Éden.

— Bem; paremos na tenda de Abraão.

— Mas se nós caminhamos para trás! — redarguiu motejando a minha cavalgadura. (Assis, 1971, p. 23)

Como se pode depreender do diálogo acima entre Brás Cubas e o hipopótamo, eles estavam se dirigindo para um tempo anterior ao Éden, anterior ao Paraíso Terrestre. Portanto, Pandora é anterior ao Homem. E se Pandora está no início dos tempos, antes mesmo da existência do Paraíso e dos homens, estaria ela no lugar de Deus? Ou melhor, estaria Machado nos dizendo que Pandora-Natureza foi o início de tudo e que, portanto, Deus não existiria?

 

6. Pandora e o desprezo

Outra questão muito intrigante em “O Delírio” é o fato de Pandora tratar Brás Cubas com extremo desprezo, inclusive insultando-o, como nos seguintes excertos:

— Sim, verme, tu vives. (Assis, 1971, p. 24)

Grande lascivo, espera-te a voluptuosidade do nada. (Assis, 1971, p. 25)

Que mais queres tu, sublime idiota? (Assis, 1971, p. 25)

Brás Cubas é um homem vaidoso, com “fome interior de reconhecimento e grandeza” (Schwarz, 1990, p. 185), como se pode verificar ao longo de todo o romance. Um homem que deseja inventar simplesmente “um emplasto anti-hipocondríaco, destinado a aliviar a nossa melancólica humanidade” (Assis, 1971, p. 17), um emplasto que era “a genuína e direta inspiração do céu” (Assis, 1971, p. 173), o Emplasto Brás Cubas. Este, como o narrador das Memórias afirma:

(…) trazia duas faces, como as medalhas, uma virada para o público, outra para mim. De um lado, filantropia e lucro; de outro lado, sede de nomeada. Digamos: — amor da glória. (Assis, 1971, p. 17)

Ou seja, o emplasto deveria saciar também a “alma exterior” e eliminar a possibilidade da obscuridade:

A obscuridade, o temor da obscuridade, o abismo da obscuridade é um dos motivos-chave de Machado, coerentemente com a concepção da sociedade como alma exterior, animada de glória e brilho. (Faoro, 1982, p. 424)

No próprio capítulo sétimo, temos trechos que confirmam essa característica da sua personalidade: “Que me conste, ainda ninguém relatou o seu próprio delírio; faço-o eu, a ciência mo agradecerá.” (Assis, 1971, p. 22). Lemos também: “Logo depois, senti-me transformado na Suma Teológica de Santo Tomás, impressa num volume, e encadernada em morroquim, com fechos de prata e estampas (…)” (Assis, 1971, p. 22) Observa-se, portanto, que o narrador se gaba, primeiramente, de relatar o próprio delírio, algo inédito, segundo ele; depois, Brás Cubas diz que foi transformado na “Suma Teológica de Santo Tomás”, luxuosamente encadernada, o que demonstra o tamanho das suas “supremacias imaginárias”, para citar novamente Schwarz.

Portanto, se Pandora é uma invenção da mente enferma de Brás Cubas, por que esse homem tão vaidoso e com tanta sede de grandeza criaria algo que o humilhasse tanto? Teria Brás Cubas inconscientemente a noção da sua pequenez moral? (Lembremos que Pandora é caracterizada como uma gigante: “Só então pude ver-lhe o rosto, que era enorme.” [Assis, 1971, p. 24])

Como nos esclarece Schwarz, Brás Cubas é um típico representante da sua classe social, os escravocratas brasileiros do século XIX.

Embora muito solta, a forma do romance é biográfica, entremeada de digressões e episódios cariocas. Passam diante de nós as estações da vida de um brasileiro rico e desocupado (…) Estão ausentes do percurso o trabalho e qualquer forma de projeto consistente. A passagem de uma estação a outra se faz pelo fastio, imprimindo ao movimento a marca do privilégio de classe. (Schwarz, 1990, p. 61)

Machado, ao criar seu personagem, estaria criticando toda a classe dominante brasileira do seu tempo por meio da figura de Brás Cubas. Por conseguinte, os insultos proferidos contra ele poderiam também ser interpretados como uma forma indireta de rebaixar a classe dominante brasileira.

