O ano passado
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De janeiro de 2016 observo 2015. Em doze fragmentos reflito a partir de algumas palavras que repercutiram no ano passado tanto no geral como no pessoal. Este texto pode ser lido como um calendário com anotações.
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Passei os últimos dias de 2015 em San Miguel de Allende, México. Na casa onde me hospedei havia um exemplar de A vida breve,de Juan Carlos Onetti, que acabei relendo. Os livros têm algo em comum com os rios, as lembranças e os calendários: na repetição desliza o novo. Dessa vez me chamaram a atenção os clichês machistas que atravessam o romance.
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Não teria notado isso se 2015 não tivesse sido marcado pelo feminismo. Nunca tive tantas referências sobre o que significa ser vista como mulher. Percebi o quanto sou considerada, e julgada, por minha aparência. Que nos livros, nos filmes e também na vida, isso é mostrado como “normal”. Percebi a violência de gênero contida no amor romântico e que há outras formas de amor. Percebi o quanto fui e continuo sendo discriminada. E que a luta para conhecer, conhecer-se, criar e recriar-se é grande e constante e se trava também na literatura.
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Discriminar leva a não reconhecer a injustiça de algumas situações e os direitos daqueles que não se incluem em determinados padrões de classe, gênero, etnia, cultura, modo de vida etc. Relacionado a isso, o termo fascismo ganhou visibilidade em 2015. Refere-se a um pensamento, um conjunto de atitudes e ações que visam, em última instância, à eliminação simbólica e/ou real do outro. O fascismo se alimenta da crise, parasita as instituições democráticas (partidos, sindicatos, movimentos etc.) para eliminá-las. Seu objetivo é eliminar toda diferença. Assim, mesmo ciente da insuficiência desse modelo e de suas instituições, defendi a democracia em 2015. Sem desistir da busca e da experimentação de outras e necessárias formas de gestão e de fazer política(s).
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Envelheci. Envelhecemos. O relatório Envelhecimento no Século XXI: Celebração e Desafio do Fundo de população das Nações Unidas diz que “o envelhecimento populacional é uma das mais significativas tendências do século XXI. Apresenta implicações importantes e de longo alcance para todos os domínios da sociedade. (…) É um fenômeno que já não pode mais ser ignorado”. Aprendemos com os movimentos sociais, políticos e estéticos do século XX, e com os meios de comunicação, a valorar positivamente o jovem, associando-o a “revolucionário”, a “mudança”, e negativamente o velho, associando-o a “conservador”. Mas esta perspectiva, como muitos lugares comuns, é uma distorção. “Mudança” e “novo” nem sempre significam algo positivo, já que esses termos têm sido largamente utilizados pelo fascismo, pelas direitas conservadoras e pela publicidade. Por outro lado, boa parte dos velhos não apenas conhece como experimentou de alguma maneira as ideias da “revolução juvenil” do século XX, como a ecologia, o rompimento com os padrões estabelecidos pela moral religiosa, a contracultura etc. Diante disso cabe repensar a relação jovem-velho na perspectiva de uma cultura interconectada em que a experiência com o tempo não se dá apenas na diacronia, mas também na sincronia. Somos todos contemporâneos, e o diálogo e a experiência transgeracionais são possíveis. Se, frente ao aumento da população jovem, inventaram-se no século XX “novas maneiras de ser jovem”, diante do envelhecimento, cabe propor “novas maneiras de ser velho”. Isso passa por combater os estereótipos negativos em que os velhos são apenas consumidores, parasitas ou excluídos, ou simplesmente invisíveis. Não se trata de ser ageless, ou de não ter idade nem debilidades. Ao contrário, trata-se de ter todas as idades no exercício da troca de experiências e afetos. Apropriar-se do nosso tempo. Perceber o corpo, a vida e o tempo não só como limite, mas também e principalmente como possibilidade.