Trata-se, noutras palavras, de um livro escrito contra o seu pseudo-autor. A estrutura é a mesma de Dom Casmurro: a denúncia de um protótipo e pró-homem das classes dominantes é empreendida na forma perversa da auto-exposição “involuntária”, ou seja, da primeira pessoa do singular usada com intenção distanciada e inimiga (comumente reservada à terceira). (Schwarz, 1990, p. 78)

 

7. Pandora e o pai

Outra observação que podemos fazer sobre a personagem Pandora tem a ver com o seu gesto de elevar Brás Cubas até o “alto de uma montanha” (para que ele pudesse ver a passagem dos séculos e a vida em toda a sua riqueza e complexidade). Esse gesto parece-nos que guarda muita semelhança com aquele feito pelo pai de Brás Cubas no Capítulo X, quando ele ergue nos braços o filho recém-nascido e o apresenta “à cidade e ao mundo”, conforme lê-se no trecho a seguir:

Meu pai respondia a todos que eu seria o que Deus quisesse; e alçava-me ao ar, como se intentasse mostrar-me à cidade e ao mundo; perguntava a todos se eu me parecia com ele, se era inteligente, bonito… (Assis, 1971, p. 29)

Como descobrimos ao longo da leitura do livro, Brás Cubas recebe todo o mimo do seu pai e tem direito a todo “capricho despótico” (Schwarz dixit) que estivesse ao seu alcance, inclusive o de agredir os escravos.

Por exemplo, um dia quebrei a cabeça de uma escrava, porque me negara uma colher do doce de coco que estava fazendo, e, não contente com o malefício, deitei um punhado de cinza ao tacho, e não satisfeito da travessura fui dizer à minha mãe que a escrava é que estragara o doce “por pirraça”; e eu tinha apenas seis anos. (Assis, 1971, p. 30)

Esconder os chapéu das visitas, deitar rabos de papel a pessoas graves, puxar pelo rabicho das cabeleiras, dar beliscões nos braços das matronas, e outras muitas façanhas deste jaez, eram mostras de um gênio indócil, mas devo crer que eram também expressões de um espírito robusto, porque meu pai tinha-me em grande admiração; e se às vezes me repreendia, à vista de gente, fazi-o por simples formalidade: em particular dava-me beijos. (Assis, 1971, p. 31)

Ou seja, para o pai de Brás Cubas, este deveria ser o centro de todas as atenções, não estando ele obrigado a se sujeitar a nada nem a ninguém. O que faria de Brás Cubas praticamente alguém acima da lei, ou ainda, um fora-da-lei. (O que, na verdade, ele e toda a classe dominante brasileira eram, posto que se tratava de uma sociedade escravista e a escravidão, como sabemos, era uma atividade, além de imoral, ilegal). Portanto, quando o pai apresenta o filho, “Um Cubas!”[1], para o mundo, ele está realizando um gesto diametralmente oposto ao de Pandora (que, não esqueçamos, afirmara: “sou tua mãe e tua inimiga” [Assis, 1971, p. 24]). Esta, por sua vez, obriga Brás Cubas a contemplar o mundo em toda a sua glória e miséria.

Dizendo isto, a visão estendeu o braço, segurou-me pelos cabelos e levantou-me ao ar, como se fora uma pluma. (Assis, 1971, p. 24)

Isto dizendo, arrebatou-me ao alto de uma montanha. Inclinei os olhos a uma das vertentes, e contemplei, durante um tempo largo, ao longe, através de um nevoeiro, uma coisa única. Imagina tu, leitor, uma redução dos séculos, e um desfilar de todos eles, as raças todas, todas as paixões, o tumulto dos impérios, a guerra dos apetites e dos ódios, a destruição recíproca dos seres e das coisas. Tal era o espetáculo, acerbo e curioso espetáculo. (Assis, 1971, pp. 25-6)

Posto que Pandora é, segundo ela mesma, também mãe, seria interessante observarmos como Brás Cubas descreve a sua mãe verdadeira.

Sim, meu pai adorava-me. Minha mãe era uma senhora fraca, de pouco cérebro e muito coração, assaz crédula, sinceramente piedosa — caseira, apesar de bonita, e modesta, apesar de abastada; temente às trovoadas e ao marido. O marido era na terra o seu deus. Da colaboração dessas duas criaturas nasceu a minha educação, que, se tinha alguma coisa boa, era no geral viciosa, incompleta, e em partes negativa. (Assis, 1971, p. 31)

Segundo essa descrição, a mãe de Brás Cubas é simplesmente um apêndice do pai. Uma pessoa irrelevante, sujeita ao marido e cumpridora apenas de seus deveres de dona de casa burguesa. Em nada parecida com a majestosa imponência de Pandora.

Se o gesto do pai alçando Brás Cubas remete-nos ao gesto do padre erguendo o cálice e a hóstia consagrados diante dos fiéis, portanto sugerindo que o protagonista teria um caráter elevado e (por que não?) extraordinário; por outro lado, o gesto de Pandora erguendo Brás Cubas pelos cabelos como se ele fora um animalzinho inofensivo, sugere que o narrador, na verdade, não passaria de um joguete da Natureza(-Pandora), desprovido de qualquer caráter sagrado ou extraordinário.

 

8. Pandora e as Memórias

Diante da verificação de que Pandora funciona como uma espécie de “má consciência” de Brás Cubas, inclusive desprezando-o, insultando-o e o ameaçando de morte, poderíamos indagar: o que representaria Pandora no conjunto das Memórias Póstumas?

Seria ela a materialização de um sentimento reprimido e inconsciente de Brás Cubas? E que sentimento seria esse? Culpa? Sentimento de inferioridade? Inferioridade que ele sentiria enquanto membro de uma classe incapaz de se tornar plenamente civilizada? O “legado da nossa miséria” (Assis, 1971, p. 173), de que fala o narrador no último capítulo do livro, o “Das Negativas”, seria a fonte desse sentimento reprimido de Brás Cubas? Esse “legado” poderia também ser entendido como a herança nefasta deixada pelos membros de sua classe social?

Contudo, Brás deixaria de ser ele mesmo se pudesse abrir mão de seu papel de personagem moderna e prócer da ciência, da filosofia, da política etc. A oscilação entre essa figura e a outra, de sócio beneficiário de um sistema injustificável de dominação, é o cerne de sua volubilidade. (Schwarz, 1990, p. 70)

Esse sentimento a que nos referimos seria provocado pela “oscilação” a que se refere acima Schwarz? Se concluirmos que sim, a volubilidade de Brás Cubas seria uma das causas de seu tormento inconsciente.

Enfim, a Pandora que insulta o narrador e o obriga a ver o mundo para além das fronteiras mesquinhas da sua sociedade burguesa, essa Pandora-Natureza-Mãe-Inimiga parece ser uma espécie de “grilo falante”, anterior àquele criado por  Carlo Collodi (Pinocchio é de 1881), que teria a função de revelar ao nosso herói (e aos leitores das Memórias Póstumas) aquilo que ele não conseguiu perceber durante sua passagem estéril (“Não tive filhos (…)” [Assis, 1971, p. 173]) e alienada pela terra.

 

 


[1] “Analogamente, noutro passo, o pai de Brás havia exclamado “Um Cubas!”, convencido da singularidade e nobreza de sua família, cuja genealogia entretanto ele mesmo se havia encarregado de falsificar.” (Schwarz, 1990, p. 138)

 

 

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Referências bibliográficas

ASSIS, Machado de. Memórias Póstumas de Brás Cubas / Dom Casmurro. São Paulo: Editora Abril Cultural, 1971.
BOSI, Alfredo. “A máscara e a fenda”. In: BOSI, Alfredo et al.; participação especial de Antonio Callado et al. Machado de Assis. São Paulo: Ática, 1982, pp. 437-57.
CALABRESE, Omar. A idade neobarroca. São Paulo: Martins Fontes, 1987.
FAORO, Raymundo. “O espelho e a lâmpada”. In: BOSI, Alfredo et al.; participação especial de Antonio Callado et al. Machado de Assis. São Paulo: Ática, 1982, pp. 415-26.
GUIMARÃES, Ruth. Dicionário da mitologia grega. São Paulo: Cultrix, 1999.
HOUAISS, Antonio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. São Paulo: Objetiva, 2011.
SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis. São Paulo: Duas Cidades, 1990.

 

 

 

 

 

 

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Paulo de Toledo (Santos/SP, 1970) é poeta. Publicou 51 Mendicantos (Ed. Éblis, 2007, Porto Alegre). Venceu o V Projeto Nascente (USP/Ed. Abril). Tem poemas, contos, traduções e ensaios em vários sites de arte e literatura e nas revistas Babel, Sítio, Coyote, Cult e nos jornais Augusto, Casulo e Correio das Artes. Participou da edição crítica de “Catatau” (ed. Travessa dos Editores), obra de Paulo Leminski. Alimenta um blog de estimação: http://paulodtoledo.blog.uol.com.br E-mail: paulodtoledo@uol.com.br




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