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Tenho tentado fazer com que meu trabalho gire em torno do meu projeto, seja lá como se denomine (literário, artístico, teórico, filosófico, existencial, criativo, político, comunitário, ou tudo isso e nada disso, sempre misturado). Também faço outras coisas, como traduzir, porque gosto, preciso e tenho alguma (nunca suficiente) experiência. Passei mais um ano sem vínculos com empresas ou instituições, entre outras coisas porque estas exigem presença física num local e horário, coisa que não me disponho a fazer. Isso não me livra da regra geral. Os “melhores”, os “vitoriosos”, os mais bem-sucedidos, também e talvez principalmente na área da cultura, são os bons vendedores. O paradigma dominante é a competição, não a colaboração. Não sou boa vendedora. Então, não foi fácil, de fato foi dificílimo, mas sobrevivi em e a 2015
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Reduzi o consumo e me interessei por obras, projetos e práticas de economia. Li O capital no século XXI de Thomas Piketty numa edição pirata comprada por 3 dólares no centro de Bogotá (o detalhe é quase uma resenha.) Pensei sobre a pobreza em que vive a maior parte das pessoas, a pobreza que conheço bem como fato, ameaça e cada vez mais como mestra. Pensei nas implicações do conceito de “forças destrutivas” e em quanto custa. Tudo. E continuo preferindo os mercados (o escambo, as trocas, as interconexões) ao mercado.
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Como parte do meu projeto e do meu trabalho, revi as reflexões sobre literatura que reuni nos últimos dez anos. Foi um período de transformações nas formas de ler, produzir, entender e difundir textos. Houve grande apropriação das ferramentas da arte, da ficção, da poesia, do jornalismo, da edição e difusão. Nunca se escreveu nem se leu tanto. As instâncias de valoração, no entanto, permanecem em sua maioria ancoradas em conceitos e normas que visam estabelecer autor-idades para vender comportamentos, nomes, tendências. Mas a literatura, ao contrário do que tentam nos fazer acreditar, não é neutra, nem eterna, nem universal, nem absoluta ou sedentária. Como as demais atividades criativas, se constrói e se lê desde o contingente, o mutável. Desde uma migração. A escritura e a leitura são tanto atos de construção como de destruição do romance, da biografia, de qualquer gênero que se apresente como tal e também da autoria. O sentido e a criação se dão no processo. Portanto no comunitário e no coletivo. No plural: literaturas.
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No plural e plurais foram minhas leituras: nas redes, nas cidades, nos corpos, nos diferentes espaços, nos tempos. Leituras expandidas e em expansão. Leituras nas fronteiras do projeto que falei acima, realizado em diferentes países e comunidades. Independentemente das modas, das tendências, dos cadernos culturais, das livrarias, dos programas de fomento, das divisões entre autores e leitores e produtores e consumidores e de todo o barulho em torno do assunto, ler tem a ver com abertura de pontos de vista.
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2015 foi outro ano barulhento. E quando tem muito barulho, muita gente falando, muita opinião, temos que escolher entre gritar mais alto e tentar ouvir aquém, além e no meio de tanta estridência. Difícil com tantos achando que o mais importante é ter razão sem levar em conta que esta, como a verdade, está compartilhada.
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Falou-se muito em identidade, em parte pelo que mencionei nos itens 3, 4 e 5. Mas, e considerando o anterior, não consigo deixar de sentir que a noção de identidade deve se expandir e deixar de ser central. Talvez todos nós tenhamos ou possamos ter, como indiquei no item 5, muitas identidades. Principalmente agora em que há tantas possibilidades de deslocamento e interlocução.
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Chego ao fim deste texto e percebo que passei por alto vários assuntos que me ocuparam em 2015. Tudo bem. Superfície não é o contrário de profundidade, como ignorância não o é de conhecimento. Naquela primeira leitura de A vida breve, percebi o enredo, a montagem e o plano geral do romance. E também a distância que me separava daquilo que eu achava que era literatura. Desta última, além dos clichês machistas, ficou uma frase que reproduzo de memória e imprecisamente: “pela primeira vez me vejo como um amigo a quem é preciso ajudar”.
San Miguel de Allende-Cidade do México, dezembro de 2015-janeiro de 2016
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Maria Alzira Brum Lemos é escritora, tradutora e doutora em Comunicação e Semiótica. Autora entre outros de A Ordem Secreta dos Ornitorrincos (Amauta, SP, 2008), Novela souvenir (México, Fonca-Santa Muerte Cartonera, 2009 y 2016) y No hacerlo (México, Librosampleados, 2014). Desenvolve oficinas e laboratórios de criação sob o conceito de Autorias compartilhadas na Cidade do México. E-mail: malzira.brum@gmail.com

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